Filho de Joseph Hugo e de Sophie Trébuchet, nasceu em Besançon, no Doubs, mas passou a infância em Paris. Estadas em Nápoles e na Espanha acabaram por influenciar profundamente sua obra. Funda com os seus irmãos em 1819 uma revista, o Conservateur littéraire (Conservador literário), que já chama a atenção para o seu talento. No mesmo ano, ganha o concurso da Académie des Jeux Floraux.
O seu primeiro recolhimento de poemas, Odes, é publicado em 1822: tem então vinte e sete anos.
Com Cromwell, publicado em 1827, alcança o sucesso. No prefácio deste drama em versos, que não foi encenado enquanto esteve vivo, opõe-se às convenções clássicas, em especial à unidade de tempo e à unidade de lugar.
Tem, até uma idade avançada, diversas amantes, sendo a mais famosa Juliette Drouet, atriz sem talento que lhe dedica a sua vida, e a quem ele escreve numerosos poemas. Ambos passavam juntos o aniversário do seu encontro e preenchiam, nesta ocasião, ano após ano, um caderno comum que nomeavam o Livro do aniversário.
Alugava apartamentos nos arredores de Paris com nomes falsos, onde encontrava-se com suas amantes. Numa dessas ocasiões foi flagradocom Léonie Briard, cujo o marido havia chamado a polícia, a mulher foi presa, quanto a Victor Hugo nada ocorreu-lhe.
Criado por sua mãe no espírito da monarquia, acaba por se convencer, pouco a pouco, do interesse da democracia ("Cresci", escreve num poema onde se justifica). A sua ideia é que "onde o conhecimento está apenas num homem, a monarquia se impõe." "Onde está num grupo de homens, deve fazer lugar à aristocracia. E quando todos têm acesso às luzes do saber, então vem o tempo da democracia".
Tendo se tornado favorável a uma democracia liberal e humanitária, é eleito deputado da Segunda República em 1848, e apoia a candidatura do príncipe Louis-Napoléon.
A LUTA COM UM MONSTRO
Depois do grande esforço, Gilliatt precisava recuperar as forças e começou a procurar alimento. Um grande caranguejo, assustado com a presença dele, tinha pulado na água, mas não mergulhou tanto que Gilliatt não o visse. Fugia, e Gilliatt correu atrás dele. De repente, não viu mais nada. O caranguejo metera se por algum buraco debaixo do rochedo.
Gilliatt atracou se aos relevos da pedra e esticou o pescoço, para tentar ver alguma coisa. Encontrou ali uma anfratuosidade que era mais que uma fenda, era um pórtico. O mar entrava por baixo desse pórtico, mas não era profundo. Via se o fundo coberto de pedrinhas, que eram esverdeadas e revestidas de filamentos, indicando que nunca estavam a seco. O caranguejo devia ter se refugiado aí.
Gilliatt pôs a faca entre os dentes, desceu do alto da rocha e saltou na água, que o cobriu quase até os ombros. Meteu se pelo pórtico, e penetrou num cor¬redor com um esboço de abóbada ogival por cima. As paredes eram polidas e lisas. Já não via o caranguejo. Tomara pé, caminhava, e diminuía se a luz. Começou a não ver coisa alguma.
Depois de quinze passos, cessou a abóbada e ele se achou fora do corredor. Havia mais espaço e mais luz. Os olhos iam se acostumando ao lugar e viam cada vez melhor
Descobriu ao alcance da mão uma fenda horizontal no granito. Provavelmente estava ali o caranguejo. Meteu a mão o mais que pôde, e procurou às apalpadelas naquele buraco de trevas. De repente, sentiu que lhe agarravam o braço. O que ele experimentou, nesse momento, foi o horror indescritível.
Uma coisa que era delgada, áspera, chata, gelada, pegajosa e viva torcia-se na sombra à roda de seu braço nu, e subia lhe para o peito. Era a pressão de uma correia, e o impulso de uma verruma. Em menos de um segundo, uma espécie de espiral tinha lhe invadido o punho e o cotovelo e tocava lhe o ombro. A ponta metia se lhe na axila.
Gilliatt atirou se para trás, e mal pôde fazê lo. Estava como que pregado. Com a mão esquerda que ficava livre, pegou na faca que tinha entre os dentes. Com essa mão, que segurava a faca, apoiou-se no rochedo com um esforço desesperado para retirar o braço direito. Só conseguiu inquietar a ligadura, que se apertou mais. Era flexível como o couro, sólida como o aço, fria como a noite.
