Nascido em Berlim, em 15 de março de 1830, Paul Johann Ludving Von Heyse foi o segundo filho do professor universitário real KWL Heyse e de sua esposa que veio de uma família judaica. Depois de frequentar o Ginásio estudou clássica filologia na Universidade de Berlim por dois anos. Lá ele se interessou por todos os tipos de poesia. sob Boeckh e Lachmann, e com o apoio amigável de Emanuel Geibel e Franz Kugler me interessou em todos os tipos de poesia. Em Bonn, onde estudou por um ano, eu mudei desde o clássico ao filologia românica, ensinou lá por seu grande fundador, F. Diez, e no início de 1852 recebi o doutorado com uma dissertação sobre a abster-se na poesia provençal. No Outono de 1852 foi para Roma, em uma concessão por parte do Ministério da Cultura da Prússia. Durante um ano ficou em vários lugares do sul, continuando seus estudos em bibliotecas. Paul Heyse foi o primeiro escritor germanico de ficção a receber o Nobel de Literatura, em 1910.
A IMPERATRIZ DE SPINETTA
Na planície de Alexandria, a uma hora da aldeia de Marengo, há outra aldeia, de nome Spinetta, completamente apagada em conseqüência do brilho de sua famosa vizinha. Até nos mais minuciosos tratados de história militar seu nome é apenas mencionado, e os estrangeiros que examinam cada monte de pedras no campo de batalha de Marengo, ao passarem pela modesta Spinetta, não a julgam digna sequer de um olhar. Pouquíssimos sabem que esse lugar insignificante viveu outrora um dia em que um imperador e uma imperatriz foram ali coroados com solene pompa, e como depois a sua grandeza acabou de maneira estranha. Só um folheto, dos que se vendem aos milhares por uma moeda de cobre nas feiras agrícolas, guardou a sugestiva história dessa coroação. A imaginação poética dos campônios piemonteses e lombardos envolveu o fato histórico em toda espécie de acréscimos milagrosos, de sorte que hoje é difícil discernir com absoluta segurança o acontecido do inventado. Quanto ao essencial, porém, o acontecimento produziu-se como o relataremos nas seguintes páginas.
Pouco depois de 1820, quando Carlos Félix [rei da Sardenha de 1821 a 1831], sufocadas as tentativas de motim esboçadas pelos carbonários, conseguiu definitivamente firmar-se no trono do Piemonte, vivia numa das choupanas mais pobres, nos confins de Spinetta, um lindo par de irmãs, respeitado por todos, em razão de sua honestidade e piedade. Perderam os pais muito cedo, quando Margaridinha, a mais moça, tinha apenas três anos. A mãe morreu da dor causada pelo triste fim do marido, o qual tomara parte na campanha napoleônica de Moscou e, de volta, extraviou-se no gelo do Beresina. A confirmação oficial de sua morte, excluindo a hipótese de prisão ou desaparecimento, só chegou alguns anos após aquele terrível drama dos povos, e, com a centelha de esperança que a boa mulher sempre conservara, apagou-se-lhe também a tênue luz da vida. Tinha a filha mais velha, Pia, apenas quinze anos quando ela e a irmãzinha se tornaram órfãs. Não quis nem ouvir falar em entregar a criança a estranhos, para ela mesma ganhar a vida em trabalhos agrícolas: permaneceu na casinha que lhe construíra o pai, alimentando-se a si mesma e à irmã com o produto de seu fuso e a colheita de um milharalzinho por ela mesma cultivado; com isto se mantinha, e à pequena, em tamanha limpeza de trajos e em tão correto procedimento, que todos lhe tributavam louvores e as mães costumavam apresentar às filhas as duas órfãs como exemplares de boa educação.
Era, está claro, um louvor pago duramente, pois, naquela pobreza, tinha ela de trabalhar dia e noite para obter o necessário; nem sequer nos feriados podia encostar a roca num cantinho. Entretanto, não lhe faltavam oportunidades: era só ela querer. Não somente de muitos lados lhe ofereciam auxílio e presentes de amigo; não somente várias pessoas se teriam encarregado da pequena, criança inteligente e meiga: também quanto a si mesma poderia encontrar mais de uma proposta aceitável, pois passava por ser a moça mais bonita da aldeia, e qualquer pretendente, inclusive os mais ricos, só podia lucrar com uma dona de casa assim. Ela, no entanto, se limitava a sacudir a cabeça em resposta a todos os oferecimentos amáveis, recusando todos os presentes e fazendo voltar, desenganados e tristes, quantos moços lhe faziam a corte.
Essa intratabilidade era naturalmente levada a mal por todos, e o próprio cura da aldeia sentiu-se impelido, por fim, a interrogar a sua estranha penitente acerca do misterioso orgulho que a fazia recolher-se inteiramente em si mesma. 0 que ela lhe respondeu nada tinha de criminoso, motivo por que não o confiou ao sacerdote sob o sigilo da confissão. Assim, pois, dentro em breve a aldeia em peso ficou sabendo com que olhos Pia considerava o futuro.
Nascera ela exatamente naquele 14 de junho de 1800, quando se travou a batalha de Marengo, tão perto de Spinetta. Nas horas difíceis do parto, a mãe ouvira o troar dos canhões dos franceses e sofrera dupla ansiedade, pois que o marido estava combatendo lá mesmo, sob as ordens de Desaix. Destarte, viera a criança ao mundo inegavelmente sob o signo de Marte, e tivera por pai um herói, a quem o primeiro-cônsul em pessoa elogiara no campo de batalha, nomeando-o sargento. 0 orgulho da família só fez aumentar quando, cinco anos depois, o poderoso, ante o qual tremiam todos os impérios da Terra, apareceu de novo perto daquela aldeia obscura, desta vez como imperador da França e na iminência de pôr na cabeça, em Milão, a coroa da Itália também. 0 imperador veio passar revista às tropas na planície de Marengo. Aí a esposa do sargento não pôde resistir à tentação; partiu em companhia da filha e, juntando-se à população inteira da aldeia, foi assistir àquele espetáculo magnífico. A meninazinha, com toda a vivacidade dos seus cinco anos, não compreendia bem, naturalmente, o que aquilo significava. Terminada a revista, quando o imperador, com o seu brilhante séquito, retornava lento a Alexandria pela estrada real, estava a mãe na primeira fila da ala interminável formada pelos camponeses dos arredores. Para que Pia pudesse ver direito o imperador, levantou-a bem alto, apesar de a pequena já se manter com firmeza nas próprias pernas. Ao ouvir os gritos de “Lá vem ele! Ei-lo! É aquele que vai na frente, a cavalo! Evviva l’Imperatore!”, a meninazinha, quando o raio dos olhos escuros do soberano lhe feriu o rostinho vermelho e branco, presa de repentino encanto, estendeu os braços nus ao herói admirável e gritou evviva! com voz tão clara, que essa manifestação de alvoroço infantil chegou aos ouvidos do monarca por cima de todas as demais vozes, e fê-lo colher um instante as rédeas. Num abrir e fechar de olhos, ergueu a franzina criança e colocou-a na sela diante de si, encarou-a fixo por alguns segundos nos grandes olhos negros, que suportaram aquele olhar demoníaco sem pestanejar, beijou a pequena fronte orlada de cabelos crespos, e depois devolveu a menina à mãe, que, imóvel como uma estátua, fascinada por aquele favor inaudito, nem sequer viu atrás do triunfador, que esporeou o cavalo, o próprio marido, passando exausto e coberto de pó, dentro do seu regimento, perante a mulher e a filha.
