Mór Jókai de Ásva, escritor húngaro, nasceu em 19 de Fevereiro de 1825 em Budapeste e faleceu em 5 de Maio de 1904.
Jókai pertencia a uma família de nobres calvinistas. Aos vinte e um anos publicou seu primeiro romance, chamado Dias úteis. Formado em direito, pouco se interessou pela profissão, abandonando-a para dedicar-se inteiramente à literatura.
Em Pest, dirigiu a revista Életképek e casou-se com a atriz Róza Laborfalvi. Amigo íntimo do poeta Sándor Petőfi, com ele participou do movimento revolucionário de independência da Áustria. Durante o período de repressão que se seguiu, Jókai, como muitos outros escritores, teve de se esconder para não ser preso. Esmagada a revolta, consolou o país com o humor e otimismo inabalável de seus livros.
Escreveu, entre outras obras: A época de ouro da Transilvânia (1851), O mundo turco na Hungria (1853), Um nababo húngaro (1853), Kaarpáthi Zoltán (1854) e O novo proprietário (1904).
Na maioria de suas obras o real e o irreal confundem-se, permitindo um jogo luminoso de contrastes, tecnicamente muito originais. Autor de mais de cem volumes - romances, novelas e dramas, entre os quais Pobres, ricos e Rosa amarela - Jókai foi um dos escritores mais populares da Hungria e o maior romancista húngaro. Seus livros foram traduzidos para mais de trinta línguas e, vistos globalmente, formam um monumento mítico do passado e uma lição de otimismo.
DIVERTIMENTO FORÇADO
Todos vocês conhecem a Condessa Repey, não é verdade? Não a velha; a mais moça, aquela princesinha de pele bronzeada, o meu duende de olhos pretos; meu, está claro, é um modo de dizer. Todos a conhecemos: eu, vocês, eles; suspiramos bastante por ela: eu, vocês, eles; mas nenhum de vocês teve a sorte que eu tive, de ser companheiro de viagem dela na sua carruagem. Estava também a dama de companhia, é verdade; ainda assim, é uma sorte extraordinária. Pois é esta sorte que eu não quero ter nunca mais na vida.
Um belo dia, no seu castelo de Kerékvár, ela se lembra de que no dia seguinte há no cassino de Arad um baile a que ela não pode faltar; imediatamente manda atrelar os cavalos; não havia no castelo outro hóspede senão eu.
— Por favor, meu caro Barão, acompanhe-me até Arad.
Pois sim, meu caro Barão! Que é que eu lhe podia dizer? “Condessa, ma déesse,1 já é tarde, o carro vai virar, quebraremos a perna; e como vai dançar depois, de perna quebrada? Temos de cruzar três rios; a ponte de um deles está intransitável, na certa nos afogaremos. Perto de Szalonta, temos de atravessar uma floresta grande como o diabo; deve estar cheia de salteadores, e eu sozinho não poderei defendê-la. De mais a mais, para que partir hoje? Podemos embarcar de manhãzinha depois do chá, os quatro baios nos levam a Arad num vôo; chegaremos de tarde, e até à noite nos sobra tempo para prepararmos a nossa toilette”.
Podia falar quanto quisesse. Vocês conhecem a Condessa: quanto mais a gente procura dissuadi-la, tanto mais faz finca-pé. Não tinha a menor vontade, dizia ela, de correr. Queria era descansar, depois de uma viagem daquelas; se não, como poderia chegar a um baile já cansada, échauffada, brisada, maltraitada2? Aliás, ela gostava de viajar de noite, era a hora ideal, com as estrelas, as rãs e sei lá o que mais. Não havia nisso uma palavra de verdade: era apenas um amável capricho que nasceu naquela cabecinha mignone, e que tinha de se realizar, nem que o mundo viesse abaixo.
Enfim, não me restou alternativa senão esta: acompanhá-la ou ficar só no castelo; naturalmente adotei a primeira solução, e ela, para recompensar-me, permitiu que lhe ficasse vis-à-vis na carruagem.
