Daudet nasceu em Nimes, Provença, Departamento de Bouches-du-Rhône, filho de um fabricante de tecidos e comerciante. Com a falência da família, viu-se obrigado, aos 17 anos, a trabalhar de vigilante em um colégio. Com a ajuda do irmão, o historiador e escritor francês Ernest Louis Marie Daudet, foi para Paris aos 18 anos, inciando sua vida literária. Seu irmão contou, no livro Mon Frère et Moi, as aventuras dos dois em Paris.
Estreou com uma coletânea de versos, Les Amoureuses, em 1858, e em 1862 publicou um volume de contos, Le Roman du Chaperon Rouge. Em Paris, tornou-se íntimo de Goncourt e Emile Zola.
Ao publicar Lettres de mon moulin, em 1869, alcançou o sucesso. Tornou-se secretário do Duque de Morny, presidente do Senado e, por problemas de saúde, viajou pela Argélia, onde se inspirou para escrever Tartarin de Tarascon, em 1872. Fez várias tentativas no teatro, mas só teve algum sucesso com L`Arlésienne, em 1872.
Foi pai do jornalista e também escritor Léon Daudet, um monarquista, nacionalista e anti-semita, que colaborou em jornais como o Le Figaro e o Le Gaulois, entre outros.
A MULA DO PAPA
Entre todos os ditados, provérbios ou adágios com que os nossos camponeses da Provença entremeiam suas frases, não conheço nenhum outro mais pitoresco, nem mais original do que este. Numa extensão de quinze léguas ao redor do meu moinho, quando alguém se refere a um homem rancoroso, vingativo, costumam observar-lhe: “Cuidado com esse homem! É como a mula do papa, que guarda sete anos o seu coice”.
Durante muito tempo procurei a origem de tal provérbio, a fim de saber o que significava aquela mula papal e o coice guardado durante sete anos. Ninguém aqui soube esclarecer-me, nem mesmo Francet Mamai, tocador de pífaro, que conhece a fundo o legendário provençal. Francet supõe, como eu, que deve existir, envolvendo o ditado, alguma antiga crônica da região de Avinhão; mas não ouvira falar dela a não ser através do provérbio.
— O senhor só encontrará a explicação na biblioteca das Cigarras — observou o velho tocador de pífaro, rindo-se.
A idéia pareceu-me boa, e como a biblioteca das Cigarras fica perto de casa, lá me encerrei durante oito dias.
É uma maravilhosa biblioteca, admiravelmente instalada, aberta aos poetas dia e noite, e atendida por pequenos bibliotecários munidos de címbalos, que tocam música o tempo todo. Lá passei alguns dias deliciosos. Após uma semana de incessantes buscas, acabei descobrindo o que desejava, isto é, a história da mula e do famoso coice guardado durante sete anos. É um bonito conto, embora um tanto ingênuo, e vou experimentar narrá-lo tal como o li ontem de manhã num manuscrito cor do tempo, que rescendia a alfazema seca e tinha grandes fios da Virgem1 como sinetes.
Quem não viu Avinhão no tempo dos papas, nada viu. Não havia cidade que se lhe comparasse em animação, no esplendor das festas. De manhã à noite eram procissões, peregrinações, ruas juncadas de flores, forradas com longas tapeçarias, recepções de cardeais que chegavam pelo Ródano, flâmulas ao vento, galeras embandeiradas, soldados do papa que cantavam nas praças em latim, matracas dos irmãos mendicantes; depois, nas casas que se comprimiam, zumbindo em redor do grande palácio papal como abelhas em torno da colméia, ressoavam, de cima a baixo, o tique-taque dos teares de renda, o vaivém das lançadeiras tecendo o ouro das casulas, os pequenos martelos dos cinzeladores de galhetas, as pranchas de cordas afinadas nas oficinas dos fabricantes de instrumentos musicais, os cânticos das fiandeiras; e, acima de tudo, o badalar dos sinos e o rumor dos tamborins que vinha lá do outro lado da ponte. Pois entre nós, quando o povo está satisfeito, precisa dançar; e como nesse tempo as ruas da cidade eram demasiadamente estreitas para servir de palco à farândola, tocadores de pífaros e de tamborins postavam-se na ponte de Avinhão, e à fresca aragem do Ródano o povo dançava.