Ninguém há de estranhar que a ocorrência tenha exercido impressão descomunal e inesquecível sobre as testemunhas oculares, particularmente os conhecidos mais próximos da família. “Esta é a Pia, a quem o imperador beijou!” — ouvia-se durante anos ainda, cada vez que algum forasteiro reparava na linda menina esbelta, a qual, por sua vez, tanto pela maneira de trajar como pelo procedimento, dava a entender que se sentia de certo modo enobrecida por esse lendário acontecimento de sua infância. Apesar de pobre, Pia andava sempre calçada, nunca tolerava um remendo na saia ou na grosseira roupa de linho que ela própria fiara e tecera, e usava os longos cabelos numa trança larga por cima da fronte, como se fosse um diadema preto. Suas companheiras não gostavam muito dela, chamavam-lhe princesa e até imperatriz, o que ela aceitava como coisa perfeitamente normal; e junto aos rapazes procuravam fazê-la passar por louca, dizendo que sua cabeça, por detrás daquele diadema trançado, não regulava muito bem.
Contudo, essa maledicência não mereceu crédito da parte masculina da mocidade, tanto mais quanto não tinha fundamento. Pia, embora dotada de forte amor-próprio, não menosprezava ninguém; e se o beijo do imperador produzira tolices naquela cabeça jovem, tudo não passava de uma propensão a sonhar e a cismar, que se apoderava dela de vez em quando. Em tais ocasiões, cria ouvir vozes secretas que lhe falavam num magnífico futuro, brilhante e honroso, de modo tal que se sentia de novo presa do mesmo delicioso tremor que experimentara no momento em que o vencedor de Marengo a tomara na sela. Inteligente como era, bastava-lhe passear os olhos pelas pobres paredes da casa para se arrancar às insinuações de sua imaginação; e quando teve de cuidar sozinha da irmã, suas cismas se tornaram cada vez mais raras. Fosse como fosse, era por causa delas que sempre se recusava a empregar-se; e se, com todo o trabalho pesado, punha um especial cuidado no trajar, isto se explicava pelo íntimo pensamento de que um belo dia surgiria outro príncipe e olharia para ela; teria então de se envergonhar se andasse desleixada e suja.
No entanto, sua aversão aos numerosos pretendentes não provinha de ela só julgar digno de si algum grão-senhor; porém — como o confessara, enrubescendo, ao cura — da fiel afeição que tinha ao rapaz mais pobre de toda a aldeia. Era um jovem camponês chamado Maino, que também perdera os pais havia muito tempo, e tivera de ganhar a vida primeiramente como jornaleiro, depois como pedreiro, num trabalho honesto, porém rude. Aliás, esta circunstância não lhe punha termo ao bom humor, nem mesmo à impertinência: em toda a região não havia camarada mais alegre e impertinente, nem mais disposto a pregar uma peça a alguém. Era um rapaz de grande beleza, espessa cabeleira crespa, olhos negros e ardentes, peito largo e pernas de cervo; de mais a mais, possuía uma voz clara e sabia milhares de rispetti e de ritornelos, que acompanhava na guitarra. Seu único defeito, além da grande pobreza, era o sangue excessivamente férvido, que volta e meia o envolvia em brigas nas quais os facões saíam muito depressa da bainha. Até então, porém, houvera-se em todas sem cometer nada grave; e, à proporção que se tornava homem, reprimia cada vez mais as suas paixões, não pela razão, mas por um poderoso orgulho, que lhe fazia evitar rixas vulgares e poupar as forças para ocasiões mais sérias.
Também o amor contribuía para moderar aquele selvagem. Pia era apenas uma mocinha, quando Maino lhe declarou que ela não poderia pertencer a ninguém senão a ele. A despeito de todos os seus sonhos imperiais, nada lhe objetou a menina. A pobreza do jovem pretendente não a fez recuar: aprendera consigo mesma que nobreza verdadeira e mentalidade principesca podiam muito bem existir sob trajes humildes. No entanto, após a morte da mãe, pediu-lhe se abstivesse de freqüentá-la e não falasse a ninguém daquele acordo secreto antes de estar em condições de ter o seu lar, onde haveria um lugarzinho para a Margaridinha também. Esperaria com prazer, mas ele tinha de chegar a mais do que simples oficial: ela só daria a mão a um artesão livre e independente. Bem sabia como era necessário exortá-lo a um trabalho assíduo, pois Maino a teria desposado assim como estavam, para depois viverem do dia-a-dia.
Porém, depois que ela, a fim de se eximir da tacha de soberbia, confessara ao Sr. Cura o seu compromisso com o rapaz, e que essa revelação inesperada provocara sensação geral, Maino achou que já não havia motivo para reserva, e passou a freqüentar a amada em todos os feriados, e até, por um tempinho, nos dias úteis; entretanto, ela nunca lhe permitiu transpor a soleira da casa. Ali poderiam ser vistos nas lindas tardes, não raro até alta noite, sentados num banquinho, com a Margaridinha a brincar-lhes aos pés até que adormecia, abraçada ao pescoço do cachorrinho Brusco. Só então podia Maino permitir-se umas carícias inocentes na linda noiva pudica.