Foi, com efeito, uma recompensa régia. A Condessa me concedeu uma série de favores: atirou-me primeiro uma caixa de chapéus, depois um regalo, enfiou-me no colo um nécessaire2, depois mais alguns colis2; nisto, adormeceu. Podia perguntar-lhe o que quisesse: não respondia; quando muito, acordando a um ou outro solavanco da carruagem, perguntava pelo nécessaire2; se não tinha perdido a bolsa; e o ridicule2; se eu por acaso me havia deitado sobre a caixa. Tranqüilizada, voltava a pegar no sono. Mais tarde, a dama de companhia principiou a queixar-se da migraine2 que tinha, Herrgott!2 Aí, eu mesmo resolvi fingir que dormia.
De repente, acordo em sobressalto: a carruagem vira para um lado e estaca, como que batendo na ribanceira de um regato. A minha Condessa acorda também, e com os olhos cheios de sono pergunta o que há. O criado salta da boléia e diz-lhe através da janela:
— Excelência, parece que a gente se desviou do caminho.
— E daí? — pergunta a Condessa. — Não é motivo para ficarmos parados; seguindo a estrada, ela há de levar-nos a algum lugar.
— Pois é, Excelência, mas...
— Mas o quê? A estrada há de dar nalgum lugar...
— Dá, sim, Excelência; mas parece que esse lugar não é bom.
— Tolice. Todos os lugares são bons. Onde estamos, afinal?
— Na floresta de Szalonta, Excelência.
— Pois então! A floresta de Szalonta não é o mundo. Em duas horas a gente a atravessa em qualquer direção.
— Sem dúvida, Excelência; mas é que o cocheiro está com medo...
— O cocheiro está com medo? Será que ele foi contratado para isso?
— Pois é, Excelência. Ele tem medo de algum acidente que possa acontecer a V Exa...
— Que tem que ver comigo o cocheiro?
— E aos cavalos, Excelência.
— Com estes, sim, ele tem que ver.
— Pois é nesta floresta que costumam esconder-se os moços-pobres.3
— Este cocheiro é mesmo louco. Que é ele, senão um moço pobre?
— Pois é, Excelência; mas os moços-pobres de quem ele fala são dos que desatrelam os cavalos.
Aí não me contive mais:
— Condessa, ma déesse, veja se isto é brincadeira. Está vendo: para que saímos de casa depois do anoitecer? Agora podemos dormir em plena floresta; podem nos tirar os cavalos, a vida e ainda outra coisa. Se pelo menos tivesse comigo o meu revólver!
— Para que lho tirassem também, não é? — objetou aquele duendezinho com uma risada.
Antes que eu pudesse impedi-la, abriu a portinhola da carruagem e saltou.
— Ah, que noite magnífica! Como a floresta cheira bem, como os pirilampos brilham na grama! Olhe, Barão!
— Como hei de olhar, se a gente não enxerga a três passos de distância?
— Enxerga, sim. Ali, atrás daquelas árvores, não se vê uma luz?
Gelou-se-me o sangue nas veias. Tínhamos chegado às imediações de algum covil de bandidos.
Na boléia, o cocheiro respondeu com a voz de alguém a quem estão apertando a garganta:
— Sim, Excelência, é a csárda4 do Entra-Não-Sai.
— Entra-Não-Sai? Ótimo! É o que nos serve. Vamos até lá.
Fiquei desesperado:
— Pelo amor de Deus, que é que a senhora quer, Condessa?
Aquilo ali é um conhecido covil de ladrões, onde nos vão matar a todos nós; um abrigo de salteadores, cujo dono está em entendimento com todos os facínoras da redondeza, e onde muita gente já perdeu a vida.
Aquela perversa criatura só fez rir de mim. Disse que eram horrores que nunca haviam acontecido, e que eu lera no Vaterländischer Pilger5; e que, se houvesse outra csárda, a procuraríamos, mas, não existindo outra, não havia que escolher. Com isto, deu ordem ao cocheiro para seguir devagar com o carro; ela iria à frente, a pé, mostrando o caminho.
Inúteis foram todos os protestos, todas as lamúrias: tínhamos de rumar todos para a csárda maldita, pois ela nos ameaçou de ir sozinha, se nós outros estivéssemos com medo.
Manda a verdade que se diga: aquela fadazinha maldosa não tem medo de ninguém.
Mal chegamos às proximidades da csárda, de súbito uma música alegre e lesta, saída da janela, veio bater aos nossos ouvidos.