Outra correia, estreita e pontuda, saiu do buraco da rocha. Era uma espécie de língua saindo de uma goela e lambendo medonhamente o corpo nu de Gilliatt. De repente, esticando-se desmedida e fina, aplicou-se à pele e enrolou-se no corpo. Ao mesmo tempo um sofrimento inaudito, sem comparação neste mundo, levantava-lhe os músculos. Gilliatt sentia que a pele se abria em muitos pontos, de modo horrível. Parecia-lhe que inúmeros lábios, pregados à carne, procuravam beber-lhe o sangue.
Terceira correia saiu fora do rochedo, apalpou Gilliatt e chicoteou lhe os lados como uma corda. Afinal fixou se como as outras.
A angústia, no paroxismo, é muda. Gilliatt não soltou um grito. Havia bastante luz para que ele pudesse ver as formas repelentes aplicadas ao seu corpo.
Quarta ligadura, esta rápida como uma flecha, saltou lhe em roda do ventre e aí se enrolou.
Era impossível cortar ou arrancar aquelas correias viscosas, que lhe aderiam estreitamente ao corpo por muitíssimos pontos. Cada um desses pontos era um foco de terrível e estranha dor. Sentia como se fosse engolido ao mesmo tempo por uma porção de bocas pequeninas.
Quinta ligadura saltou-lhe ao tronco, sobrepôs se às outras e foi enroscar se na altura do diafragma. A compressão ajuntava se à ansiedade. Gilliatt mal podia respirar.
Aquelas ligaduras, pontudas na extremidade, alargavam-se como as lâminas de espada, da ponta para o punho. Todas cinco pertenciam evidentemente ao mesmo centro. Caminhavam e arrastavam se para Gilliatt. Ele sentia deslocarem se essas pressões obscuras que lhe pareciam bocas.
Bruscamente uma larga viscosidade redonda e chata saiu de dentro da rocha. Era o centro, e as cinco ligaduras prendiam se a ele como raios a um eixo. Do lado oposto daquele disco imundo, podia-se ver o começo de outros três tentáculos, presos no fundo do buraco. No meio dessa viscosidade havia dois olhos que olhavam para Gilliatt. Ele reconheceu naquilo um polvo.
Para acreditar no polvo, é preciso tê lo visto. Comparadas a ele, as velhas hidras fazem sorrir. Em certos momentos, parece que o elemento fugidio que flutua em nossos pesadelos encontra paralelo na realidade, e dessas obscuras ficções do sonho surgem criaturas. O ignoto dispõe do prodígio e serve-se dele para compor o monstro. Orfeu, Homero e Hesíodo só puderam fazer a quimera, Deus fez o polvo.
Quando Deus quer, excede no execrável. Admitidos todos os ideais, se o terror é um fim, o polvo é uma obra-prima.
Mas onde reside o perigo do polvo? A baleia é enorme, o polvo é pequeno; o hipopótamo tem uma couraça, o polvo é nu; a jararaca tem um silvo, o polvo é mudo; o rinoceronte tem um chifre, o polvo não tem chifre; o escorpião tem um dardo, o polvo não tem dardo; o tubarão tem barbatanas cortantes, o polvo não tem barbatanas; o morcego tem asas com unhas, o polvo não tem asas; o porco espinho tem espinhos, o polvo não tem espinhos; o espadarte tem um gládio, o polvo não tem gládio; o torpedo tem um raio, o polvo não tem raio; o sapo tem um vírus, o polvo não tem vírus; a víbora tem veneno, o polvo não tem veneno; o leão tem garras, o polvo não tem garras; o gipaeto tem um bico, o polvo não tem bico; o crocodilo tem uma goela, o polvo nem tem dentes.
O polvo não tem massa muscular, nem grito ameaçador, nem couraça, nem chifre, nem dardo, nem barbatanas, nem asas, nem espinhos, nem espada, nem descarga elétrica, nem vírus, nem veneno, nem garras, nem bico, nem dentes. Mas o polvo é, de todos os animais, o mais formidavelmente armado.
O que é o polvo? É a ventosa.
Nos escolhos em pleno mar, onde a água mostra e esconde todos os seus esplendores, nas cavas de rochedos não visitadas, nas cavas desconheci¬das onde abundam vegetações, crustáceos e conchas, debaixo dos profundos pórticos do oceano, o nadador que se aventura, arrastado pela beleza do lugar, corre o risco de um encontro. Se tiveres esse encontro, não sejas curioso: foge. Entra se fascinado, sai se apavorado.