Todavia, apesar da impetuosidade da sua paixão, o respeito que ela lhe inspirava, como se fora um ser superior, mantinha-o dentro de certos limites.
— Ó Pia — dizia-lhe —, sei que não sou digno de ti; e se pudesse imaginar que um mortal pode amar-te melhor e mais fielmente do que o pobre pedreiro — pelo sangue de Cristo! —, me enforcaria na primeira árvore e te deixaria ficar feliz como mereces. Mas tem paciência! Todos os dias ainda acontecem no mundo verdadeiros milagres; e, assim como pôde o corso desconhecido tornar-se um grande imperador e o senhor do mundo inteiro (o seu esplendor só teve aquele indigno fim porque ele amava mais a si mesmo do que aos povos), assim o pobre Maino poderá um dia tornar-se um grão-senhor e tratar-te como a uma princesa no seu palácio.
Ela ria, incrédula, ao ouvi-lo falar desse modo, e procurava tirar essas quimeras da cabeça do amado, a fim de que ele se esforçasse o mais possível para alcançar a realização de seus desejos sem esperar milagres. Aconteceu, porém, algo que se assemelhava bastante a um milagre e tornou possibilidade imediata o que parecia estar a enorme distância.
Um belo dia, muito antes do fim do trabalho, Maino apareceu na aldeia com a fisionomia radiante. Contra a vontade da noiva, não quisera fechar todas as portas à sorte e fizera um jogo forte na loteria. Pois deu-se o que não se dera desde tempos imemoriais: saíram os quatro números em que ele jogara. Esse quaterno bendito trouxe-lhe um bom montezinho de liras, que o punha em condições de se estabelecer como artesão independente, montar casa e desposar a moça a quem o imperador beijara na fronte.
A essa altura a noiva concordou sem a mínima restrição. Seu consentimento em um matrimônio rápido provinha menos do dinheiro que do fato de este haver sido trazido pela própria deusa Fortuna. Via agora a Maino com outros olhos, como a um favorito dos deuses. Embora sua inteligência não lhe permitisse crer que se abriria ao noivo uma carreira tão brilhante como a do alferes corso, avistava-o, na imaginação, ornado de honrarias e dignidades, como o primeiro homem da aldeia, e talvez até prefeito de uma das cidades vizinhas, caso a fortuna lhe permanecesse fiel.
Além disso, tinha vinte e dois anos, gostava daquele atrevido com todo o coração e desejava realmente ser sua esposa.
O noivo fazia questão de um casamento esplêndido. Convidou à taberna todos quantos eram aparentados, de longe ou de perto, com as duas moças — isto é, a metade da aldeia —, contratou músicos em Alexandria e encomendou um tonel do melhor vinho do país. Escusado dizer que fez vestir à noiva e à menina Margaridinha lindos trajes novos, da cabeça aos pés. Até o cachorrinho Brusco obteve uma festiva coleira de veludo vermelho com uma campainhazinha de prata, e após o dia do quaterno o afortunado Maino nunca foi ver a noiva sem levar-lhe um ramalhete a ela e uma salsicha ao cachorro.
Quando, passados quinze dias sobre o feliz acontecimento, chegou o dia marcado para as bodas, apareceu o noivo a cavalo com quatro ou cinco amigos igualmente montados, pois a aldeia de San Giuliano Vecchio, onde todos trabalhavam, fica muito longe de Spinetta pela estrada de Tortona, e um pretendente e seus companheiros não deviam mostrar-se em vestes e sapatos cobertos de pó. A noiva recebeu-o rodeada de madrinhas. Era ela a mais bela e a mais majestosa de todas, com um riso tão radiante que o bom rapaz pensava que o Céu ia abrir-se, e só a custo lograva não dar pulos de alegria. Apeou-se com muito garbo, estendeu a mão à bem amada, e pronto se dirigiu com ela à igreja, procurando manter toda a dignidade requerida pelas antigas tradições da terra.
Desde tempos imemoriais era exigência de qualquer boda decente, em Spinetta, que no caminho da taberna à igreja, na ida e na volta, os amigos do noivo disparassem para o ar morteiros, espingardas, pistolas, tudo o que desse estouro. Desde a dominação absoluta de Carlos Félix, porém, como ainda não se houvesse extinguido o receio das conspirações dos carbonários, era proibido aos camponeses ver uma arma de fogo, e ainda mais ouvir-lhe a detonação. Os gendarmes reais, espalhados pelas aldeias, fiscalizavam rigorosamente a observação dessas ordens, e até os disparos feitos nas bodas, em sinal de regozijo, emudeceram a partir do ano 21.
Até então a alegre mocidade da aldeia, que em todas as festas gosta sobretudo de barulho, observara a proibição rangendo os dentes. Maino, porém, não se resignava a celebrar o próprio casamento sem aquela música belicosa. Julgava-a conveniente à noiva, filha de um valente soldado morto na guerra; e ainda que não se gastasse tanta pólvora como na coroação do grande imperador-soldado, ou no casamento deste com a filha do imperador da Áustria, as bodas de alguém que houvesse ganho um quaterno não deviam ser iguais às de outro camponês qualquer.
Quando o cortejo tinha percorrido metade do caminho da igreja, os amigos de Maino entraram a soltar vivas e gritos e a disparar as espingardas. O próprio noivo, ao ouvir esses rumores tão esperados, levou as mãos ao cinto, tirou um par de pistolas antigas, mas bem trabalhadas, e disparou-as para o ar, apesar dos insistentes pedidos de Pia, que previa desgraça.
Em circunstâncias normais essa contravenção teria sido, quando muito, castigada com multa ou apenas com uma severa advertência aos culpados. Infelizmente, porém, um dos dois gendarmes estacionados em Spinetta fora namorado da noiva. Concebera, baseado em sua autoridade, grandes esperanças, e considerava ofensa pessoal, ao mesmo tempo que manifestação de desprezo à honra da profissão, que a linda Pia tivesse preferido o pobre pedreiro. Na véspera do casamento, andou por toda parte chocando planos de vingança e convidou seus colegas de Parodi e Mandrogne, aldeias vizinhas, a virem a Spinetta no dia seguinte, pois podia haver briga; e se o vinho subisse à cabeça dos camponeses, eles dois não bastariam para evitar desordens.