— Ah, mon Dieu: está cheia de bandidos, mesmo!
— Está vendo? — disse a Condessa, zombeteira. — A gente ia ao baile, e chega mesmo a um baile; ninguém evita a própria sorte.
Tive, por um instante, a idéia de voltar as costas e dar o fora; mas, além de inconveniente, a coisa era impraticável, pois Mlle. Césarine, a dama de companhia, agarrava-se ao meu braço com tamanha força, que de jeito algum poderia desgrudar-me dela. A piedosa moça estava meio morta de susto; só a sua metade viva ia atrás da Condessa.
Antes de atingirmos o portão, já se ouviam o vozerio, os gritos alegres, os pesados passos de dança dum bando de homens lá dentro. Nada disso impressionou a minha Condessa. Com um gesto audacioso, escancarou a porta e entrou na csárda.
Era uma sala grande e comprida, mal caiada, onde, no primeiro momento de espanto, julguei ver uns cinqüenta homens a pular e a dançar; depois, ao contá-los, notei que eram apenas nove, dos quais um, o taverneiro, não dançava, e três, os ciganos, tocavam música. Porém, mesmo os cinco restantes nos enchiam as medidas.
Eram todos uns rapagões enormes, espadaúdos, que batiam com o punho na viga mestra. Os fuzis dos cinco estavam encostados a um canto.
Não podíamos ter escolhido lugar melhor. Mal nos viram, os marotos pararam com a dança, manifestamente espantados com a nossa ousadia. Pois a minha Condessa dirigiu-lhes a palavra com o seu sorriso mais aliciante:
— Perdoem, amigos, se perturbamos o seu divertimento.
Desviamo-nos do caminho, e como não podemos prosseguir na escuridão, entramos aqui para ver se nos davam pouso.
Aí, um rapaz espigado se afastou do grupo, alisou o bigodinho, tirou o chapéu de bandido, bateu os calcanhares e, inclinando-se diante da Condessa, disse-lhe que o aparecimento dela não somente não os incomodava, mas até lhes proporcionava intenso prazer. O dono da casa era ele, Fekete józsi (aquele famoso salteador!); e a senhora, quem era?
Antes que eu pudesse dar uma puxada à mantilha da Condessa, para adverti-la, ela respondeu no mesmo instante:
— Sou a Condessa Repey, de Kerékvár.
— Muito prazer em conhecê-la. Conheci o velho conde. Um dia ele atirou em mim, com a espingarda de dois canos, mas não acertou. Sente-se, Condessa.
Que agradável começo de conversa! A Condessa sentou-se num banquinho; o maroto, ao lado dela; a mim, nem ofereceu lugar.
— Aonde vai a senhora a esta hora?
“Não lhe confesse” — acenei com o olhar.
— Vamos a Arad, ao baile do cassino.
“Adeus, jóias de gala!” — pensei.
— Então o seu desvio foi providencial: a senhora nem precisa prosseguir, pois nós mesmos estamos dando um baile. Não desprezem o nosso convite, por favor. Temos ótimos ciganos, da banda de Szalonta. More, toca aquela canção da mulher bonita. Não tires os olhos dos nossos pés!
E, sem dizer água-vai, o patife, ao primeiro toque da csárdás5, puxou o dólmã de botões num dos ombros, agarrou a Condessa pela cintura e atirou com ela ao meio da sala.
Outro velhaco se aproximou, de um pulo, de Mlle. Césarme, meio enlouquecida, meio desmaiada, e arrastou-a à dança. A partir desse momento, ela não teve mais preocupação de conseguir par: passou de uma para outra mão, de tal forma que seus pés não pararam um instante.
Quanto à minha Condessa, fez um bonito que nem podem imaginar. Pulava com tanto fogo e entusiasmo, como se estivesse dançando no pavimento encerado do cassino de Arad. Nunca a vi mais encantadora, mais sedutora. Já tinha visto antes dança húngara, mas achara-a apenas esquisita; pois não é que o desgraçado daquele salteador me fez compreender pela primeira vez o que ela é?