Ah! que bons tempos! que ditosa cidade! Alabardas que não feriam, prisões do Estado onde o vinho era colocado para refrescar. Nem carestia, nem guerra! Aí está como os papas do condado sabiam governar o povo; e aí está por que o povo tanto lamentou a ausência deles!
Havia sobretudo um, o bom velho chamado Bonifácio... Oh! quantas lágrimas foram derramadas em Avinhão, quando ele morreu! Era um príncipe tão amável, tão agradável! De cima de sua mula ele sorria para todos. E quando alguém passava a seu lado — fosse um pobre e insignificante apanhador de garança ou o importante juiz da cidade — dava-lhe a bênção com tanta cortesia! Um verdadeiro papa de Yvetot2, mas de um Yvetot provinciano, com algo malicioso no riso, um galhinho de manjerona no barrete e nenhuma Jeanneton3. A única preferência que se lhe conhecia era por sua vinha — uma pequena vinha que plantara com suas próprias mãos, a três léguas de Avinhão, entre as murtas de Châteauneuf.
Todos os domingos, ao sair das vésperas, o digno homem ia prestar-lhe homenagem; e lá, sentado ao sol, ao lado da mula, rodeado pelos cardeais estendidos junto aos troncos, ele mandava desarrolhar uma garrafa de vinho recente, do belo vinho cor de rubi, que foi chamado mais tarde Châteauneuf-du-Pape, e saboreava-o aos pequenos goles, fitando a vinha com ternura. Ao declinar do dia, esvaziada a garrafa, ele regressava alegremente para a cidade, seguido pelo capítulo. Quando passava pela ponte de Avinhão, no meio dos tambores e das farândolas, a mula, animada pela música, tomava uma andadura miúda e saltitante, enquanto ele marcava o compasso da dança com o barrete, o que muito escandalizava os cardeais, mas fazia o povo exclamar: “Ah! que bom príncipe! Ah! que ótimo Papa!”
Depois da vinha de Châteauneuf, o que o papa mais amava no mundo era a sua mula. Bonifácio era louco pelo animal. Todas as noites, antes de deitar-se, ia verificar se o estábulo estava bem fechado, se faltava alguma coisa na manjedoura, e nunca se levantava da mesa sem que mandasse preparar sob as suas vistas uma grande tigela de vinho, à francesa, com bastante açúcar e drogas odoríferas; e malgrado as observações dos cardeais, ele mesmo a levava para a mula.
É preciso observar que o animal merecia tais cuidados. Era uma bonita mula negra, mosqueada de vermelho, passo firme, pêlo brilhante, ancas largas e cheias, que sabia erguer altivamente a cabecinha fina, toda ajaezada de borlas, de laços, de guizos de prata e de fitas. Além disso, mais mansa do que um anjo, com olhos ingênuos e duas longas orelhas sempre em movimento, que lhe davam um ar bonacheirão. Avinhão inteira a respeitava, e quando ela passava pelas ruas não havia cortesias que não recebesse; pois todos sabiam que era a maneira mais segura de obterem favores na corte, e que, com o seu ar inocente, a mula do papa conduzira mais de uma pessoa aos braços da fortuna; aí estão Tistet Védène e sua prodigiosa aventura, para prová-lo.
No início, Tistet Védène era um rapazinho atrevido, a quem o próprio pai, o ourives Guy de Védène, fora obrigado a expulsar de casa, porque se recusava a trabalhar e desencaminhava os aprendizes. Durante seis meses viram-no perambular por todos os cantos de Avinhão, mas principalmente pelos lados do palácio papal; pois havia muito tempo que o patife deitara as vistas sobre a mula do papa, e veremos com que intenções malignas. Certo dia, quando Sua Santidade passeava sozinho no seu animal, sob os muros do pátio, Tistet Védène aborda-o e observa, juntando as mãos num gesto de admiração:
— Ah, meu Deus! Grande papa, que bela mula vós possuís! Permiti que a olhe um pouco... Ah! meu papa, que linda mula! nem o imperador da Alemanha tem outra igual!
E Tistet acariciava o animal e falava-lhe suavemente, como se fosse uma moça:
— Minha jóia, meu tesouro, minha pérola preciosa.