Assim, quando estouraram aqueles tiros inocentes, surgiram no meio da estrada os seis gendarmes bem armados, pedindo a entrega das armas; e o rival repudiado, alcunhado Barbone, dirigiu-se a Maino com ar de triunfo, para prendê-lo como instigador de todo aquele barulho. Ou por já terem bebido em excesso do vinho tinto do ano anterior, ou por se acharem revoltados com tamanha malvadez, os rapazes opuseram-se abertamente à autoridade, e o próprio Maino, a quem semelhante humilhação em presença da noiva tornara quase branco, respondeu a Barbone com tão espirituosa ironia, que todos os presentes soltaram uma gargalhada. O rival furioso, esquecido de qualquer moderação, pegou o inimigo pela gola a fim de arrastá-lo pessoalmente à cadeia. Num relance a faca de Maino brilhou, como seus olhos em brasa; houve uma luta de punho contra punho, de espada contra faca, as mulheres e as crianças berraram, os homens foram tomados de verdadeira fúria. Entraram os gendarmes em luta com os amigos de Maino, e só houve trégua quando o sacerdote, que ouvira de longe o ruído da disputa, apareceu na soleira da igreja, todo paramentado, e levantou a voz para adverti-los. Verificou-se então, com espanto, que Barbone e dois gendarmes jaziam no chão, deitando sangue por várias feridas, e que os trajes domingueiros de Maino estavam também salpicados de sangue, enquanto pesadas gotas caíam duma fenda de sua manga de veludo.
Uma pausa sombria e um espanto silencioso sucederam, de repente, ao tumulto. O sacerdote aproximava-se a passos rápidos. Ninguém sabia como ia terminar a festa tão brutalmente perturbada. Maino foi o primeiro em voltar a si. Lançou um olhar de ódio mortal a Barbone, que gemia no chão, segredou ao ouvido da noiva petrificada uma palavra que ninguém compreendeu, abraçou-a com veemência, beijou-a na boca descorada, fez sinal a seus companheiros, e num abrir e fechar de olhos desapareceu em meio à multidão, no momento exato em que chegava o cura, ofegante, chamando o noivo pelo nome para informar-se do ocorrido.
Os tiros ouvidos pouco antes e a vista dos defensores da lei estendidos no chão fizeram-no adivinhar a verdade. Apenas mandou vir o barbeiro e perguntou aos feridos como se sentiam, vieram-lhe anunciar que o noivo e todos os seus companheiros tinham de novo cavalgado e partido com a rapidez do raio, provavelmente para a mata próxima de Tortona, a menos que houvessem tomado esse caminho para despistar os perseguidores. Nesse caso teriam encontrado um esconderijo nos montes e nas selvas em redor de Novi.
Tal foi o lastimável desfecho das bodas. O noivo fugiu para o mato como um criminoso, um bandido; quanto à noiva, teve de retornar à sua casa solitária e recomeçar a antiga e monótona vida de solteirona ao lado da irmãzinha.
Depois do primeiro susto, no entanto, a linda moça pensativa parecia resignar-se a esse partido sem maior dificuldade. Esquiva a todas as manifestações de compaixão, pegou Margaridinha pelo braço e enfiou pelo caminho de sua casinha abandonada, onde os vizinhos tornaram a vê-la, naquele mesmo dia, no traje de sempre, a cuidar com indiferença dos trabalhos da casa.
Ao cura, que, fiel ao dever, veio visitá-la à noitinha para se informar do seu estado de espírito, declarou que naturalmente lamentava o acontecido, mas confiava na sua estrela e na de Maino. Sabia serem ambos fadados a um destino excepcional e excelso; tudo estava em não desanimar durante o tempo da espera.
De suas palavras se depreendia que o noivo lhe estava mais perto que nunca do coração, por se haver oposto com tamanho heroísmo à impertinente arbitrariedade. Quanto a esse ponto, não se deixara convencer nem sequer pelo padre. O próprio imperador Napoleão — afirmava — não teria realizado nem metade do que fizera, se tivesse dado a qualquer gendarme o direito de lembrar-lhe as prescrições existentes.
O padre viu, perplexo, que uma estranha espécie de mania de grandezas se apoderara daquela cabecinha de mulher, e resolveu combatê-la na medida de suas forças. Naturalmente isto só podia ser feito aos poucos. Não tardou se soubesse, na aldeia, que Maino fora visto com os seus companheiros nas proximidades de Novi. Embora fossem insignificantes as feridas de Barbone e de seus colegas, governo e polícia não podiam tomar o caso por brincadeira, num momento em que o carbonarismo, mal refreado, continuava ardendo sob as cinzas e só esperava o primeiro sopro de vento para inflamar-se. Iniciou-se, pois, enérgica perseguição ao perturbador da ordem e aos seus cúmplices, no estilo de todas as razias policiais, em que sempre se deixa à fera perseguida o tempo de escapar, em parte para prolongar quanto possível o prazer da caça. Dessa maneira o poder do Estado transformou os pobres-diabos, que apenas se haviam ensaiado como diletantes e por necessidade na arte de saltear, em refinados virtuoses, que terminaram fazendo da necessidade virtude, e por nada neste mundo trocariam o seu novo ofício pela antiga profissão, tão penosa.
Tudo isso chegava aos ouvidos de Pia, que parecia considerá-lo sem o menor desespero, como coisa natural e de modo algum infamante. Concordavam todos, aliás, em dizer que o seu Maino exercia de modo generoso o ofício de salteador, poupando e até auxiliando os pobres e miseráveis, atacando só os grandes e poderosos, sem se manchar com atos sanguinários ou traiçoeira crueldade. A aldeia de Spinetta, onde até então ele não gozava de nenhuma consideração particular, começava a aludir ao filho famoso com admiração e respeito. Quem por acaso o encontrasse nos montes não se cansava de elogiar-lhe a aparência vistosa e a maneira fidalga como tratava os concidadãos. Pelo contrário, a Barbone — que ao cabo de umas semanas de hospital, embora manquejando por causa da ferida na coxa e arrimado a um bordão, retomara o serviço — todos o evitavam; com toda a sua dignidade oficial, ele só via caras fechadas e ouvia pragas mal reprimidas, andasse por onde andasse.