Ele começou fazendo girar a sua dama, bem airoso, como se ninguém no mundo tivesse mais motivo do que ele para pavonear-se, olhando com desdém por cima dos ombros, lançando gritos no meio da música; e depois, num rompante, atirou-se no centro da sala, guiando sempre a sua dama pela mão. Esta bailava diante dele com pudica reserva, como uma borboleta que tocasse todas as flores sem pousar em nenhuma; palavra de honra, não se via seus pés tocarem o chão. O rapaz, garboso, curvava-se uma vez ou outra sobre ela, como se a quisesse abraçar; depois parava, batia com o pé no chão e atirava a cabeça para trás com altivez; a fadazinha provocava-o, ora fugindo-lhe, ora aproximando-se dele, como se quisesse lançar-se-lhe ao colo; e depois, numa virada, afastava-se de novo, ficava longe outra vez. Apenas os olhares dos dois mostravam que formavam um só par. A certa altura o rapaz, como que zangado, virou as costas à sua dama, plantou-se em frente de um cigano e dançou para ele todo o seu despeito; depois, esgotada toda a sua vingança no sapateado — zás! —, virou-se outra vez, agarrou a dama pela cintura e fê-la dar várias voltas em torno dele, com a rapidez de um rodamoinho. A Condessa dançava como um elfo.
Com todo o prazer que me dava o espetáculo, eu não cessava um instante sequer de recear alguma demonstração inconveniente daquele endemoninhado para com a Condessa. Vocês compreendem, a tentação era grande. A Condessa estava inteiramente nas mãos dele. Mais crime, menos crime, tanto lhe fazia, pois de qualquer maneira se achava condenado à morte. Eu estava decidido, mal tocasse ele a Condessa com um dedo irreverente, a dar um pulo até os fuzis ensarilhados, pegar num deles e matar o velhaco. Palavra de honra que estava resolvidíssimo a isto.
Mas não houve necessidade de tal: executadas as três danças de praxe, o chefe dos bandidos levou cortesmente a sua dama ao banquinho e beijou-lhe a mão com garbo; agradeceu-lhe o favor, depois se acostou a mim. Batendo-me no ombro com ar complacente, perguntou-me:
— Então, velhinho, o senhor não dança?
(Chamar a mim de velhinho!)
— Obrigado, não sei dançar.
— Está certo — disse.
E voltou à Condessa.
— Desculpe-nos, Condessa, não estamos preparados para receber pessoas tão ilustres. Aceite de bom grado o pouco que temos. Não é grande coisa, mas é bom.
Referia-se ao jantar.
Grande banquete, por minha fé! Puseram no meio da mesa um caldeirão cheio de guisado de vitela, e todos sentaram-se em volta.
Pratos não houve, nem talheres. Cada um comia com as mãos, pescando no caldeirão o seu pedaço de carne com a própria faca.
A minha Condessa comia como se estivesse num jejum de três dias. O chefe dos bandidos pescava para ela pessoalmente, com o seu facão estrelado, os pedaços de carne mais vermelhos — tudo nadava em páprica — e punha-os sobre uma fatia de pão branco. Ela achava aquilo sublime.
De súbito o maroto percebeu que eu não comia:
— Sirva-se, velhinho. É carne que engorda, pois é de animal roubado.
(Bonito!)
— Muito obrigado, não posso comer. Tem páprica demais.
— Está certo — disse, e me deixou de novo em paz.
O vinho naturalmente vinha servido em cantis; copos, nem por sonho. Segundo hábito dos camponeses, Fekete Józsi bebeu primeiro, enxugou a boca do cantil na manga ampla da camisa e o ofereceu à Condessa. Ela aceitou-o, sim, meus amigos; aceitou-o e bebeu. Mulher extraordinária!
Nisto o patife se voltou outra vez para mim e convidou-me a beber:
— Vamos, beba, velhinho (velhinho outra vez!), senão acaba adormecendo.
— Obrigado, não posso. Estou seguindo um regime homeopático.
— Ah! — riu o maroto. — Similia similibus (Até latim sabe o tratante!). Eu também sou adepto da homeopatia: como o vinho me fez mal ontem, hoje me curo com vinho.
Estava eu firmemente convencido de que, logo depois de ficarem bêbedos, chegaria a nossa vez: eles nos iam liquidar sumariamente. Os cinco tinham esvaziado um barril! Mas, ao levantarem-se da mesa, nenhum deles estava sequer cambaleando.