E o bom papa, comovido, dizia consigo mesmo: “Que bom rapazinho! Como é amável com a minha mula!”
E sabem o que aconteceu no dia seguinte? Tistet Védène trocou o velho paletó amarelo por uma alva de rendas, uma opa de seda violeta, sapatos de fivelas, e entrou no coro papal, onde antes dele só os filhos dos nobres e os sobrinhos dos cardeais tinham sido recebidos. Vejam só quanto pode a intriga!
Mas Tistet não se deu por satisfeito. Depois de entrar no serviço do papa, o malandro continuou a fazer o seu jogo, que tão bons resultados produzira. Insolente com todos, só reservava suas atenções e cortesias para a mula. Era sempre visto nos pátios do palácio, tendo nas mãos um punhado de aveia ou um molho de feno, cujas pencas cor-de-rosa delicadamente ele sacudia, enquanto fitava o balcão do Santo Padre, como se dissesse: “Então? Para quem é isso?”
Tanto fez, que finalmente o bom papa, que se sentia envelhecer, lhe deu a incumbência de cuidar do estábulo e de levar a tigela de vinho à francesa para a mula. Mas dessa vez os cardeais não acharam graça.
Também a mula não achou graça... Agora, à hora do vinho, ela assistia à chegada de cinco ou seis pequenos sacristães do coro papal, que se metiam no meio da palha com suas opas e suas rendas. Pouco depois, um cheiro gostoso de caramelo e de especiarias enchia o estábulo, e Tistet Védène surgia trazendo com precaução a tigela de vinho à francesa. Então começava o martírio do pobre animal.
Tinham a crueldade de levar à sua manjedoura o vinho perfumado, que ela tanto apreciava, e de fazê-la cheirá-lo; depois, quando as suas narinas se impregnavam do aroma — adeus! O belo líquido cor de chamas rosadas descia inteirinho pela garganta daqueles patifes. Se apenas se limitassem a roubar-lhe o vinho... Porém, depois de terem bebido, os pequenos sacristães se transformavam em verdadeiros demônios: um lhe puxava as orelhas; o outro, a cauda; Quiquet montava-lhe nas costas; Béluguet punha-lhe o barrete na cabeça. E nenhum desses malandros imaginava que com um golpe de flanco, ou um coice, o pacífico animal poderia enviá-los à Estrela Polar, e até mais longe. Nada disso! Nunca se esquecia de que era a mula do papa, a mula das bênçãos e das indulgências.
Por mais que a atormentassem, ela não se zangava. Se guardava rancor, era apenas contra Tistet Védène. Quando percebia que este se encontrava à sua retaguarda, sentia cócegas no casco, e na verdade sobravam-lhe motivos para tanto. Aquele tratante Tistet pregava-lhe bem boas peças. Tinha invenções cruéis depois de beber... Pois não se resolveu um dia a obrigá-la a subir ao pequeno campanário do coro, lá em cima, bem em cima, no alto do palácio?
O fato que lhes relato não é anedota, dois mil provençais presenciaram-no. Imaginem o terror da desgraçada mula quando, após ter dado voltas durante uma hora inteira numa escada de caracol, quase às cegas, e tendo subido não sei quantos degraus, subitamente se encontrou numa plataforma ofuscante de luz. A mil pés abaixo, avistou um Avinhão fantástico, onde as barracas do mercado não eram maiores do que avelãs; os soldados do papa, postados diante da caserna, pareciam formigas vermelhas; e lá longe, sobre um fio de prata, equilibrava-se uma ponte microscópica, cheia de gente que dançava, dançava... Ah! Pobre animal! que pânico!
Todos os vidros do palácio tremeram com o berro que soltou.
— Que aconteceu? que lhe fizeram? — exclamou o bom papa, precipitando-se para o balcão.
Tistet Védène, que já regressara ao pátio, fingiu que chorava e arrancava os cabelos:
— Ah! Grande papa, o que aconteceu! Aconteceu que a vossa mula... Meu Deus! que será de nós?... Aconteceu que a vossa mula subiu ao campanário.
— Sozinha?!
— Sozinha, sim, grande papa... Vede! Olhai para cima. Não vedes aparecendo lá a ponta de suas orelhas? Dir-se-iam duas andorinhas!
— Misericórdia! — exclamou o pobre papa, erguendo os olhos.