Assim decorreram alguns meses. O verão aproximava-se do fim. A noiva solitária perguntava a si mesma, suspirando, que fim levara nos montes, durante a estação rigorosa, a fera perseguida, e sua confiança na estrela de Maino entrava a declinar. Uma noite, no momento em que a Lua apontou, brilhante, acima do telhado da igrejinha, o cura de Spinetta, a quem a velha criada acabava de servir a terrina com a polenta e o prato com o pão e as azeitonas, estava sentado na cozinha, onde usava tomar as suas refeições, a uma mesinha perto do fogão. Preparava-se para descer à adega, a fim de encher de vinho tinto um frasquinho, quando a porta se abriu muito devagar. Ouviu-se um “boa noite, Sr. Cura”, e um homem de vestes estranhas passou pela soleira. Na realidade, assemelhava-se às figuras de ladrões fantasticamente enfeitados que, na Itália, só se vêem no teatro, nas representações de Fra Diavolo. Trazia a tiracolo uma excelente espingarda inglesa de dois canos; do grande xale de seda vermelha que lhe envolvia a cinta emergiam duas pistolas de cabo prateado; tinha o rosto e as mãos limpas, e os cabelos crespos reluzentes de óleo aromático.
O cura, que de pronto reconhecera o famoso herói de Spinetta, assustou-se, apesar de tudo, e fitou a aparição sem falar, de olhos escancarados, enquanto a velha criada se refugiava, berrando, ao pé do fogão. Maino, porém, aproximou-se com um cordial aceno de cabeça, tirou o chapéu de abas largas e pluma trêmula, cuja longa corrente de ouro fez tinir nos ladrilhos, e pediu ao reverendo que ficasse descansado: não tinha contra ele más intenções, nem queria incomodá-lo senão o tempo necessário para resolver o assunto que ali o trouxera, a saber, que seu casamento, tão desagradavelmente obstado havia algum tempo, fosse afinal efetuado com todas as regras.
Fez um sinal em direção à porta, e Pia entrou, tímida, de vestido de noiva como da última vez, mas via-se quão poucos momentos tivera para se enfeitar. Atrás dela, divisavam-se no corredor várias silhuetas escuras com as espingardas cintilantes; e em frente à casa uma grande multidão, aparentemente toda a população de Spinetta, aguardava o que ia acontecer.
O cura, embora muito mais corajoso que o seu famoso colega D. Abbondio, compreendeu que não podia pensar em resistência; e como todas as formalidades de praxe tinham sido satisfeitas antes do primeiro dia marcado para a cerimônia, sua consciência sacerdotal nada tinha que opor à bênção daquele consórcio. Contudo, julgou necessário perguntar se Maino estava certo de que a cerimônia não seria outra vez impedida por um protesto do poder secular, ao que o noivo, que depois de chefe de bando parecia ter crescido algumas polegadas, declarou com um sorriso superior que até o dia seguinte certamente não seriam incomodados, pois tivera o cuidado de pôr em segura custódia os pérfidos desmancha-prazeres: os dois malditos tratantes, o Barbone e seu miserável adjunto, jaziam atados por cordas novas no depósito das bombas, mais que suficientemente aferrolhado e vigiado. Ele queria, aliás, passar a noite com sua jovem esposa em casa desta, e no dia seguinte deixar a aldeia por muito tempo, talvez para sempre.
— Sr. Cura -— concluiu, com um sorriso que lhe pôs à mostra todos os dentes, iluminados pela luz do fogão —, um galantuomo encontra a sua pátria em qualquer lugar onde há galantuomini, e neste nosso bendito Piemonte essas frutas são tão raras como figos no telhado da igreja. Tenciono ir morar com minha mulher na França ou na Espanha, onde cada um tem o tratamento que merece. O melhor prato, Sr. Cura, perde o sabor se é queimado, e os meus desafetos daqui levantaram uma fumaça e um fedor tais que fazem brotar as lágrimas. Não lhe peço, aliás, reverendo, serviço gratuito: eis aqui a taxa!
Aproximou-se da mesinha e contou uma dúzia de brilhantes ducados de ouro, depondo-os junto à lâmpada. A essa altura o padre notou que ele vacilava e as mãos lhe tremiam um pouco. Devia ter bebido copiosamente, e o menor empecilho à sua vontade podia transformar o travesso bom humor que lhe dera o vinho numa raiva incontida.
Não hesitou o padre um instante sequer: recebeu o pagamento principesco e declarou-se pronto a preceder os noivos no caminho da igreja.
Nesse ínterim a tardinha fora substituída pela noite, mas o trecho de rua entre a casa paroquial e a igreja estava alumiado por uma porção de archotes empunhados pelo numeroso séquito de Maino, sem falar nos lampiões e nas velas com que, por ordem superior, os habitantes da aldeia haviam iluminado as suas janelinhas. Também esses pareciam ter esvaziado mais de um copo, a expensas de seu famoso concidadão. Assim como assim, estavam todos alegres, e receberam o sacerdote e os noivos com vivas e jubilosos disparos de armas, que tinham um som maligno, agora que os inimigos dessa música inocente só podiam ouvi-los de longe, do fundo da prisão escura. Nem faltavam outros instrumentos: havia na aldeia duas guitarras e uma clarineta, cuja exibição se reservava, porém, para o banquete nupcial, na taberna.
No momento em que o padre e os nubentes pararam diante do altar, houve pequena demora. Fazia o noivo questão de que, além das duas velas acesas, se colocassem outras em todos os candelabros da igreja, e que esta fosse toda iluminada como nas maiores festas. Sem se deter muito em contá-lo, jogou o dinheiro necessário na pia batismal e ordenou tocassem ao órgão suas canções prediletas — uns cantos de guerra então em voga e uma ária de ópera célebre. Entretanto a humilde igreja se revestia de um esplendor fabuloso; e quando o belo rapaz fardado e armado conduziu a linda noiva ao altar, um grito de admiração irrompeu da numerosa assistência; e qualquer dos moços presentes haveria trocado a sorte com o noivo, e qualquer moça com a noiva, mesmo ao preço do exílio e da excomunhão.
O cura, porém, o único a sentir-se pouco à vontade, apressava-se em pôr termo ao discurso e à bênção; e agora que os noivos haviam realizado o seu intento, ligando-se indissoluvelmente um ao outro, queria retirar-se para a sacristia com um rápido adeus. No entanto, Maino embargou-lhe o passo e disse-lhe cortesmente, mas também naquele tom estranho:
— Reverendo, estamos casados, a despeito do Sr. Barbone e do respeitável governo; mas V. Revma. tem de nos prestar mais um serviço.
— Não te compreendo, filho — respondeu o padre, que mal alcançava esconder a sua consternação ao ouvir falar em nova exigência.