Nadando, o polvo conserva se, por assim dizer, na bainha. Nada com as antenas fechadas. Imagine um punho costurado dentro de uma manga. Esse punho, que é a cabeça, impele o líquido e avança com um vago movimento ondulatório. Os dois olhos, embora grandes, são pouco distintos por serem da cor da água. Uma forma cinzenta oscila na água, como um trapo. A pouco e pouco o trapo caminha para a vítima, sob a forma de um guarda-chuva fechado sem o tecido. De re¬pente abre se, e oito raios projetam-se bruscamente em torno de um saco que tem dois olhos. Esses raios vivem, flamejam ondeando. É uma espécie de roda que se desenrola, com 4 ou 5 pés de diâmetro.
Ati¬ra se ao infeliz. A hidra arpoa o homem, aplica se à sua presa, cobre a, envolve a com os seus longos braços. Por baixo é amarelada, por cima é térrea. Nada pode imitar esse inexplicável matiz de poeira, como se fosse um animal feito de cinza e morando na água. É aracnídeo pela forma, é camaleão pelo colorido. Irritado, torna-se roxo. Coisa horrível, é flácido. Os seus nós garroteiam, o seu contato paralisa. Tem um aspecto de escorbuto e de gangrena. É a moléstia feita monstruosidade.
Não se pode arrancá lo, pois agarra se estreitamente à sua presa. Como? Pelo vácuo. As oito antenas, largas na origem, vão se estreitando e terminam como agulhas. Debaixo de cada uma delas alongam se paralelamente duas filas de pústulas decrescentes, as grossas perto da cabeça, as pequenas na ponta, e cada fileira tem 25. Há cinqüenta pústulas em cada antena, e todo o animal tem quatrocentas.
Essas pústulas são ventosas. São cartilagens cilíndricas e lívidas. Na grande espécie, vão diminuindo de diâmetro, desde uma moeda de 5 francos até a grossura de uma lentilha. Esses pedaços de tubos saem e penetram na vítima. Podem penetrar no corpo de um homem mais de uma polegada. É um aparelho de sucção com a delicadeza de um teclado. Levanta se, esconde se, obedece à menor intenção do animal. As sensibilidades mais delicadas não igualam a contratilidade dessas ventosas, sempre proporcionadas aos movimentos internos do bicho e aos incidentes externos. É um dragão e é uma sensitiva.
Esse monstro é aquele que os marinheiros chamam polvo, que a ciência chama cefalópode, e que a legenda chama kraken. Os marinheiros ingleses chamam no devil fish, o peixe diabo. Chamam no também blood sucker, chupador de sangue. Nas ilhas da Mancha chamam no pieuvre.
Quando espreita a caça, o polvo esquiva se, diminui se, condensa-se, reduz se à mais simples expressão. Confunde se com a penumbra. Assemelha se a tudo, exceto a coisa viva. O polvo é o hipócrita, não se repara nele. Repentinamente, abre-se.
O que pode existir de mais medonho do que uma viscosidade com uma vontade? O viscoso cumulado de ódio?
É no mais belo azul da água límpida que surge essa hedionda estrela voraz do mar. O que é terrível é que não se o sente de longe. Quando a gente o vê, já está agarrado.
O polvo anda e também nada. É um tanto peixe e um tanto réptil. Arrasta-se no fundo do mar. Utiliza as suas oito pernas. Roja-se como a lagarta.
Não tem osso, nem sangue e nem carne, é flácido. Não tem nada dentro, é uma pele. Pode-se virar-lhe os tentáculos de dentro para fora, como dedos de uma luva. Tem um só orifício no centro dos oito raios. É frio todo ele.
Repelente bicho. É um contato hediondo essa gelatina animada que envolve o nadador, onde as mãos mergulham, onde as unhas trabalham, bicho que se rasga sem matar, e que se puxa sem desgarrar, espécie de criatura resvaladiça e tenaz, que escorrega entre os dedos. Nada iguala a súbita aparição do polvo, medusa servida por oito serpentes. Não há aperto igual ao do cefalópode.