— Mas ela enlouqueceu! vai matar-se... Não quer descer daí, minha pobre!...
Ai dela! Não pedia outra coisa senão descer. Mas como fazê-lo? Não podia pensar na escada. Fora-lhe possível subir por uma coisa daquelas, mas se fosse descer, arriscava-se a quebrar cem vezes as pernas. A pobre mula afligia-se, e enquanto vagueava pela plataforma com seus grandes olhos cheios de vertigem, pensava em Tistet Védène: “Ah bandido! Se eu escapar desta, que coice você levará amanhã cedo!”
A idéia do coice dava-lhe um pouco de firmeza às pernas, sem o que ela não se agüentaria. Enfim, depois de um sem-número de peripécias, conseguiram retirá-la lá de cima. Foi preciso descê-la com um guindaste, cordas, uma padiola. E imaginem que humilhação para a mula de um papa ficar suspensa de tamanha altura, agitando as patas no vácuo, como um besouro na ponta de um fio... E Avinhão inteira que a contemplava!
O infeliz animal não dormiu nessa noite. Estava sob a impressão de continuar a dar voltas na maldita plataforma, enquanto a cidade se ria lá embaixo. E também pensava no infame Tistet Védène e no belo coice com que ela o brindaria na manhã seguinte. Ah! meus amigos, que coice! Até em Pampérigouste avistariam a fumaça.
Ora, enquanto a mula preparava a Tistet Védène uma bela recepção no estábulo, sabem o que fazia ele? Descia o Ródano numa galera papal, cantando, em direção à corte de Nápoles, em companhia dos jovens nobres que a cidade enviava todos os anos para junto da rainha Jeanne, a fim de exercitarem-se na diplomacia e nas boas maneiras. Tistet não era nobre, mas o papa fazia questão de recompensá-lo pelos cuidados que prodigalizava à mula, e principalmente pela atividade que ele desenvolvera durante o salvamento da mesma.
Bem que a mula ficou desapontada no dia seguinte. “Ah! bandido! Desconfiou de alguma coisa! — ponderou ela, sacudindo violentamente os seus guizos. — Não importa, malvado! Ao regressar, você encontrará o seu coice. Vou guardá-lo”. E assim o fez.
Depois da partida de Tistet, a mula da papa voltou à sua rotina tranqüila e retomou os antigos hábitos. Nem Quiquet nem Béluguet apareciam na estrebaria. Os belos dias do vinho à francesa retornaram, e com eles o bom humor, as longas sestas e o passinho de gavota ao passar pela ponte de Avinhão. Contudo, após a aventura do campanário, a cidade esfriara um pouco em relação à mula. Cochichavam quando ela passava, os velhos balançavam a cabeça e as crianças riam, apontando o campanário. O próprio papa não depositava em sua amiga a mesma confiança. Quando se permitia um cochilo às suas costas, ao regressar da vinha, fazia-o com certa prevenção: “Se eu fosse acordar lá em cima, na plataforma!” A mula observava tudo isso e sofria, sem nada dizer. Apenas, quando pronunciavam na sua frente o nome de Tistet Védène, suas compridas orelhas estremeciam, e com um risinho mau ela aguçava no calçamento o ferro dos seus cascos.
Assim transcorreram sete anos. Ao cabo desse tempo, finalmente Tistet Védène regressou da corte de Nápoles. Ainda não concluíra o seu estágio, mas soubera que o primeiro mostardeiro do papa acabava de falecer subitamente, em Avinhão. E como o posto lhe parecera bom, embarcara às pressas a fim de incorporar-se à fila dos candidatos.
Quando o intrigante Védène entrou no salão do palácio, o santo padre mal o reconheceu, tanto ele crescera e encorpara. É preciso dizer que o bom papa envelhecera bastante, e já não enxergava tão bem. Tistet não se intimidou:
— Como! Santo papa, não me reconheceis? Eu, Tistet Védène...
— Védène?
— Sim, bem sabeis... O rapaz que levava o vinho francês à vossa mula.
— Ah! sim... sim... lembro-me. Um bom rapazinho, esse Tistet Védène. E agora, que desejais de nós?