— Prestei juramento sagrado, pelas sete chagas de nosso Salvador — disse Maino —, de não sair desta igreja com minha querida esposa, a Sra. Pia Maino, antes de sermos coroados imperador e imperatriz de Spinetta. V. Revma. deve saber que minha mulher é a coroa e a pérola de todas as mulheres, e foi reconhecida como tal desde criança pelo maior dos heróis do século e de todos os tempos, que a beijou na fronte, querendo com isso proclamá-la sua igual, digna de trazer um dia uma coroa. Eis por que lhe rogo, visto que se acha entre nós, proceda à nossa coroação e unção. Isto se faz num instante; e quanto à taxa, para compensá-lo do incômodo...
Meteu mais uma vez a mão no bolso para tirar dinheiro.
— Estás brincando, meu filho — disse o eclesiástico, procurando sorrir. — Quem sou eu, para conferir honrarias profanas, ainda que tu e tua jovem esposa sejais dignos delas? Além disso, com que vos coroaria e ungiria? Na nossa humilde igreja...
— Nada de rodeios, reverendo, nada de farsas, com perdão da palavra. V. Revma. não quer executar o ato sagrado e não nos considera dignos dele. Mas eu sei o que estou dizendo. Possa eu valer tão pouco quanto um pêlo da barba do Barbone, se sair desta igreja sem ser coroado! Não faça, pois, tantas cerimônias!
Tem santos óleos à vontade lá na lâmpada eterna, ao pé da Madona; e quanto às coroas...
Passeou os olhos ao longo das paredes, aproximou-se tranqüilo de um par de figuras de santos, de tamanho natural, postas sobre colunelos, e que traziam antiqüíssimas coroas de zinco dourado, cobertas de pó. Arrancou duas delas, soprou a poeira dos furos ornamentais e limpou a douração na manga do casaco de seda; levou-as cuidadoso ao altar e colocou-as na tampa do tabernáculo:
— Ei-las! À falta de outras, servem. Vamos, mãos à obra!
— Maino! — gritou a jovem esposa, no auge do horror e do espanto. — Que fizeste? Os santos do Céu...
Não chegou ao fim; um olhar do marido a emudeceu.
Porém o cura não se deixou intimidar por aqueles olhos dominadores.
— Protesto solenemente contra tamanho sacrilégio! — bradou em voz tão alta, que até os destemidos companheiros de Maino estremeceram. — Sabes, fanático, que estás provocando a cólera de Deus ao tocares nos adornos da igreja, nas coroas dos santos, para pô-los ao serviço de teu orgulho profano? Sai daqui, e implora à Santíssima Virgem que te perdoe esse ato sacrílego e interceda em teu favor junto ao Senhor do Céu! Por mim, lavo as mãos; não tenho parte nesta profanação.
Com tais palavras, deu meia-volta e, em companhia do menino que o auxiliara no casamento, desapareceu na sacristia antes que alguém pudesse lembrar-se de o deter.
Durante um momento pareceu que esse corajoso protesto exercera realmente alguma impressão na alma empedernida de Maino. Mas a antiga impertinência reacendeu-se, e ele gritou numa gargalhada:
— Vai-te embora, mesquinho servidor da tradição, pobre padreco de aldeia que não sabes tratar com pessoas ilustres! O que eu jurei, hei de cumpri-lo contra a tua vontade e sem o teu auxílio. Não pôs o grande imperador, em pessoa, a coroa de ferro na própria cabeça, em Milão, porque sabia que as mãos de um poltrão dizedor de missas tremeriam se ele lhes atribuísse tal encargo? Pois, meus amigos, farei o mesmo: coroarei com as minhas próprias mãos a mim e à minha querida esposa, e direi como ele disse em Milão: “Deus me deu esta coroa: ai de quem nela tocar!”
Dizendo, tomou com as duas mãos as duas coroas e pôs uma na própria cabeça e a outra na de sua recente esposa, sem se importunar com os gestos de protesto de Pia, que novamente caíra de joelhos e, como que mordida por uma cobra, estremeceu quando o leve adorno de metal lhe tocou a fronte. A coroazinha, aliás, não lhe ficou presa no cabelo; caiu nas escadas do altar. Um menino da aldeia apanhou-a. Maino, porém, trazia o seu diadema imperial como se fora forjado sobre a cabeça; e quando, a um seu gesto senhoril, os companheiros levantaram um brado de júbilo e acorreram a dar parabéns ao imperador e à imperatriz de Spinetta, ergueu do tapete a moça ajoelhada, pediu-lhe, a um tempo com seriedade e ternura, que voltasse a si e se lembrasse de sua dignidade; e conduziu-a, entre alas de povo, à taberna, aonde todas as testemunhas dessa estranha cerimônia afluíram em tropel.
Ouviram-se novas salvas de regozijo, às quais se vieram misturar os sons mais modestos da clarineta e da guitarra; mas os convidados haviam emudecido inteiramente. Só o vinho, que a expensas do noivo corria em jorros, pôde soltar-lhes as línguas empedernidas. No meio da festa, não cessavam os circunstantes de olhar com íntimo horror para a brilhante coroa que o hospedeiro trazia em seus cabelos crespos; e observavam baixinho, entre si, como a linda mulher ficava pálida e muda ao lado de Maino, de espírito completamente alheado, sem ter umedecido os lábios com o vinho rubro e sem ter-se rido uma única vez das picantes pilhérias do entrevado Beppo, o bufão oficial da aldeia, pilhérias de praxe em todas as bodas, e a que nem agora ele fugia.
— Tudo está certo — murmurou o barbeiro ao ferreiro seu compadre —, tudo está certo: nem por estar no mato o pessoal pode dispensar mulheres, e o casamento foi feito in regola; mas este negócio de coroação ainda vai custar-lhe caro, sou eu quem lhe digo, compadre. Um sacrilégio é um sacrilégio; a gente pode se indispor com o governo, mas com a Igreja não tem conversa. Olha só a Pia. Até parece que atrás da fronte alguma coisa se transformou em pedra, quando a coroa benta a tocou. Mas, afinal, que temos nós com isso? Bebemos o vinho de Maino por sermos a isto obrigados, senão ele se ofendia e se vingava de nós. Podemos jurá-lo no tribunal, se eles se lembrarem de nos prender. Maino que veja como se sai desta.