É uma máquina pneumática que ataca. Luta-se com o nada ornado de patas. Nem unhas nem dentes, uma escarificação indizível. Uma mordedura é temível, mas menos ainda que uma sucção. A garra não iguala a ventosa. A garra é o animal que entra na carne, a ventosa é o homem sugado pelo bicho. Incham-se os músculos, torcem-se as fibras, rebenta a pele debaixo de um peso imundo, jorra o sangue e mistura-se horrivelmente à linfa do molusco. O bicho sobrepõe-se ao homem por mil bocas infames. A hidra incorpora-se ao homem, o homem amalgama-se à hidra. Ficam sendo um só. O tigre pode apenas devorar, já o polvo (horror!) aspira, puxa o homem a si e em si.
Atado, enviscado, impotente, o homem sente-se lentamente esvaziado naquele terrível saco, que é um monstro. Além do terrível, que é ser comido vivo, há o inexprimível, que é ser bebido vivo.
Aquele monstro era o habitante daquela grota. Era o medonho gênio do lugar, estava em sua casa. Quando Gilliatt, entrando pela caverna em busca do caranguejo, viu o buraco onde pensou que ele se tivesse refugiado, o polvo estava ali à espreita. Gilliatt metera o braço no buraco, e o polvo o agarrou. Estava preso, era a mosca daquela aranha.
Gilliatt tinha água até a cintura, os pés agarrados nos seixos arredondados e resvaladiços, com o braço direito atado pelas correias do polvo e o tronco do corpo quase desaparecendo debaixo das dobras e cruzamentos daquela atadura horrível.
Dos oito tentáculos do polvo, três aderiam à rocha, cinco aderiam a Gilliatt. Deste modo, agarrados ao granito por um lado e ao homem pelo outro, encadeavam-no ao rochedo. Gilliatt tinha sobre o seu corpo 250 chupadores. Estava apertado dentro de uma grande mão, com dedos elásticos e do comprimento de um metro, cheios de pústulas vivas que lhe fuçavam na carne.
Não se pode arrancar o polvo. Quem o tenta, fica mais fortemente amarrado. Ele aperta-se mais, o seu esforço cresce na razão do esforço da vítima. Quanto maior é a sacudidela, maior é a constrição.
Gilliatt só tinha um recurso: a faca. Tinha a mão esquerda livre, e nela a faca aberta. Mas não se cortam as antenas do polvo; é um couro impossível de cortar, pois resvala debaixo da lâmina. E tal é a forma de contato, que um corte nessas correias atingiria a própria carne.
O polvo é formidável, mas há uma maneira de vencê-lo. Os pescadores o sabem, os ouriços-do-mar também o sabem. Ele só é vulnerável na cabeça, e Gilliatt não o ignorava.
Há um momento para vencer o polvo, como o há para o touro. É o instante em que o touro curva o pescoço, é o instante em que o polvo estica a cabeça. Instante rápido. Quem o deixa escapar, está perdido.
O polvo procura apavorar a presa. Agarra e espera o mais que pode. Gilliatt tinha a faca na mão. As sucções aumentavam. Ele olhava para o polvo, o polvo olhava para ele.
De repente o bicho desprendeu do rochedo a sexta antena. Atirando-a sobre Gilliatt, procurou agarrar-lhe o braço esquerdo. Ao mesmo tempo esticou vivamente a cabeça. Mais um segundo, e a sua boca aplicar-se-ia sobre o peito de Gilliatt. Sangrando no corpo e preso pelos braços, ele estaria morto.
Mas Gilliatt vigiava. Espreitado, espreitava. Evitou a antena. No momento em que o bicho ia agarrar-lhe o peito, a sua mão armada abateu-se sobre o bicho. Houve duas convulsões em sentido inverso – a do polvo e a de Gilliatt. Foi luta de dois relâmpagos.
Gilliatt mergulhou a ponta da faca na viscosidade chata. Com um movimento giratório semelhante à torção de uma chicotada, fazendo um círculo à roda dos dois olhos, arrancou a cabeça como quem arranca um dente.
Estava acabado. O bicho caiu. Parecia uma roupa que se desprende. Destruída a bomba aspirante, desfez-se o vácuo. As quatrocentas ventosas largaram ao mesmo tempo o rochedo e o homem. Aquele andrajo foi ao fundo da água.
Gilliatt, ofegante da luta, pôde ver a seus pés, em cima das pedras do fundo, dois montes gelatinosos e informes – a cabeça de um lado, o resto de outro. Dizemos resto, porque não se poderia dizer corpo.
O animal estava bem morto. Gilliatt fechou a faca.