— Oh! pouca coisa, santo papa. Vim pedir-vos... A propósito, a vossa mula ainda está viva? E vai bem? Ah! tanto melhor! Eu vinha pedir-vos o lugar do primeiro mostardeiro, que acaba de morrer.
— Primeiro mostardeiro, tu! Mas és muito jovem. Que idade tens?
— Vinte anos e dois meses, ilustre pontífice, justamente cinco anos mais que a vossa mula... Ah! senhor, que bom animal! Se soubésseis como eu gostava da vossa mula, como senti saudades dela na Itália! Ser-me-á permitido vê-la?
— Sim, meu filho, tu a verás — respondeu o bom papa, comovido. — E já que estimas tanto esse bravo animal, não quero mais que vivas longe dele. De hoje em diante ficas a meu serviço na qualidade de primeiro mostardeiro. Meus cardeais protestarão, mas tanto pior, estou habituado. Vem procurar-nos amanhã, à saída das vésperas. Nós te entregaremos as insígnias da tua nova dignidade, na presença de nosso capítulo. Depois eu te levarei para ver a mula, e nos acompanharás à vinha. Ah! ah! ótimo!
Não preciso dizer-lhes se Tistet Védène estava contente ao sair do salão, nem com que impaciência aguardou a cerimônia do dia seguinte. Contudo, havia no palácio alguém mais feliz e mais impaciente do que ele: era a mula. Desde o regresso de Védène até as vésperas do dia seguinte, o terrível animal não cessou de empanturrar-se de aveia e de bater na parede com os cascos traseiros. Também se preparava para a cerimônia.
E no dia seguinte, após terem sido rezadas as vésperas, Tistet Védène fez sua entrada no pátio do palácio papal. Todo o alto clero se encontrava presente: os cardeais em trajes vermelhos, o advogado do diabo vestido de veludo negro, os abades do convento com suas pequenas mitras, os provedores de Saint-Agricol, o coro com opas violetas, e também confrarias de penitentes, os eremitas do monte Ventoux com suas fisionomias fechadas, o pequeno clérigo atrás carregando a campainha, os irmãos flageladores, nus até a cintura, os sacristães vestidos com togas de juízes — todas, todos, até os doadores de água benta, e aquele que acende, e aquele que apaga, não faltava um só. Ah! Era uma bela ordenação! Sinos, foguetes, sol, música, e sempre aqueles danados tamborins que marcavam a dança, lá na ponte de Avinhão.
Quando Védène apareceu no meio da assembléia, seu garbo e sua bela presença fizeram perpassar um murmúrio de admiração. Era um magnífico provençal, dos louros, com longos cabelos de pontas frisadas e uma pequena barba caprichosa, que parecia feita com as lascas de metal precioso caídas do buril de seu pai, o ourives. Corriam rumores de que os dedos da rainha Joana tinham brincado algumas vezes com aquela barba loura; e efetivamente o senhor de Védène ostentava o ar glorioso e o olhar distraído dos homens que foram amados por rainhas. Nesse dia, a fim de honrar a sua terra, ele substituíra os trajes napolitanos por uma jaqueta com debruns cor-de-rosa, à provençal, e no seu chapéu tremulava uma grande pena de íbis de Camargue.
Depois de ter entrado, o primeiro mostardeiro cumprimentou com galhardia e dirigiu-se para o alto patamar onde o papa o aguardava para entregar-lhe as insígnias da sua nova dignidade: a colher de buxo amarelo e o hábito cor de açafrão. A mula permanecera ao pé da escada, toda ajaezada e pronta para seguir para a vinha. Ao passar perto dela, Tistet Védène sorriu-lhe amavelmente e deteve-se para dar-lhe dois ou três tapinhas amigáveis nas costas, enquanto observava com o canto do olho se o papa o estava vendo. O momento era propício. A mula tomou impulso: “Toma, bandido! Faz sete anos que o guardo para você!”
E deu-lhe um coice tão violento, tão terrível, que até em Pampérigouste foi vista a fumaça, um turbilhão de fumaça loura onde voltejava uma pena de íbis, tudo quanto restava do infortunado Tistet Védène.
Habitualmente os coices das mulas não costumam ser tão fulminantes. Mas era uma mula papal, e além disso, pensem bem: ela o guardava havia sete anos!
Autor: Alphonse Daudet
Produção Visual: Carlos Cunha