O homem a quem se referiam tais palavras não parecia preocupar-se absolutamente com a maneira por que teria de responder pelo que fizera. De rosto radiante em meio dos convidados, que bebiam à larga, só uma que outra vez esvaziava o seu copo, mas era o mais alegre e o mais loquaz de todos. Ria de cada uma das gracinhas tolas com que o bufão lhe homenageava a alteza imperial e o estado de marido, e contava toda espécie de historietas divertidas da vida livre e ousada que levava nos montes. De vez em vez até cantava uma cançãozinha de amor, apertando mais a si a sua muda noiva, sem lhe estranhar a atitude absorta e rígida. Somente quando os moços começaram a dançar, e eles dois também se levantaram, foi que reparou na palidez mortal do rosto dela. Com suave insistência, levou-a para o quintal silencioso da taberna e perguntou-lhe o que tinha, se não se sentia bem. Em vez de responder, ela o abraçou com ansiosa veemência e com tamanha força, que lhe fez quase parar a respiração; e ele sentiu-lhe tremer todo o corpo, como presa de febre.
Em vão lhe fazia perguntas e pedidos. Pia se obstinava em seu mutismo, de tal sorte que ele acabou deixando de interrogá-la; afinal, tão grandes eram as emoções daquele dia, que poderiam fazer sair dos eixos até um temperamento forte. Decidiu, pois, retirá-la do tumulto da festa, uma vez que não podiam dormir muito tempo, devendo cavalgar e partir para o seu esconderijo nos montes antes da alvorada.
Sem se despedir dos seus convidados, Maino conduziu a noiva, que o acompanhava feita uma sonâmbula, até à casinha dela. A pequena Margaridinha fora recolhida, por aquela noite, em casa de uma boa senhora, que tencionava tomar conta dela definitivamente: assim, não teria a criança de abandonar para sempre a sua terra. Os recém-casados foram acompanhados unicamente pelo cachorrinho Brusco, que ia alegre à frente dos dois, com a sua campainha a tinir, e introduziu-se até na câmara nupcial, onde se agachou na esteira, no cantinho de costume.
Por volta da meia-noite Maino também adormecera, e a Lua, que espiava através do postigo aberto da janela, não podia encontrar em toda a redondeza rosto mais ingênuo e pacato que o do jovem proscrito, que parecia dormir o sono dos justos. Depusera a coroa na mesinha-de-cabeceira, sobre as vestes e as armas. No meio das paredes nuas e da mobília pobre, o adorno reluzia de maneira admirável. Quanto à coroa de Pia, essa ficara na taberna.
Não devia ter dormido muito. O galo ainda não cantara, e mal aparecia na barra oriental do céu a tênue primeira luz do arrebol, quando Maino, em meio ao mais deleitável sonho de amor, ouviu um latido do cãozinho; e com a agilidade que aprendera em sua vida de bandido, afugentou das pálpebras o peso do sono e ergueu-se na cama.
O lugar a seu lado achava-se vazio. Com o postigo meio aberto, pôde vislumbrar na penumbra tudo o que havia no quarto. Viu uma jovem sentada numa cadeira de palha, ao pé da janela, segurando um espelho nos joelhos e procurando com a outra mão fixar a coroa na cabeça, o que só dificilmente conseguiu. Vestida apenas da camisa em que saíra da cama, tinha os cabelos soltos a cobrirem-lhe em ondas largas as espáduas nuas. Sorria para o seu retrato no espelho e cantarolava em voz surda uma das estrofes que Maino cantara aquela noite. Foi a sua voz que despertou o cachorro, que rondava agora a ama com um ganido tímido.
— Pia! — gritou Maino, num susto mortal — já acordaste? Que estás fazendo aí perto da janela? Ainda não amanheceu. Eles virão chamar a gente quando for preciso; ordenei-o com toda a severidade. Vem! Depõe a coroa. Dorme mais uma horazinha... o caminho é longo, e não estás acostumada a andar a cavalo...
— Silêncio! — disse ela com o dedo em riste, mas sem se voltar para ele. — Não ouves? Estão chegando. Tive de me preparar para a recepção... uma imperatriz não deve mostrar-se ao povo sem a sua coroa... porém ela não quer ficar em minha cabeça... bem... agora... agora, sim... está certo... Só me falta o manto de púrpura.
Num instante Maino saltou da cama e vestiu-se às pressas.
— Pia — implorou-lhe, enquanto enfiava o casaco —, peço-te por todos os santos!
— Silêncio! — volveu Pia. — Não invoques os santos! Com eles estragamos o negócio. Estão zangados conosco, por lhes havermos tirado as coroas. Mas — e sorriu, com ar estranhamente esperto — um burro faminto come a palha da cama. A necessidade não tem lei... por que é que o joalheiro não aprontou as nossas coroas para o momento útil? Uma vez os bons santos podem ficar de cabeça descoberta... ah-ah-ah!
Maino correu para ela, agarrou-lhe as mãos frias como gelo e tocou-lhe a fronte, que parecia de mármore:
— Misericórdia! Estás sonhando, Pia! Acorda! Olha, aqui estou eu, Maino, o teu marido, a quem partes o coração com as tuas palavras sem nexo. Deita-te, mulherzinha, curte essa loucura com o sono. Infeliz de mim, que sou a causa de tudo isso!
— Não, não, não! — respondeu ela, olhando para a frente. — Não me enganes! Meu marido, o imperador, esteve aqui esta noite, mas depois saiu para a guerra, pois temos tantos inimigos! Horrível como a grandeza é odiada, como a alteza provoca inveja! Mas o imperador meu senhor há de esmagá-los todos, e eu lhes porei o pé no pescoço. Depois poderemos reinar em paz e grandeza, e Brusco será lugar-tenente de Spinetta, enquanto nós partirmos em visita às nossas províncias. Assim... assim... será que a coroa dá agora um ar bem imperial à minha cabeça? Ainda há uma teia de aranha pegada nela... não faz mal... melhor até, é mais santo assim... Imperatriz Pia... é esse o nome que me devem dar... e quanto a meu marido... espere, como é que se chama, mesmo? Tem um nome bonito... tem-me beijado mil vezes... mas são criancices... Só poderemos pensar nisso quando todos os nossos inimigos... mas ouve! Ei-los!