Enquanto os companheiros banqueteavam os ciganos, o chefe dos bandoleiros veio mais uma vez ter comigo.
— Ora, velhinho (o Diabo te leve com o teu velhinho!), o senhor não come, nem bebe, nem dança. Qual é, então, o seu divertimento? Gosta de jogar cartas?
E tirou do bolso um baralho.
(Sem dúvida, deseja saber quanto dinheiro tenho comigo).
— Não conheço jogo nenhum.
— Não tem nada, ensino-lhe um agora mesmo. É facílimo. Veja, coloco uma carta aqui, outra aí. O senhor cobre essa com outra, eu cubro esta. Quem primeiro tirar carta do mesmo naipe, ganha.
O patife me deu um curso regular de lansquenê, como se não fosse esse o jogo que me fizera perder Ujfalu e Ófalu. Vi-me forçado a reaprendê-lo com ele.
Não havia outro jeito: sentei-me a jogar. Tendo no bolso uma porção de moedas de cobre, resolvi arriscá-las e espalhei-as na mesa.
— Como? O senhor não vai querer jogar cobre! Não estamos ao pé do moinho7. Aqui está a banca.
E atira à mesa um punhado de moedas de prata e de ouro, novas em folha.
Havia no meu bolso algumas moedas de prata. Muito apreensivo, joguei uma delas no primeiro lance. Carta vai, carta vem, ganhei a parada. O bandido pagou. Por nada neste mundo eu teria coragem de embolsar-lhe o dinheiro; deixei tudo na mesa. Voltei a ganhar. Outra vez não retirei o dinheiro. Quarta, quinta, sexta partida, e continuei a ter a sorte. Comecei a suar. É terrível a gente jogar com um salteador e ganhar-lhe o dinheiro. Ganhei a sétima cartada, também. Já tinha um montão de moedas à minha frente, e corria-me pelas têmporas um suor frio. Que pena não ter tido uma sorte destas em Pozsony, durante a Dieta! Mais uma vez joguei tudo, rezando de mim para mim: “Meu Deus, permite que afinal eu perca uma partida”. De nada valeu: ganhei pela oitava vez. Via-me morto.
— Velhinho — disse-me aquele velhaco, a rir —, o senhor sem dúvida está arrastando a asa a esta linda condessa, por isso tem uma sorte tão danada!
O miserável tinha a coragem de jogar-me indiretas!
Ao começar a nona partida, tremiam-me todos os membros. Pois vejam só: ainda esta foi minha. O bandido deu uma pancada na mesa, e exclamou numa gargalhada:
— Olhe, velhinho, com o senhor ganhando deste jeito, eu acabaria perdendo numa hora todo o condado de Bihar!
Recolheu o dinheiro que lhe sobrava, e levantou-se.
Trêmulo, atrevi-me a oferecer-lhe o montão que acabava de ganhar. Ele me encarou com soberano desprezo:
— Que é que o senhor está pensando de mim? Guarde o seu dinheiro, senão o ponho no olho da rua.
Meu Deus, que é que eu havia de fazer com aquele dinheiro? Um dinheiro que custara a morte de alguém, e que custaria a minha própria morte. Peguei tudo, dei-o aos ciganos. E então compreendi toda a minha tolice. Revelara às claras, com aquele gesto, ser homem de posses.
Os malandros daqueles ciganos me rodearam, pediram-me que lhes dissesse qual era a minha canção: faziam questão de tocá-la. Saí-me dessa mandando que perguntassem à Condessa qual era a sua canção predileta, e a tocassem.
Ela não se fez de rogada: com a sua linda voz de sereia, pôs-se a cantar “No inverno e no verão, minha moradia é na estepe”, de maneira tão encantadora que esqueci onde me encontrava, e comecei a aplaudir como se estivesse num camarote de Peste8.
O presidente dos bandoleiros aplaudiu também, e disse que ia agora ensinar à Condessa a canção dele. Nisto, o celerado entoou uma musiquinha campestre qualquer, que não tive pressa de aprender.
— Agora, velhinho, é a sua vez: cante a sua canção.
Fiquei atrapalhadíssimo. Cantar, eu, naquele aperto de morte; eu, que não conheço outra canção a não ser “Adeus, meu lar tranqüilo”!
— Não sei cantar.
Aquela fada perversa costuma divertir-se a valer comigo, quando me surpreende a trautear uma ária de ópera; de fato, tenho uma voz miserável, rouca e feia como a do pavão.
Aí a Condessa me advertiu, em francês, de que não deveria recusar-me a cantar, senão aqueles malvados podiam submeter-nos a todos, por minha causa, aos piores vexames.
Era só o que faltava, para minha capacidade musical baixar a zero. Que podia fazer? O coração atravessado pelas setas da angústia, a garganta travada pela angina de um medo mortal, entoei “Adeus, meu lar tranqüilo”, e fui cantando a todo o transe até a metade. A Condessa ouviu-me com absoluta compunção. Quando, porém, ao chegar a “só pude ser feliz em ti”, no esforço de altear a voz, caí num falsete horrível, ela não pôde mais conter o riso. Logo o bando inteiro entrou a soltar gargalhadas, e eu mesmo acabei rindo, sem ter para isso o menor motivo.
Depois, voltaram a dançar. A Condessa mostrava-se incansável, e sarabandeou sem parar até o raiar do dia. Ao entrar o sol pela janela, agradeceu o divertimento ao bandido, pedindo-lhe que mandasse atrelar os cavalos.
(Agora é que vem o assalto!)
O salteador saiu, acordou o cocheiro e o criado, mandou atrelar os cavalos e veio dizer-me que podíamos partir.
(Sem dúvida, vão-nos matar no caminho!)
Embarquei, com medo maior do que o que sentia ao descer. Achei suspeitíssimo que não me houvessem exigido a bolsa.
O biltre montou também e, galopando ao lado da carruagem, levou-nos até a estrada real, onde nos indicou o caminho que deveríamos seguir. Tirou o chapéu, desejou que nos divertíssemos, e voltou por onde viera.
Só ousei crer que estava vivo quando chegamos a Zerind. Somente ali comecei a censurar a Condessa, mostrando-lhe em que aventura triste ela nos teria envolvido se aqueles gatunos não tivessem tido medo de mim. Não fosse isto, eles poderiam haver cometido toda espécie de tolices contra ela. De qualquer maneira, fora um absurdo dançar com salteadores numa csárda, a noite inteira.
Aquela perfidazinha escutou as minhas repreensões até o fim, e respondeu:
— Por falar nisso, Barão, será que o senhor está com sono?
— Absolutamente — respondi aborrecido.
— Pois então talvez possa cantar-me o fim da canção que tinha começado.
— Neste caso, prefiro estar com sono.
Na viagem de Zerind a Arad, lisonjeei-me com a idéia de que a Condessa precisaria comprar-me com muitos favores o segredo sobre aquela aventura detestável. Chegamos a Arad às seis horas. Enquanto passamos do portão do hotel ao quarto dela, ela mesma já tinha contado o caso a três conhecidos. Quando chegamos ao baile, não havia quem o ignorasse. Assim, fiquei privado até dessa vantagem.
Devo, porém, reconhecer que ela era a mulher mais bonita de todo o baile. Bem o sabia ela, aliás; nem outro motivo a levou lá; pois não dançou sequer uma vez! Respondia a todos que estava mortalmente cansada. Não era para menos: dançar dezoito csárdás da meia-noite até a madrugada! Eu, que não dançara nenhuma, mal me segurava nas pernas.
Deliberei visitar o salão de jogo. “Agora é que a sorte está namorando-te — disse de mim para mim —, agora é que deves agarrá-la”. Numa das mesas jogavam lansquenê. “Abram alas, hoje estou com uma sorte dos diabos!” Pois sim: perdi mil florins líquidos. A sorte só me persegue quando vê que estou fugindo dela.
Ao cabo de seis meses, caiu-me nas mãos um jornal. Na seção dos tribunais (a única que eu leio), li que Fekete Józsi, o famigerado bandido, tendo sido condenado à morte pelo tribunal especial de Szeged, fora enforcado.
Levei a interessante gazeta à Condessa Repey, e mostrei-lhe a novidade.
— Quem havia de dizer! — observou, depois de lida a sentença.
— Um bailarino tão bom!