Levantou-se da cadeira; o espelho deslizou-lhe dos joelhos e quebrou-se, tinindo, nos ladrilhos do quarto. Ela nem reparou; encostou-se à janela e fitou de olhos escancarados o amanhecer, lá fora. Maino, subjugado pela dor, estava diante dela. A desordem mental daquele ente querido, da qual ele devia sentir-se culpado, não lhe deixava outro pensamento. Buscou apartá-la da janela, implorando-a baixinho. Porém ela parecia não entender-lhe a voz, afastava-o com as mãos e permanecia como colada ao peitoril.
— Ei-los! — gritou de repente. — Ainda não os estás ouvindo? Ei-los! Que venham; estou pronta.
A essa altura, ele também ouviu um ruído esquisito, que vinha chegando pelo ar cinzento da manhã. Não era, porém, o tropel dos cavalos em que os seus companheiros deviam galopar em frente da casa, para despertá-lo e lembrar-lhe a fuga. Aproximava-se uma multidão de pessoas, mas a pé, cautelosamente; vinham pela rua principal. Deviam estar a uns cinqüenta passos, no máximo. Com rápida resolução, Maino correu ao quarto maior, ao lado, que servia ao mesmo tempo de moradia e cozinha, e tinha uma janela para a rua. Através da fenda do postigo, pôde espiar a aldeia. Viu uma tropa de soldados aproximando-se com precaução, depois parando não longe da casa. Reconheceu o velho inimigo, o Barbone, que parecia aconselhar-se com o sargento. Uma terrível claridade iluminou-lhe o cérebro: os dois prisioneiros tinham conseguido desvencilhar-se dos laços, abrir os ferrolhos do cárcere, por ardil ou traição, e trazer reforços de Alexandria. Onde os seus infelizes companheiros? Certo, não fora muito difícil vencê-los, aturdidos que estavam pelo vinho. Faltava o remate: surpreender o chefe dos bandidos no leito nupcial e tirá-lo dali, como os filisteus a Sansão, em corrente e laços.
Com uma praga enérgica, o moço duplamente infeliz recuou. Compreendera, num relance, que tudo estaria perdido se não se pusesse ao largo imediatamente.
— Pia! — disse, precipitando-se no quarto — querem prender-nos e levar-nos. O inimigo está pertinho, mas ainda nos podemos salvar; aqui, por esta janela, através do milharal, por detrás do celeiro... ninguém me apanha assim tão facilmente, e, se te apressares...
— Está certo — respondeu ela. — É bom sairmos daqui; estou impaciente de ver o nosso palácio. Mas a pé não é possível; não convém a uma imperatriz; manda-me o coche com os seis cavalos brancos... bonito... nem os santos os têm melhores...
— Se a tua vida e a minha te são caras, minha mulherzinha, vem! — disse ele com desesperada pressa, enquanto procurava atirar-lhe um lenço à nuca descoberta. — Três segundos mais, e será tarde... e nós... não me estás ouvindo? já não me conheces?
— Não me toques, atrevido! — gritou ela, com os olhos chamejantes. — Conheço-te bem... estás ligado aos nossos inimigos... não queres homenagear a minha majestade, como deves... mas juro-te pela coroa que tenho na cabeça...
— Deus se compadeça da tua pobre alma! — bradou Maino, retirando-a da janela. — Fugirei sozinho, e virei buscar-te quando a tua pobre cabeça voltar a regular bem. Boa noite, minha mulher.
Apanhou do banquinho, à pressa, as suas armas, apertou ao coração a pálida jovem, e pulou, pelo baixo peitoril, no quintal escuro. No mesmo instante se ouviram as coronhadas dos soldados no portão da frente; vozes ressoaram, chamando Maino; o cachorrinho latiu forte, e a casa estremeceu aos golpes com que procuravam rebentar a porta. Súbito, ressoou um tiro dentro da casa; houve um gemido, gritos e berros — “Assassinos!” — de todos os lados; o portão cedeu, e a tropa armada penetrou na casa silenciosa. Como não encontrassem ninguém, entraram no quarto, onde deram com a pálida criatura sentada à beira do leito, a coroa na cabeça, os braços cruzados no peito, a saudá-los com um riso silencioso e solene, como para lhes agradecer o terem vindo render-lhe homenagem.
O espetáculo paralisou o ímpeto dos invasores, e por alguns minutos ninguém se atreveu a quebrar o silêncio. Só depois de alguns soldados haverem trazido o Barbone — que, ao querer prender Maino, fora abatido por uma bala mortal do seu inimigo — é que a tropa, intimidada, pegou a mexer-se, inquieta. Quiseram pôr o agonizante na cama, onde a louca permanecia como quem não tem a menor noção do que se lhe passa em redor. Porém o moribundo, ao reconhecer, com os olhos mortiços, aquela figura branca, fez um violento gesto de horror, indicando que não queria tocar naquele leito. Estenderam-no, pois, no chão, aos pés da coroada, que o fitou com sorriso condescendente. Poucos minutos depois ele expirava, antes que lhe pudessem trazer o sacerdote.
Nunca mais viram Maino, que logrou escapar. Soube-se apenas, por uma velha que fora passar a noite na cozinha para vigiar a pobre demente, que mais ou menos uma semana depois desses acontecimentos aparecera, montado num cavalo de cascos envolvidos em panos, a fim de ver a bem-amada e levá-la consigo em sua peregrinação pelo mundo fora. Pia reconheceu-o de pronto e manifestou alegria ao revê-lo; mas, quando ele a quis abraçar, recuou estremecendo, como se a morte quisesse atraí-la, e pôs-se a chorar e a lamentar-se com tanta veemência, que ele teve de convencer-se da inanidade de qualquer esforço. Então separou-se dela com profunda mágoa, deixando-lhe numa bolsa de couro um monte de ouro, a fim de protegê-la para sempre contra a miséria, e desapareceu para nunca mais voltar.
A bolsa foi encontrada no dia seguinte, no peitoril, pela guarda de Pia, e entregue ao cura, que deu o dinheiro à igreja para se rezarem missas por alma da pobre louca e do pecador seu esposo. Ignora-se que fim levou o fugitivo. Consta, porém, que até quase 1850 se via diariamente, em frente à última casa de Spinetta, uma pobre mulher sentada ao sol, trazendo na mão uma roca vazia, que inclinava como um cetro para os transeuntes, sempre meiga e cordial, os grisalhos cabelos trançados na fronte à feição de um diadema, pois a coroa fora devolvida aos santos. As crianças que passavam por ela, ao irem à escola, acenavam-lhe, dizendo: