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Contos-->MANA MARIA / Alcântara Machado (obra completa) -- 20/10/2009 - 12:21 (CARLOS CUNHA / o poeta sem limites) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos



















Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites





MANA MARIA

( Alcântara Machado )


- Vá perguntar pra mana Maria.

Era assim desde que a mãe morrera. Era assim a propósito de tudo. Mana Maria é que resolvia, mandava, punha e dispunha, fazia, desfazia. E Ana Teresa obedecia.
Quando Dona Purezinha morreu, deixou Ana Teresa com dez anos. Tinha duas tranças compridas e com uma delas quis enxugar as lágrimas diante do cadáver da mãe. E foi ai que sentiu pela primeira vez a nova autoridade. Mana Maria deu um puxão na trança e lhe pôs um lenço na mão:

- Enxugue com o lenço.

Lenço seco.
De fato a coragem de mana Maria foi uma coisa que admirou toda a gente. Não derramou uma lágrima. Não teve um gesto, uma expressão de sofrimento. Ninguém esperava tanta fortaleza de ânimo num corpo tão franzino.
Dona Purezinha agonizou seis meses com um cancro no piloro. Era gorda, foi ficando magrinha. Também era boa, paciente, e foi ficando má, impertinente. Parecia que tudo nela morria, menos os olhos que enxergavam uma sombra de poeira na cômoda e os ouvidos que percebiam lá longe, na cozinha, o bater de um prato na pia.
Em torno dela foi se fazendo um silêncio que já era de túmulo. Primeiro se suprimiu o piano de Ana Teresa. Para ela foi uma alegria. Mesmo a aula de Português, Aritmética, Geografia, História do Brasil, Religião, Desenho e Caligrafia, tudo ensinado por Dona Mercedes, passou para o porão.
No porão vivia. Subia para almoçar, lanchar. jantar, dormir. Fora disso, mal punha os pés na escada que conduzia â copa, uma criada, a irmã, o pai, alguém falava:

- Não venha que mamãe está doente.

Era o estribilho. Pegava no voador, rodava dez metros no cimento do jardim, uma janela se abria:

- Não faça barulho! Mamãe está doente!

Na mesa, não queria sopa ou queria pão com manteiga e açúcar:

- Seja boazinha. Olhe que mamãe está doente.

Aos poucos se habituou. Ficava no quarto grande do porão horas e horas vendo a arrumadeira passar roupa. Também ia visitar o galinho garnisé. Corria atrás dele, ele não se deixava pegar, ela dizia:

- Não faça barulho que mamãe está doente.

Até que chegou também o dia do garnisé. O canto dele incomodava Dona Purezinha. Foi para a faca. E Ana Teresa nem direito de chorar teve porque mamãe estava doente.
Já era sossegada de natureza, ficou uma santinha na opinião da cozinheira. Parecia gente grande. Amorteceram com algodão a campainha da entrada, a campainha do telefone. Todos se entendiam por gestos. Joaquim Pereira pensou até em imitar o vizinho senador que quando a mulher esteve para morrer arranjou uns grilos que não deixavam os choferes tocarem cláxon nas imediações. Mas desprovido de qualquer influência política desistiu da idéia. Ana Teresa passou a fazer parte do silêncio: se perturbava quando falavam perto dela. Quase no ouvido da professora segredava as capitais dos Estados do Brasil. E ficou com o hábito de responder movendo a cabeça, sacudindo os ombros, movendo as mãos. A boniteza dela não entristeceu: ficou indiferente, perdeu a vivacidade, ficou distante.
Uma madrugada mana Maria acordou Ana Teresa. Como estava, de camisola e descalça, foi levada até o quarto de Dona Purezinha. O pai a ergueu nos braços, molhou de lágrimas o rosto dela, abraçou forte, beijou muito a filha. Depois falou:

- Venha beijar sua mãezinha que foi pro céu. No quarto estavam um padre, o médico, a enfermeira, tio Laerte e a mulher dele, tia Carlota. Ana Teresa sacudida pelo choro agarrou na mão da morta, deu um beijo. Porém silencioso. Alguém falou: - "Pobrezinha". Com certeza tia Carlota que a tirou do quarto. Ana Teresa viu no fundo do corredor uma vela acesa nas mãos de mana Maria. Teve medo, dobrou o braço no rosto. Voltou carregada pro seu quarto. Ainda ouviu mana Maria falar:

- É bom que tio Laerte vá encomendar o caixão.

Na hora do enterro é que mana Maria não a deixou enxugar os olhos com a trança. Foi o primeiro gesto de mando. E por isso Ana Teresa nunca mais esqueceu dele. Era um quadro que ela via sempre. Sobretudo de noite, no escuro, de olhos fechados, na cama: a sala repleta, o caixão muito alto e florido, a cara barbuda do pai, o jeito duro com que mana Maria lhe puxou a trança, lhe deu o lenço. Lenço seco.
E três dias depois, logo de manhã cedo, Ana Teresa teve a revelação física de mana Maria. Até então nunca reparara direito na irmã. Quer dizer: reparara sim, mas sem compreender. Nessa manhã ela principiou a compreender. Pela primeira vez a viu de óculos. E isso já foi uma surpresa. Nunca suspeitara da existência daqueles óculos de aros de tartaruga. Nunca, nunca mana Maria pusera os óculos na presença dela. Pois mana Maria a recebeu assim, de óculos. Estava com a costureira e mandara chamar Ana Teresa para tomar as medidas. Ana Teresa ficou em pé, no meio do quarto, imóvel, com os olhos nos óculos. A arrumadeira entrou, Ana Teresa olhou para ela e viu também nos olhos dela a mesma surpresa dos óculos. Nunca, nunca mana Maria aparecera de óculos para ninguém. Ana Teresa se deixou dominar por aqueles vidros redondos, aqueles aros de tartaruga manchada. Sentiu a autoridade daqueles óculos.
Aumentou nela o respeito que já tinha pela irmã mais velha e que a levava instintivamente a chamá-la mana Maria. Não Maria simplesmente. A irmã, quinze anos mais velha, impôs-se desde logo ao respeito de Ana Teresa. E esse respeito se exprimiu como de regra por um título: mana Maria valia por Doutora Maria, Excelentíssima Senhora Baronesa Maria, Sua Majestade a Rainha Maria. Sempre a chamou assim.
Ana Teresa olhava os óculos. Depois disfarçou, olhou as mãos. Mãos magras, unhas bem tratadas, mãos esquisitas. Magras demais. Depois bruscas. Faziam tudo depressa. Ajeitavam o cabelo com um repelão. Ana Teresa olhou os cabelos. Eram ondeados. Eram pretos. Pretos demais. E não eram cortados. Todas as moças usavam os cabelos cortados. Todas. Mana Maria não usava. Mana Maria enrolava os cabelos na nuca. E o penteado quase cobria as orelhas. Só se viam os lóbulos.
As sobrancelhas eram grossas. Grossas demais. E o nariz também era ossudo demais. E os dentes? Os dentes não se viam. Mana Maria falava sem mostrar os dentes. Ana Teresa não achava mana Maria bonita.
Mas aqueles óculos, passada a surpresa, eram bonitos. Iam bem para mana Maria. Ana Teresa não sabia direito o que era mas já agora lhe parecia que mana Maria sempre usara aqueles óculos. E ficava melhor assim. Ficava completa.
Mana Maria olhou num papelzinho, falou pra costureira:

- O uniforme pra sair tem gola branca.

Uniforme? Ana Teresa não compreendeu. Nem mana Maria lhe explicou nada. Só dias depois é que o pai com ela no colo contou tudo:

- É muito bom. É o melhor colégio de São Paulo. As internas são tratadas como filhas.

Falou outras coisas, reparou nas lágrimas da filha, enxugou, parecia triste. E disse:

- Eu por mim não punha você interna. Mas sua irmã quer. Ela é que é a mãezinha de meu bem agora. Precisa fazer como ela quer, obedecer em tudo, ser bem boazinha pra ela. Como pra mamãe antes de ir pro céu. Igualzinho.
Foi para o colégio. Mana Maria a deixou entre a madre superiora e a madre prefeita no dia seguinte ao da missa de sétimo dia. Passaram antes pelo cemitério. Colocaram umas flores entre as coroas murchas do enterro, rezaram, tocaram para o colégio. Mana Maria corajosa como sempre. Conversou com a superiora, pagou o primeiro semestre adiantado, virou-se pra irmã:

- Então até domingo.

Ana Teresa com os olhos chorosos deixou-se beijar na testa, beijou mana Maria no rosto, abraçaram-se. Mana Maria se desprendeu com uma recomendação:

- Tenha juízo.

No domingo voltou com o pai. Ana Teresa recebeu-os com uma reverência:

- Bonjour; mon cher papa. Bonjour, ma soeur.

- Já fala francês?

Joaquim Pereira ficou radiante. Mana Maria falou quase todo o tempo com a superiora. Na saída disse para a irmã:

- Você precisa caprichar melhor no desenho.

Ana Teresa prometeu caprichar. E na despedida repetiu a reverência:

- Au revoir, mon cher Papa. Au revoir, ma soeur.

Voltando para casa mana Maria repetiu as informações da superiora: ótimo comportamento e ótima aplicação, havendo o que dizer somente quanto ao desenho. Joaquim Pereira se admirou:

- Por que que você não disse pra menina os elogios?

Mana Maria respondeu:

- Eu sei o que faço.

Joaquim Pereira reprovou em silêncio aquela dureza. E para dizer alguma coisa:

- Que é que você acha de eu comprar um Ford?

Mana Maria perguntou:

- Pra quê?

- Que pergunta. Pra quê? Pra usar.

Mana Maria como que esboçou um sorriso. Joaquim Pereira não disse mais nada.




Diante da mulher conservou sempre uma atitude de inferioridade. Morta a mulher não teve dificuldade nenhuma em reconhecer na filha mais velha a herdeira de Dona Purezinha, no governo doméstico.
Quando conheceu Dona Purezinha era terceiro-escriturário do Serviço Sanitário. Seu pai, que era agente de seguros e juiz de paz da Consolação, lhe arranjou esse emprego dias antes de morrer.
Joaquim herdou uma casa, uma caderneta da Caixa Econômica, acusando um saldo de sete contos e coisinhas, um seguro de vinte contos e os nove volumes encadernados da Genealogia Paulistana de Luís Gonzaga da Silva Leme.
O pai também enviuvara moço. Era homem austero e tratava o único filho severamente.
Tinha dois orgulhos que manifestava cem vezes por dia, com e sem propósito:

- Você vem dizer isso a mim, descendente de bandeirantes? A mim, que fui amigo do Coronel Mursa? Ora tire seu cavalo da chuva!

Joaquim guardava do pai uma lembrança nada afetuosa. Ela vinha sempre com uma bofetada e uma desilusão. Bofetada, porque certa vez durante o jantar se permitira com a ingenuidade dos dezesseis anos pôr em dúvida a justiça de uma sentença de que o pai se vangloriava. O juiz de paz estourou:

- Como, seu cachorrinho? Eu descendente de bandeirantes, amigo do Coronel Mursa, receber lições de um frangote! Cale essa boca, já, imediatamente!

Joaquim se dispôs a não dar um pio. Mas o pai continuou a falar, a gritar, a invocar a sua progênie bandeirante e a sua amizade com o Coronel Mursa, ele se irritou e disse muito atrevido:

- Ninguém nunca ouviu falar nesse Coronel Mursa que o senhor...

Aí levou a bofetada. Na boca. E foi trancafiado no quarto. Ouviu o pai dar um berro com a criada. Depois as passadas dele pelo corredor indo e vindo. Depois um silêncio. Passos de novo. Parou. Abriu a porta. Estava mais calmo e estendeu ao filho uma folha de jornal amarelecida, com as marcas das dobras bem acentuadas:

- Leia para se instruir. No fundo a culpa não é sua, mas dos professores que não lhe ensinaram a história de sua terra.

O pai saiu sem fechar a porta à chave; Joaquim percorreu a folha encardida. Na primeira página. o título do jornal e a data: São Paulo, 20 de novembro de 1889. O resto era meio alegórico: uma mulher com barrete frígio na cabeça segurava um ramo de café com a mão direita e com a esquerda levantava um facho que iluminava três medalhões com os retratos do Coronel Mursa, Prudente de Morais e Rangel Pestana. Embaixo: Homenagem à Junta Provisória. Em volta: leões deitados, pombas voando, ramalhetes de flores com laços de fita, o Zé-Povinho de chapéu erguido. Na segunda página, então, vinha o elogio do triunvirato, da República, da Democracia e do Brasil. Joaquim leu com toda a atenção: "O Coronel Mursa simboliza a espada gloriosa que fulgurou nas lutas da Independência, combateu nas campanhas do Prata, venceu na Guerra do Paraguai e ajudou a implantar a República." Virou a folha, se demorou na contemplação do Coronel Mursa. Era aquele. Sim senhor. Simpaticão. No dia seguinte quis devolver para o pai mas o pai falou:

- Guarde para você que eu tenho vários exemplares.

Joaquim guardou. Daí por diante cada vez que o pai falava na sua amizade com o Coronel Mursa, o filho abaixava os olhos. No fundo tinha ódio dessa amizade, por causa da bofetada. O que não impediu que num domingo de tarde, queixando-se o pai de certo tenente do Exército que lhe devia cem mil-réis e se recusava a pagar, o filho falasse:

- Se o Coronel Mursa fosse vivo o senhor falava com ele e arranjava tudo!

A coisa foi tão inesperada que o juiz de paz olhou desconfiado para o filho. Mas Joaquim fitava o assoalho humildemente. E o velho exultou:

- Que dúvida! Homem de peso, homem de peso! Não há mais disso hoje em dia!

Depois recapitulou com todos os detalhes a história da famosa amizade. Depois (conversa puxa conversa) falou na sua progênie bandeirante. Disse:

- Eu estou morre não morre, você é menino, é bom que saiba quem foram seus avós para amanhã, quando eu já não estiver no mundo, não deixar ninguém pisar em você!

Foi no quarto, voltou com dois volumes da Genealogia Paulistana.

- Está vendo, Joaquim? Título Cordeiros de Paiva. Olhe aqui: João Duarte Pereira Castro, irmão de um seu tio-avô, não, tio-bisavô, casou com uma Cordeiro de Paiva. Nós somos primos desses Cordeiros de Paiva, gente de tutano, uns leões. Mas tem mais. Olhe aqui neste outro volume. Títulos Aguirre. Olhe: um Aguirre, João Afonso, casou em segundas núpcias com a bisavó paterna de sua mãe, sua tataravó, portanto, minha bisavó por afinidade. Nunca se esqueça que você tem sangue de Aguirres nas veias e é ligado com os Cordeiros de Paiva. Dois títulos. Há pouco paulista hoje que se possa orgulhar de sua nobreza, como você. Veja lá que responsabilidade.

Por fim deu uma nota de vinte mil-réis para o filho, já era noite:

- Vá se divertir.

Joaquim beijou a mão do pai e foi se divertir no Cinema Bijou. Pina Menichelli suicidou-se no sexto ato e ele na saída encontrou o Albertino. O Albertino conhecia uma casa na Rua das Flores. Joaquim o acompanhou até lá. Dona Filomena veio abrir a porta:

- Que é que querem? Ah! Albertino, como vai?

Albertino ficou conversando com Dona Filomena, Joaquim enfiou pelo corredor. Uma voz de mulher falou:

- A senhora deixou a porta aberta! Faz favor de fechar, Dona Filomena!

Joaquim espiou e viu o pai sentado diante de uma garrafa de cerveja, com uma gorda de cabelo vermelho no colo. A gorda gritou:

- Olha essa porta aberta, Dona Filomena!

Joaquim deu meia volta rápida, esbarrou em Dona Filomena que vinha fechar a porta, disse para o Albertino:

- Vou me embora, estou me sentindo mal.

Albertino quis retê-lo pelo braço, ele se desenvencilhou brutalmente, atravessou a rua, dobrou a esquina, passo apressado quase correndo. Sentia uma precisão de chorar. Um homem como papai com uma vagabunda no colo. É impossível. É impossível. Mas então... Meu Deus é impossível, papai, papai num bordel. Mas então... O pensamento dele ficava suspenso. Mas então... Mas então... Não há nada. Não existe nada no mundo. Nada. E se lembrava da mãe.
Tomou o bonde, foi para casa. Fechou-se no quarto, atirou-se na cama. Tinha pena da mãe. Estendeu o braço, pegou o retrato no criado-mudo, falou: Minha mãe! Coitada de minha mãe!
Beijou o retrato. Que coisa, meu Deus, meu Deus do céu! Pôs o retrato no criado-mudo. Um homem que falava tanto na sua seriedade e mais isto e mais aquilo. Descendente de bandeirante, amigo do Coronel Mursa. Levantou-se. Abriu uma gaveta da cômoda. Tirou a folha de jornal. Amigo do Coronel Mursa. Espera um pouco que já te mostro. Picou a folha em pedacinhos. Jogou na latrina. Pôs a mão na chave da porta, se arrependeu: o pai podia chegar, não queria ver o pai. Aí lhe deu uma curiosidade má. A que horas ele voltaria? Passaria a noite no bordel? Abanava a cabeça. Pensou: meu pai na putaria. Não. Não era bem isso. Que coisa besta. Sorriu por dentro. Chorou. Apagou a luz, se jogou de novo na cama. Mas não dormiu. Vinha um pensamento perverso, ele expulsava com outro ainda mais perverso, e sofria. Pouco depois de meia-noite o pai chegou e Joaquim dormiu mais aliviado.
Entretanto o respeito que até então tivera pelo pai não diminuiu pelo menos exteriormente. O mal-estar que passou a sentir na presença dele aumentava até a atitude humilde, cabeça baixa, olhos no chão. Quando o juiz de paz falava nos avós bandeirantes ou na sua histórica amizade com o Coronel Mursa Joaquim no fundo sentia uma espécie de volúpia em apresentar aos seus botões o reverso da medalha. O pai falava:

- Um paulista como eu, de autêntico sangue bandeirante...

E o filho continuava com o pensamento:
... e que freqüenta bordéis baratos...
O pai acrescentava:
... amigo inseparável do Coronel Mursa...
E o filho rematava:
... e bebedor de cerveja com polaca vagabunda no colo...

Até que meses depois, no dia de Finados, vendo o pai chorar diante do túmulo da mulher, quinze anos já passados de sua morte, ele começou a compreender esse dualismo em que ele próprio cairia mais tarde.
O pai morreu com setenta e dois anos num dia de São João. E no primeiro aniversário de sua morte já foi Purezinha que colocou um ramo de cravos no túmulo e providenciou sobre a missa. Como também foi Purezinha que arranjou com o parente deputado a promoção do marido para segundo-escriturário, depois primeiro, depois chefe de seção. E assumiu discricionariamente o governo do lar, cabeça do casal, alugando a casa deixada pelo sogro, aplicando o dinheiro do seguro, economizando, comprando o palacete em que Ana Teresa nasceu, emprestando dinheiro sob hipoteca em pequenas parcelas para render juros mais altos, tudo, tudo. Purezinha, coitada. Morrer daquele jeito. Felizmente deixava uma substituta, sua filha de palavra medida e dura, gesto brusco e decidido, olhar firme, direto, autoritário.




Por isso Joaquim Pereira não se atreveu a insistir na compra do Ford. Paciência. Maria não aprovava, ele se conformava. Entretanto era coisa que lhe apetecia bem, um Fordinho fechado. Satisfazia bem aquela ânsia de gozo que se apoderara dele viúvo. Gozo da vida, das coisas materialmente boas da vida. Daí a poucos anos se aposentaria. E já tinha um plano de vida feito. Como o Ciancullo barbeiro que com mais cinqüenta contos fechava o salão e ia fazer il signore. É isso mesmo. Bancar o milionário. Inclusive e sobretudo no capítulo das mulheres. Foi fiel, foi um cão de tão fiel, para Purezinha. Mas ela morta, ele era moço ainda, ficava neste mundo miserável, era disfarçar a miséria do mundo. Às vezes se lembrava do pai e como que se revia (em lugar do juiz de paz) no quarto da Rua das Flores com uma gorda de cabelo vermelho no colo que mandava dona Filomena fechar a porta. Então sentia uma vergonha inexprimível de ser homem, homem como o pai, seu herdeiro na contingência de semelhantes fraquezas. Paciência. Não era o único. Como é que havia de fazer? Casar? Ele já pensara nessa solução mas esbarrava na oposição da filha mais velha, que ele sabia fatal, e não tinha ânimo para enfrentar. Que esperança. Atentava no jeito frio e agressivo da filha e desistia logo de qualquer idéia a respeito de novo casamento. Nada disso. O melhor era fazer como todos os homens, até casados, até recém-casados. O melhor era fazer como, como, como o pai. Aí está. Joaquim por mais que expulsasse a lembrança amarga daquela noite da Rua das Flores era constantemente perseguido por ela. Daí a timidez de suas primeiras aventuras, nome com que ele dourava a sentida sordidez dos coitos pagos à vista. Uma aventura, uma conquista. Parecia um criminoso. Escolhia horas adiantadas da noite, se exasperava quando custavam para abrir a porta e ele ficava sujeito às olhadas dos transeuntes, exigia um quarto bem trancado, tapava o buraco da fechadura. Inutilmente procurava se confortar com a idéia de que não tinha filhos. Inutilmente. A lembrança da Rua das Flores não o largava. Teve um sonho horrível em que o pai o espiava como ele o vira.
Um dia se surpreendeu chamando a filha de mana Maria, tal e qual Ana Teresa. E se arrependeu, quis corrigir logo em seguida, não teve jeito, deu uma risadinha (a filha calma, olhando para ele), repetiu: mana Maria. A filha disse:

- Eu o envelheço tanto assim?

Custou a compreender, compreendeu, falou:

- Não é isso!

Não era e a filha sabia que não era. Mas mesmo quando lhe agradavam (e o pai chamando-a assim lhe agradara) ela dava um jeito pra responder com uma bicada certeira.
O pai bandoleiro não parava mais em casa. Mana Maria só o via durante as refeições. Tinha o estômago delicado, comia sempre em casa, discutia negócios com ele. Por ocasião da partilha no inventário de Purezinha, mana Maria fez questão de ficar com a casa onde moravam. O pai objetou generosamente que não dava renda pois era residência deles, era melhor que ficasse na sua meação, a menos que a filha não concordasse em receber o aluguel. Mana Maria respondeu:

- Eu quero morar na minha casa.

Repetiu, acentuando bem:

- Minha casa. E isso de aluguel é bobagem.

Joaquim acedeu:

- Como você quiser.

E acrescentou:

- Você é de fato a dona da casa, fica também dona do prédio.

O olhar de mana Maria exprimiu a satisfação de quem se sente bem compreendido. Discutia as questões do inventário com tanta segurança que o pai um dia se espantou. Ela explicou:

- Conheço as leis de meu país.

Foi no quarto, voltou com um exemplar encadernado do Código Civil Brasileiro. O pai estourava de admiração:

- Você é sua mãe escarradinha.

Porque Purezinha é que comprara o Código. Ele nem se lembrava mais de que o tinha em casa. Pois mana Maria descobrira o Código, lia o Código. Incrível. Definitivamente sumiu diante da filha. Ela é que conversou com o advogado, estabeleceu os quinhões dela e de Ana Teresa (favorecendo esta) e concluído o inventário passou a tomar conta de todos os negócios. Do pai inclusive.




Nas férias de fim de ano Ana Teresa caiu doente de escarlatina. Joaquim queria chamar o velho Dr. Tibúrcio que receitava calomelanos a três por dois e já tratara da menina por ocasião de uma coqueluche. Mas mana Maria telefonou para o Dr. Samuel Pinto, recém-chegado da Europa, com prática dos hospitais de crianças de Berlim, Viena e Paris.
Dr. Samuel chegou, mandou abrir as janelas do quarto. Ar, ar. Tratamento moderno. A escarlatina cedeu. Ana Teresa se levantou.
Nada de excesso, recomendou o Dr. Samuel. Escarlatina é moléstia traiçoeira, costuma deixar marca. Alimentação sadia, ginástica, muita ventilação durante a noite.
Ana Teresa já estava perfeitamente boa e o médico prosseguia nas visitas. Mana Maria estranhou.

- Médico moderno, você quis médico moderno, é agüentar com a exploração - falou o pai.

Então mana Maria escreveu um cartãozinho para o Dr. Samuel Pinto pedindo a conta. E ele a mandou bem módica. Joaquim comentou:

- Esquisito. Só se é para garantir o cliente. Deve ser isso.

Ana Teresa voltou para o colégio nem alegre, nem triste. Estava habituada a obedecer. Recebia as coisas boas e más com a mesma mansidão. Mana Maria resolvia por ela e ela aceitava a resolução. Nunca lhe passou pela idéia discutir isto ou aquilo. exprimir suas preferências, mostrar um tiquinho que fosse de vontade. Até nas coisas mínimas. Aceitava sempre o que lhe ofereciam e quando lhe concediam o direito de escolha se decidia sempre pela última oferecida. Mana Maria perguntava na mesa:

- Você quer banana ou laranja?

Ana Teresa respondia:

- Laranja.

Se a pergunta fosse laranja ou banana ela diria banana. Ainda quando houvesse também pêra e esta lhe apetecesse mais.
Uma noite, já fazia quinze dias que Ana Teresa tinha ido para o colégio, a criada anunciou o Dr. Samuel Pinto para mana Maria. Mana Maria tirou os óculos, levantou o olhar do livro, fixou-o na criada. Pensou: - O que será? Mas disse:

- Faça entrar.

Ficou um momento imaginando o que seria, passou diante do espelho sem nenhuma olhadela e foi receber o médico. O Dr. Samuel falou logo:

- Desculpe não ter vindo mais cedo. Hoje foi um dia cheio de serviço.

E mana Maria muito calma:

- Mas deve haver engano. Daqui de casa não se fez nenhum chamado.

Dr. Samuel, sentado no sofá, com um livro na mão arregalou os olhos num bruto espanto:

- Oh! mil desculpas, foi o recado que me deram.

Mana Maria imóvel, o olhar parado, as mãos paradas no colo, considerava aquele moreno meio careca, subitamente ruborizado, que lastimava o engano de sua enfermeira, uma alemã ainda não muito familiarizada com a língua portuguesa. Estava mentindo. Era visível. Que é que o teria levado ali? Impossível, mana Maria (Dr. Samuel agora se estendia sobre os criados em geral, sua negligência, sua insolência diante dos patrões) se decidia diante do menor gesto do intruso a dar um grito que faria vir dos fundos da casa a copeira, a arrumadeira, a cozinheira. Não. Ele não ousaria tanto. E se ousasse ela não apelaria para ninguém. Sozinha, sem elevar a voz, talvez com um simples olhar, poria o atrevido imediatamente no olho da rua.
Dr. Samuel perdia aos poucos o desembaraço dos primeiros instantes. Já gaguejava, dizia o já dito procurava palavras. Mana Maria reparou (como já fizera durante as visitas a Ana Teresa) na voz cantada que abria as vogais, arrastava os erres, prolongava as tonais. Na terra dele é que a gente ainda encontrava empregados como os de outrora, humildes e fiéis. Mana Maria perguntou:

- Que terra?

- Sergipe.

Ela bem que estava percebendo. Dr. Samuel tinha saudades daquela terra. Estava radicado em São Paulo. Mas pretendia (talvez em breve) voltar para lá, rever o seu berço. Que é que deu em mana Maria? Ela não sabia ou não queria saber. O fato e que disse:

- Com certeza deixou uma noiva lá?

Qualquer coisa iluminou os olhos miúdos do Dr. Samuel e ele readquiriu a desenvoltura do princípio. As frases tornaram a sair fáceis, redondas, descansadas. Que penetração psicológica a de Dona Maria. Que extraordinário espírito observador. Como é que adivinhara que ele era solteiro? Porque não usava anel? Não, porque hoje em dia poucos maridos o usam. Não havia dúvida: admirável espírito de observação. E esse dom aliado à cultura, a uma educação perfeita, era a maior riqueza a que o homem pode aspirar.
Dr. Samuel (como se percebesse o nojo nascente de mana Maria) cortou os elogios e confessou que não tinha noiva. Mas pensava seriamente em casar, está visto. Sentia até que precisava casar. O casamento era um ideal que todos, todos, homens e mulheres, sem nenhuma exceção, deviam acalentar. Pois não é exato? Mana Maria não disse nem sim nem não.
Dr. Samuel esboçou um sorrisozinho. Naquele livro que ele tinha ali, por exemplo, um romance francês, havia uma frase sobre o casamento, que lhe parecia admirável. Ele ia traduzir. Não: traduzir é trair, como dizem com acerto os italianos. Seria mesmo em francês. Mas Dona Maria havia de prometer primeiro que não caçoaria do francês dele. Mana Maria (tomada de uma idéia que ela pensava perversa) em vez de prometer falou:

- Eu mesma leio. Com licença um segundo. Vou buscar meus óculos.

Foi. Veio com os óculos postos. Num átimo procurou ler no rosto do Dr. Samuel a impressão produzida. Leu. Disse:

- Acho banal.

E devolveu o livro.
Dr. Samuel concordou em que não era coisa original mas não é só o original que é admirável. Ou Dona Maria por acaso seria adepta das idéias modernas, do futurismo?
Mana Maria, conservando os óculos, fez um gesto vago. E a copeira (com quem ela trocara duas palavras rápidas quando foi buscar os óculos) apareceu pra dizer que a pessoa que Dona Maria mandara chamar estava na cozinha esperando. Mana Maria falou:

- Vou já.

E se levantou olhando o Dr. Samuel. Dr. Samuel tornou a perder o jeito. Levantou-se também. sentia-se que ele levava consigo uma porção de coisas que desejava falar, desculpou-se pelo incômodo que dera, lastimou mais uma vez o equívoco da enfermeira e tomando coragem (falando, ele tomava coragem) fez questão que Dona Maria ficasse com o romance. Ele já tinha lido. Ou por outra: estava relendo.
Dona Maria veria que livro admirável era. Mana Maria recusou. Ele, fazendo muitos gestos, com a voz meio alterada, pôs o livro na mesa. Não, positivamente não levaria o livro. Ficava ali em ótimas mãos. E Dona Maria que não se preocupasse em ler depressa. Lesse com todo o vagar. Depois telefonasse que ele mandaria buscar. Já com o chapéu na mão, hesitou um instante, acrescentou:

- Ou então, se a senhora me quiser dar a honra de trocar impressões sobre ele, eu mesmo virei buscar. Sem incômodo nenhum. Só prazer, imenso prazer.

Mana Maria lhe estendeu a mão.




Fechou a porta. E esta agora? Virou-se. Olhou o livro. Francamente. Deu uns passos, pôs a mão no livro, pôs o olhar na Paisagem de Outono da parede, tamborilou os dedos na capa amarela do romance. Mordeu o lábio superior, o inferior, de novo o superior. Foi cerrando os olhos, cerrando, cerrou. Então viu claro o que tinha a fazer. Pegou no livro, pediu papel e barbante para a copeira (qualquer um serve!) embrulhou, amarrou nervosamente. Escreveu: Ao Senhor Doutor Samuel Pinto. Procurou o endereço na lista telefônica. Residência ou escritório? Mandava para a residência. Teria telefone? Tinha. Apartamento. A palavra deflagrou a imaginação de mana Maria. Apartamento, champanha e mulheres. Um tango dizia assim. Todos os santos dias ouvia no rádio. Quero um apartamento com champanha e mulheres. Champanha e mulheres. Mulheres. Escreveu o endereço. Mandava levar amanhã cedo. Sem uma linha que fosse de agradecimento? Agora ela não ia abrir o embrulho. Colocaria o cartão por fora, entre o barbante e o papel. Não. Não colocaria nada. O livro só. Para o atrevido compreender. Atrevido? Mana Maria pesou a palavra, pesou-a bem, arrependeu-se. Afinal que atitude era aquela? Para que ferir o moço com tamanha grosseria?
Mana Maria sentou-se diante da secretariazinha, tirou da gaveta um cartão de luto, molhou a pena no tinteiro, escreveu por cima do nome: Com os melhores agradecimentos de... Rasgou o cartão. Pegou outro. Escreveu: Com os agradecimentos de... Leu uma porção de vezes: Com os agradecimentos de Maria H. Pereira. Começou a pôr a data por baixo do nome. Escreveu São Paulo e parou. Rasgou o cartão. Levantou-se, foi até a janela, da janela até a porta que dava para o corredor, deu duas voltas na chave, veio até o meio do quarto, parou, olhou para o espelho. E deu um jeito no penteado. Foi para a escrivaninha de novo. Precisava agradecer o livro, falar no livro. Senão um estranho que visse o cartão não saberia que agradecimentos eram aqueles.
Agradecer o livro e dar o nome do livro. Assim afastaria todas as suspeitas ruins. Levantou-se. Não. Ia ler o livro. Desfez o embrulho. Assim em duas linhas daria sua impressão, ele não precisava aparecer para perguntar. Mas também se desse ele seria capaz de aparecer para discutir. Nunca hesitara assim. Nunca. Por que não ficava na primeira idéia? Como sempre? Levantou-se. Diante do espelho passou os dedos pelas sobrancelhas. O embrulho já estava desfeito, lia o livro. E amanhã cedo mandava. Pronto. Estava resolvido o assunto.
Abriu a porta. O carrilhão da sala de jantar deu dez horas. Ela correu a casa inteira para ver se a criada fechara todas as portas e janelas. Foi para o banheiro. Furiosamente escovou os dentes. Como de costume: furiosamente. Bochecho e gargarejo com água oxigenada.
Tinha a mania da higiene. Vivia lavando as mãos, escovando as unhas. E nas coisas da casa exigia asseio e ordem. Queria tudo limpo e no seu lugar. Andava sempre com um lenço na mão e não sentava numa cadeira sem antes passar o lenço nela. Agora, no banheiro, continuava a toalete rigorosa. E acabou deixando tudo como encontrara: cada coisa no seu lugar.
Fechou-se no quarto. Deitou-se, abriu o livro. Dez e pouco. Antes da meia-noite estava lido. Principiou pulando a descrição do parque porque detestava descrições. Um parque: já se sabe o que é. Ela e ele voltam de seu passeio a cavalo. São noivos. Conheceram-se num baile. O pai dela estava na iminência de uma ruína. O pai dele, em vez, era riquíssimo. Casamento de conveniência? O autor dizia que sim e que não. Que sim na intenção do pai. Que não porque ela gostava do feitio esportivo do noivo. Muito que bem. Estão voltando do seu passeio matinal. De repente (na pagina 27) Bismarck, o cão pastor alemão, pula diante dos cavalos. E o dela se espanta, pula também, ela cai na areia branca da alameda. É carregada sem sentidos para o castelo. Na página 43 o jovem médico abana a cabeça e diz para o visconde:

- Fratura dupla no terço superior do fêmur.

O pai desesperado pergunta:

- Ficará defeituosa?

O jovem médico mais uma vez abana a cabeça:

- A ciência tudo fará para evitar tamanha desgraça.

Mas na página 98 a ciência depois de mil esforços inúteis se declara vencida: aquela flor de uma estirpe milenar ficará com uma perna mais curta que a outra. O visconde trata de apressar o casamento. E há uma cena horrível em que a aleijadinha ignorante de seu defeito faz um esforço supremo (quer receber o noivo levantada) deixa a cama, o pé falseia, ela dá um grito e tomba sem sentidos. Agora, o noivo mal disfarça sua repugnância. Enquanto que o médico redobra sua dedicação. O choque moral é tremendo, bem mais perigoso que o físico. A ciência vela. A ciência só? O autor insinua que o amor, o amor também vela.
A página 167 é toda ela a transcrição da carta em que o esportista rompe o noivado, triste documento de um invertebrado moral. E como o visconde julga enojado. Mais nojo ainda lhe causa a insistência dos credores cuja sanha o projetado casamento amenizara um pouco. Precipita-se a catástrofe: a filha aleijada, o visconde arruinado, castelo, parque, terras, tudo vendido em hasta pública. De que modo resistir a tamanha dor e tamanha vergonha? Na sala dos retratos, onde lado a lado figuravam os antepassados (quatro com o bastão de Marechal de França) o visconde estoura os miolos no momento exato em que pisavam as escadarias do castelo as autoridades judiciárias que iam proceder ao inventário dos bens.
Mas o amor vela. E na página 233 um moço de ciência e uma moça coxa (casados horas antes) pelo portão dos fundos deixam o castelo (já propriedade de um fabricante de conhaque) para uma vida modesta de trabalho e rica de afeição.
Meia-noite e um quarto. Joaquim Pereira entra em casa, bate na porta da filha.

- Ainda está acordada, mana Maria? Está sentindo alguma coisa?

- Nada disso. Estava lendo.

- Boa noite.

- Boa noite.

Apagou a luz. Virou do lado direito. Romance bobo. Um médico se casava com uma aleijada. E agora um médico queria casar com uma, uma, uma feia. Mas feia que sabia que era feia, não escondia sua fealdade, até aumentava, aumentava de propósito. Por que motivo?
Mana Maria se revia indo para a Escola Normal com Dejanira e Alice. Ela saia de casa, Dejanira já estava esperando na porta do n.0 53, se juntavam. dobravam a esquerda, Alice estava esperando no n.0 17, tocavam para a Escola. Com passagem forçada pelo Ginásio Piratininga. Onde as gracinhas choviam. Tetéias, diziam. Tetéias. Dejanira e Alice fingiam que não gostavam. Mana Maria gostava sem fingir que não. Aos poucos porém foi percebendo que as tetéias eram duas com exclusão sua. Dois ginasianos mais ousados passaram a se dirigir diretamente a Dejanira e Alice. Mana Maria propôs:

- Vamos passar agora pela outra calçada.

Mas as amigas não concordaram. Mana Maria não insistiu. E se remoeu de despeito.
Um dia não encontrou Dejanira na porta do 53. Tocou a campainha, a mãe de Dejanira informou que ela já tinha saído. Dobrou a esquina. não viu Alice no número 17. E a irmãzinha informou que Alice já tinha saído. Na calçada do Ginásio Piratininga os estudantes formavam grupinhos. Mana Maria passou por eles completamente despercebida.
Junto de uma árvore, a um quarteirão da Escola, havia dois casais parados. Mana Maria reconheceu logo os namorados. Sentiu um peso nas pernas. Passava fingindo não ver? Passava. Com o rosto em fogo passou. Dejanira chamou:

- Maria!

Nem se virou. E a explicação na Escola foi um sofrimento para ela. Não tem importância, dizia. Na saída viu os dois estudantes no mesmo ponto em que de manhã os descobrira com as amigas. Disse para elas:

- Até logo!

E sem querer ouvir o que elas falavam passou pelos moços já de chapéu na mão (era de ironia o olhar que lhe dirigiram, cachorros), apressou cada vez mais o passo, chegou ofegante em casa. Daí por diante ia sozinha para a Escola e sozinha voltava para casa. Pensou mil vinganças, cartas anônimas avisando os pais por exemplo. Mas atentou na mesquinhez delas e desistiu. Entretanto sua amizade com Dejanira e Alice esfriou. Mal se cumprimentavam passados poucos dias. Deu então de reparar na atitude indiferente dos homens para com ela. Indiferente - ou respeitosa? Dava no mesmo. Quantas vezes ela andava, um, dois, três, quarteirões atrás de uma saia qualquer, uma, italianinha suja, uma mulatinha até, ouvindo os gracejos que dirigiam para a italianinha, para a vagabunda. Ela não ouvia nenhum. E o mais esquisito é que quando mana Maria se aproximava muitas vezes os gracejos dirigidos à italianinha ou à mulatinha cessavam. Por respeito dela, mana Maria. Isso lhe dava um amargor e ao mesmo tempo um orgulho indefiníveis. Era respeitada. Não era desejada.
Foi ai que se tornou a primeira de sua classe. O que perdia por um lado, queria ganhar por outro. E ganhava. Também se tornou severa para as mulheres, no juízo e no trato. Umas levianas e umas idiotas. E se maltratava. Até em frivolidades. Era Filha de Maria. Um pequeno sacrifício por dia, aconselhava o vigário. Vontade de se olhar no espelho e não se olhar, por exemplo. Mana Maria levava a coisa ao extremo: passava o dia inteiro sem por os olhos num espelho, sem beber água, sem comer carne. Veio nela o desejo de ser a primeira em tudo, um espírito de emulação que a levava a passar na frente de todas as mulheres que encontrava na rua. Apostava consigo mesma: Chego na esquina antes daquela gorda. E chegava. Aparentemente se masculinizou: sapatos de salto baixo, abolição do decote, supressão de jóias, mangas compridas.
Por ocasião das festas de formatura de normalista recebeu um golpe doído com a sua escolha para fazer de pai da ingênua na comédia Quem com Ferro Fere... a ser representada no Teatro Municipal. O Professor Tadeu, autor da peça, a indicara como a única aluna capaz de fazer bem o papel. Ela recusou.
O Professor Tadeu, burríssimo, insistiu pensando ser amável mas magoando-a ainda mais:

- Não vejo outra. Dona Maria. Até o físico lhe ajuda, tudo enfim.

- Tudo?

Mana Maria respondeu com duas pedras na mão. E a comédia não se representou por falta de quem encarnasse o pai da ingênua.
Quis lecionar. Mas Dona Purezinha não consentiu:

- Não. O diploma é uma espécie de arrimo que você guarda para se um dia precisar.

Grande pena. Porque ela gostava de se imaginar lecionando, aterrorizando a classe com sua energia. Severíssima porém justa. Logo chegaria a diretora de grupo, inspetora, sabe Deus o quê. Acabaria com aquela indecência de alunas sapecas, encontrando-se com os namorados nas vizinhanças das escolas. Alunas só, não. Também professoras que davam maus exemplos. Veio depois a moléstia da mãe, ela feita enfermeira, dia e noite lidando com remédios, sofrendo impertinências, ouvindo descomposturas mas terminando sempre por impor sua vontade à doente. E aquele espírito de educadora se condensou todo na educação de Ana Teresa.
Meia-noite e meia ou uma hora da madrugada já? Acendeu a luz, olhou o relógio de cabeceira: uma e meia da madrugada. E ela sem sono. Apagou a luz. E o Dr. Samuel com aquela visita inesperada. Mana Maria sorriu dentro dela: chegou tarde. Mas uma revolta tomou-a toda e fez esta pergunta: por que tarde? Então a primeira vez em que um homem dela se aproximava com um sentimento que não era de indiferença, ela ia e o maltratava? Aos poucos lhe veio uma doçura de pensar que um homem, em nada inferior aos outros homens que conhecia, a desejava para mulher. Seu pensamento se fixava aí: ela era desejada para mulher. E se deliciava. Por uma manobra sutil desviava a questão que mais importava: a do casamento. Aceitava o Dr. Samuel para marido? Que é que lhe fazia deixar em suspenso esta pergunta como se fosse absurda? De repente lhe veio a idéia de vingança. Recusando o casamento que lhe ofereciam ela se vingava da indiferença com que os homens sempre a trataram. Uma bela vingança. Uma estúpida vingança. Uma estupidez pura e simples, devia dizer. Recusando o casamento, não se vingaria de ninguém. Pior: se maltratava. Não há dúvida, mas era essa a sua volúpia. O abandono de toda e qualquer vaidade feminina, aquela maneira deselegante de se vestir, aquela mania de contrariar a moda, aquela dureza diante dos homens, tudo isso não era natural. Ela sabia perfeitamente. Tudo isso era querido. E de tudo isso ela tirava orgulho. Um orgulho besta (ela sabia). Mais: uma volúpia (ela sentia). Havia momentos em que hesitava, quase se arrependia. Porém dizia: eu quis assim. Tinha traçado uma linha de vida e dela nada a afastaria. Nem o Dr. Samuel. Nem cem Drs. Samuéis. E lhe ficava (como sempre) a volúpia de pensar: Eu poderia fazer assim, entretanto fiz assado que era o mais difícil. Não me traí. E se me sacrifiquei foi a mim mesma.




Levantou-se às mesmas horas do costume. Qualquer hora que dormisse por mais tardia acordava sempre bem cedo. Não eram ainda oito horas e ela já tinha o livro embrulhado. Com um cartão entre a capa e o frontispício: "Maria H. Pereira, agradecida, devolve o romance Le mariage d`Huguette que leu com interesse." Mandou levá-lo logo depois do almoço. E avisou a copeira que não estava em casa para o Dr. Samuel Pinto. Nem que fosse para falar no telefone.
Naquela tarde precisava falar com o advogado por causa de um inquilino atrasado. Eram três horas quando ela perguntou para o empregado:

- O Dr. Tobias está?

Não estava, só voltava às cinco. Saiu. Em frente, o Cine Universal engolia um homem de fraque. Olhou o cartaz: Greta Garbo em Mulher Vendida. Detestava vampiros. Hesitou entre o cinema e uma volta vagabunda pela cidade. Cinema. A indicadora mostrou com uma lâmpada o único lugar vazio. Pescadores barbudos decepavam com um só golpe certeiro a cabeça dos peixes prateados.
E a orquestra tocava a Serenata de Toselli. Luz. O cavalheiro à sua esquerda murmurou: Perdão! E puxou a aba do fraque. Mana Maria se sentara na aba do fraque. O homem do fraque. Usava pencine. No cabaré fumarento Greta Garbo diante de um cálice vazio cismava com o olhar distante. E uma sujeita de boina fazia o possível para desviar a atenção do companheiro daquele olhar distante. Mana Maria percebeu a agitação do homem do fraque se remexendo na poltrona. Justo no momento em que o olhar distante como que por acaso se cruzou com o do seu admirador a mão do homem do fraque se pousou com hesitação na perna de mana Maria. Um pulo, um começo de escândalo e mana Maria precipitadamente demandou a saída. Na rua se perguntou se fizera bem em não esbofetear o imundo. E se respondeu que sim. Fizera bem. O que sentia era um misto de indignação e de nojo. Uma vontade de bater. Mas fora melhor assim. Cachorro. Um táxi passou. Tomou-o e mandou tocar para casa. O advogado ficava para outro dia. Fechou-se no quarto pensando que devia ter esbofeteado o cachorro.
Começou a andar (deu mais uma volta na chave do armário, endireitou uma cadeira, o vaso de flores, as almofadas), sentou-se na cama. E sentiu perfeitamente na perna esquerda um peso, uma pressão. Arrepiou-se, se levantou. Não tinha ninguém. De repente lhe veio essa idéia. Vivia sozinha. Vida estúpida de isolada. Não tinha mãe, o pai na rua o dia inteiro, a irmã no colégio o ano todo, não tinha amigas. Que coisa mais esquisita: não tinha amigas. Ia visitar tia Carlota.
O telefone tocou, depois a criada bateu na porta. Era o advogado. Que quinze dias de prazo, nada. Cinco no máximo. E se não pagasse, executasse. Deixou o telefone mais calma. A criada informou que o Dr. Samuel Pinto já telefonara duas vezes. Aí está. Tinha o Dr. Samuel Pinto. Dando ordens na cozinha, mexendo no jardim, verificando a conta do empório, não tirava o pensamento do Dr. Samuel Pinto.
Já não ia visitar tia Carlota. Já não se sentia tão sozinha. Mas como sempre a hipótese de um casamento era sumariamente afastada. Se contra a vontade atentava nela, todo o bem-estar que lhe produzia (quisesse ou não quisesse) a certeza daquela inclinação do Dr. Samuel desaparecia. Que esperança. Ainda que a mão fosse do marido e o marido fosse o Dr. Samuel. Que esperança. Pensava que não era bem isso. Não queria saber de homem e acabou-se. Nem de homem nem de coisa nenhuma. Pois mais duas telefonadas inúteis deu o Dr. Samuel aquele dia. E mana Maria cada vez mais calma, mais dona de sua vontade, mais senhora de si, mais mana Maria, desviou seu pensamento do Dr. Samuel Pinto, ouviu pacientemente a conversa inútil do pai, jantou bem, concluiu uma blusa de tricô, dormiu sossegada.




Joaquim Pereira tirou o chapéu, estendeu o jornal para mana Maria:

- Tem uma notícia aí que interessa você.

E mostrou com o dedo. Mana Maria leu e fincando o olhar no pai:

- Interessa por quê?

Joaquim desconcertado por aquele olhar tão duro balbuciou:

- Por nada, ora! Por se tratar de seu médico moderno!

Mana Maria pôs o jornal na mesa, olhou de novo para o pai. Não. Não havia segunda intenção nenhuma nas palavras dele. E o olhar perdeu a dureza tranqüilizando o chefe de seção do Serviço Sanitário que começou logo a alinhar as vantagens de uma viagem de estudos aos Estados Unidos por conta da Missão Rockefeller. Dr. Samuel Pinto fora escolhido entre muitos candidatos e isso demonstrava o valor dele. Ia estudar a organização de hospitais de crianças. Estava feito na vida. Naturalmente o governo, assim que ele voltasse o incumbiria da fundação de hospitais, ou nomearia diretor-geral, o que o Dr. Samuel quisesse. Quanto à clientela, nem era bom falar.
Mana Maria ouviu e comentou:

- Política.

E apesar dos protestos do pai não disse mais nada. Um momento ela pensou na possibilidade de qualquer relação entre os propósitos casamenteiros do médico e aquela viagem. Viagem de núpcias à custa da Missão Rockefeller? Despeito por causa dela? O espírito crítico em mana Maria era bem mais forte do que qualquer sentimento de vaidade. Sem nenhuma emoção pendeu para a primeira hipótese. Ficava o desejo dele de se casar com ela. E isso era coisa resolvida, morta, não a preocupava mais. Não perdia tempo com coisas inúteis. A pretensão do Dr. Samuel era coisa inútil.
Todos os santos dias o Dr. Samuel telefonava para ouvir da criada que Dona Maria não estava em casa e nem dissera a que horas voltava. Até que uma tarde Joaquim Pereira chegou em casa com a notícia de que o Dr. Samuel estivera no Serviço Sanitário. Vinha encantado com o Dr. Samuel. Que moço mais amável. E inteligente. Conversa bonita. Dentro de três meses partia para os Estados Unidos. Estava aprendendo inglês. Falara muito em Ana Teresa, em mana Maria. É verdade. Ele não sabia que o Dr. Samuel tinha estado há pouco tempo com mana Maria. Houve um equívoco e ele pensou que o tinham chamado. Joaquim falou:

- Você não me contou nada. Ele me disse até que lhe emprestou um livro, um romance ou não sei quê, em francês?

Mana Maria confirmou percorrendo o jornal da tarde que o pai trouxera. Dr. Samuel fazia questão fechada de apresentar suas despedidas pessoalmente para mana Maria. E Joaquim lembrou:

- Se a gente oferecesse um jantar para ele hem? Que tal?

Mana Maria detrás do jornal respondeu:

- Não.

Que diabo. Mana Maria parece que já estava implicando com o moço que tratara tão bem de Ana Teresa e cobrara tão pouco. Não custava nada dar um jantar.
Mana Maria pôs o jornal no colo:

- Não, papai.

Pela primeira vez diante da filha, Joaquim Pereira tentou uma resistência. Pensasse bem. Ele se falava em jantar é porque o Dr. Samuel dera a entender, quer dizer, ele era muito delicado, moço educado, não falou claramente mas deixou perceber que teria grande prazer nisso e tal. Mana Maria examinava as unhas. E ele - que é que havia de fazer? - ele por sua vez prometera, quer dizer, não fizera um convite franco, mas insinuara também que possivelmente jantariam juntos e tal. Logo. Logo, porque o Dr. Samuel antes de embarcar para os Estados Unidos precisava passar uns tempos no Rio e quem sabe mesmo dar um pulo até Sergipe. Que diabo. Não custava nada fazer uma gentileza para o moço.
Mana Maria sem erguer o rosto virou os olhos na direção do pai:

- Pois ofereça o senhor o jantar num restaurante.

Joaquim se queixou:

- Você me põe numa situação!

Durante algum tempo jantaram em silêncio. Houve um momento porém em que Joaquim Pereira fez um gesto bem mal fingido de quem se lembra de repente:

- Que cabeça! Ele quer saber se você gostou do tal livro!

Mana Maria veio com outra pergunta:

- Ele, quem?

Joaquim se impacientou:

- Ora, quem! O Dr. Samuel!

Então mana Maria destacou as sílabas:

- De-tes-tei!

E a queixa voltou:

- Você me põe numa situação!

- Bem menos difícil do que o senhor pensa.

- Isso você diz. Agora eu tenho que dar uma resposta amanhã para o moço! Imagine a minha cara! Eu não sei ser malcriado, é uma coisa que não está em mim, que é que você quer que eu faça?

- Nada.

- Como, nada?

- Mas, papai, o senhor está dando importância a uma coisa que não tem nenhuma!

- Tem! Como é que não tem? Então o moço se desfaz em gentilezas e eu vou ser grosseiro para ele?

- Mas o senhor não vai ser grosseiro. Depois, não vejo onde estão as gentilezas do moço.

- Ah! bom! Você não vê as gentilezas! Ah! bom Então não discuto mais!

- Mas quem é que está discutindo, papai? Que nervosismo é esse? Homem!

- Sabe de uma coisa? Ele me pediu sua mão em casamento! Pronto! Acha pouco?

- Acho idiota.

Pela primeira vez o pai chegara a enganá-la por uns instantes. Nem ela podia imaginar que o Dr. Samuel Pinto ousasse tanto. Mesmo quando, com o nervosismo do pai, percebeu claramente que sob aquela insistência inacostumada havia uma intenção oculta não pensou num pedido formal de casamento. Naturalmente o Dr. Samuel, elogiando-a, dissera do seu desejo de constituir família, que nem falou para ela. E Joaquim Pereira pegara logo a coisa no ar.
Agora o silêncio punha entre os dois uma distância imensa. Joaquim acendeu um cigarro. Não compreendia aquela atitude da filha. Nunca pensara na possibilidade de um casamento para mana Maria. Nunca a realizara casada. Mas agora que uma oportunidade se oferecia todos os seus instintos casamenteiros de pai acordavam. E se irritava diante da oposição da filha.
Mana Maria aproximou o cinzeiro:

- Não derrube a cinza na toalha, papai.

Joaquim se levantou, deu alguns passos, parou ao lado da filha, teve um ímpeto carinhoso de levantar a cabeça de mana Maria pelo queixo, reprimiu-o, disse baixinho o que pensava:

- Mas eu não compreendo...

Mana Maria fingiu ajudar:

- O quê?

Essas interrupções (ela sabia) o desconcertavam sempre. Por isso engoliu o resto:

- Nada. Uma coisa aqui que eu... Nada.

Mana Maria dobrou os guardanapos, pós as xícaras de café na bandeja, saiu.
O pai pensou: - Vai escovar os dentes.
De fato: entrou no banheiro.
Aquela calma incrível o punha fora de si. Era pedida em casamento e ia escovar os dentes. Como todos os dias, como se aquele dia fosse igual aos outros. Uma calma irritante. Sua filha era um monstro. Pensou e se arrependeu envergonhado. Que maçada. Que maçada. Puxou o relógio: oito horas. Tinha um encontro na cidade às nove.
A copeira veio arranjar a sala, deu com ele, voltou. Mana Maria surgiu logo:

- Vamos para a saleta, papai, que a Ernestina; precisa acabar de tirar a mesa.

Mana Maria sentou no sofá, Joaquim hesitou um pouco e sentou ao lado. Pôs as mãos nos joelhos tomou coragem.

- Você pensou bem?

- Papai, é melhor dar por encerrado esse assunto. O senhor se irrita e não adianta nada.

- Mas que é que eu vou dizer pro moço?

- Que o pedido não foi aceito.

- Mas não foi aceito por quê?

- Porque eu não pretendo me casar.

- Mas não pretende por quê?

- Porque não.

Joaquim teve um gesto de desanimo. Depois lhe veio uma idéia:

- Mana Maria, você ama alguém!

- Ora, papai, deixe disso.

O tom era tal que ele mudou de tática:

- Você já refletiu sobre sua vida? Você já pensou na possibilidade de ficar só no mundo com Ana Teresa?

Mana Maria se contentou em sorrir. E ó pai (atentando no ridículo do argumento aos olhos de quem sempre soube se governar por si) procurou corrigir:

- Eu sei que você não precisa dos conselhos da ajuda de ninguém nesta vida. Mas um homem em casa sempre representa alguma coisa, que diabo!

Mana Maria com a boca semi-aberta sacudiu a cabeça primeiro, depois fincou o olhar nas pupilas do pai:

- O senhor está falando sério?

Joaquim perdeu o jeito de uma vez. Só teve uma saída:

- Você é sua mãe escarrada, nunca vi!

E acendeu outro cigarro. Ficou com o fósforo apagado na mão, quis guarda-lo na caixa, mana Maria apontou com o dedo:

- Olhe ali o cinzeiro.

Estava infeliz. Era inútil. Não podia com a filha. Mas lhe custava se declarar vencido. Tudo nele se revoltava contra a decisão de mana Maria. E por mais que se esforçasse não conseguia esconder o que lhe ia por dentro. Arquitetava e destruía planos. E se amesquinhava com a certeza humilhante de sua fraqueza. De repente lhe veio uma idéia. Não deu a si mesmo tempo para arrepender e disse:

- Muito que bem. Não digo mais nada Mas também lavo as mãos e não me meto mais nisso. Você que responda pro moço como entender. E boa noite que preciso sair.

Deu dois passos na direção do guarda-chapéus. Mana Maria falou devagarinho:

- Mas, papai, o senhor mesmo não sustentou há pouco a utilidade de um homem em casa? E me incumbe de uma coisa que cabe ao senhor? Ao senhor e mais ninguém?

Qual o quê. O melhor era se confessar mesmo vencido. Mana Maria reconheceu imediatamente o Joaquim Pereira de sempre:

- Amanhã no almoço a gente continua isso.

E sem esperança nenhuma:

- Até lá, você pense melhor.

E com a mão no trinco:

- O travesseiro é bom conselheiro. Até amanhã.

Mana Maria falou:

- Até logo.

Já no terraço, antes de fechar a porta, Joaquim balbuciou:

- Quero dizer: até logo.




Tia Carlota vivia sorrindo e mostrava dentes bonitos. Mana Maria tinha um fraco por ela. Só a presença de tia Carlota faz bem pra gente, disse um dia. A mãe falou:

- Você também acha? Quando ela era moça toda gente dizia isso. Os moços, então!

Purezinha não sabia que ainda depois de casada a irmã com sua presença fazia bem aos homens. A ela, dava uma impressão de desordem. E às outras mulheres, de perigo. Mana Maria, severa com as mulheres (sobretudo do temperamento da tia), abria uma exceção para aquela criatura alegre que a divertia, até a enternecia que nem uma criança. E era mesmo uma criança.

- Deus não me deu filho (dizia tio Laerte) mas me deu uma mulher que é uma menina perfeita: esposa e filha ao mesmo tempo.

Era quinze anos mais velho do que ela, sofria de asma e nunca soube o que era trabalho.
Mana Maria (antes que a criada lhe anunciasse a visita) ouviu da copa o som do piano: tia Carlota na certa. Tocava um tango à maneira dela: velozmente, trepidamente. Assim executava tudo, fosse o que fosse. E nunca ia até o fim. Mal percebeu a entrada de mana Maria, deu um soco no teclado (- É uma lata este piano!), meia volta no tamborete e um pulo:

- Bom dia!

Sentaram-se no sofá.

- Tire o chapéu - disse mana Maria.

- Não, prefiro ficar com ele por causa da ondulação - respondeu tia Carlota.

- Como queira.

- Não; é melhor tirar.

Tirou, abriu a bolsa, olhando o espelhinho ajeitou as ondas.

- Você não tem um espelho decente nesta sala? Então vou no seu quarto.

Penteava, passava a escova, acariciava o cabelo com a mão, não acabava mais.

- Para fazer a boca prefiro o da bolsa.

Perto da janela, com a bolsa aberta bem erguida na mão esquerda, o lápis na direita, fez, desfez, fez, desfez, fez a boca.

- Agora um pouco de pó-de-arroz. Este nariz é a minha diferença. Tenho horror de nariz vermelho! E você?

Mana Maria nem respondeu. Agora as pestanas. Molhava a escovinha na boca, passava nas pestanas. Agora as sobrancelhas, dois fios. Agora de novo a boca. E de novo o penteado. E mais um pouco de pó-de-arroz.

- Não se toma chá nesta casa?

- Toma-se!

- Então vá providenciar enquanto eu dou inspeção nas unhas.

Um minuto depois mana Maria voltou encontrando tia Carlota bastante contrariada.

- Eu acabo não tocando mais piano por causa destas malditas unhas! Não há dia que não lasque uma! Que horror! Que é que tem para o chá? Uma porção de coisas gostosas? Ótimo. Estou com uma fome! Você não pode imaginar como a Etelvina está cozinhando mal! Quase não almocei. Também eu para dona de casa não tenho jeito mesmo, é inútil! Você, sim, puxou por sua mãe! Como vai Ana Teresa?

- Vai bem.

Tia Carlota tomou dois goles de chá, engoliu um pedacinho de bolo, suspirou:

- Pronto! Já estou farta! Que será, hem, Maria? Em tudo eu sou assim! Estou com fome, sento na mesa, perco a fome! Vejo um vestido bonito, compro o vestido, me enjôo logo! Que será?

- Fartura.

- Fartura? É o que você pensa, minha filha!

Acendeu um cigarro, cruzou as pernas, estalou as unhas, demorou o olhar em mana Maria:

- Vamos pra outra sala?

Tinha alguns livros sobre a mesinha redonda.

- Você está lendo livros comunistas, Maria?

- Estou.

- Que horror! Ali! é verdade! Seu pai me falou que você tem um romance estupendo que um tal Dr. Pinto lhe deu! Você quer me emprestar?

- Já devolvi. Foi emprestado, não foi dado. E não tem nada de estupendo.

- Seu pai que disse!

- Quando é que esteve com ele?

- Ontem. Achei ele preocupado!

Tia Carlota de repente pegou nas mãos de mana Maria:

- Vamos! Responda! Por que é que você não quer casar com o Dr. Ismael Pinto?

- Não é Ismael: é Samuel.

- Isso mesmo: Samuel.

- Por quê? Papai é que lhe encomendou essa pergunta, está visto!

- Foi ele sim. Mas isso não tem importância. Responda pra mim. Por quê?

- Por que é que você casou com tio Laerte?

- Ora essa. Porque... porque gostava dele, porque queria casar.

- Pois é isso.

- Como isso?

- Não caso porque não gosto do médico e não quero casar.

Tia Carlota esmagou o cigarro no cinzeiro (Abdulla tem esse defeito, queima sozinho) tornou a pegar nas mãos da sobrinha, arranjou um ar grave:

- Sabe de uma coisa? Você faz muito bem! Não gosta dele, não case! Depois, você tem dinheiro, não precisa de amparo de ninguém.

- Nem que precisasse.

- Ora essa. Ah! não! Isso não!

O protesto foi tão pronto, tão vivo, que mana Maria estranhou. Tia Carlota percebeu a estranheza:

- Para que essa cara.

- Nada. Pensava que você não dava importância a dinheiro.

- Não dou mesmo. Gasto tudo quanto tenho. Desprezo dinheiro. Dinheiro para um é lixo. Jogo fora logo. Mas não vale a pena falar em coisas tristes.

Ergueu-se, foi até o porta-chapéus (- Você precisa reformar estes móveis, não se usa mais porta-chapéus de gancho!) olhou de perto a boca, olhou mais de longe os cabelos, suspirou.

- Bom. Vou dar o fora. Minha missão está cumprida.

Mas era evidente o desejo de ficar. Mana Maria sentia isso, percebia na tia a vontade, talvez a necessidade de um desabafo.

- Fique mais um pouco falou.

- Está bem. Fico se você me deixar fumar um cigarro. Quem fuma seus males espanta. Não sabia?

- Fico sabendo.

Aquela figura sentada no bordo do sofá, de pernas trançadas, o busto inclinado para a frente, cotovelos fincados no regaço, a mão que segurava o cigarro à altura da boca, mana Maria via sempre, igualzinha, nos desenhos de capa de revista, nos retratos de estrelas cinematográficas. Todos os gestos e atitudes de tia Carlota eram convencionalmente elegantes, de tela.

- Que olhar é esse? Nunca me viu? Não gosto que olhem para mim!

Mana Maria sempre pensou o contrário.

- Você se engana! Detesto que me olhem! Toda a gente me acha bonita. Me dá uma raiva! Eu não me acho feia. Mas também essa maravilha que dizem!...
Então se queixou da vida. Estava farta da vida, estava farta de ouvir elogios. Só isso é que ouvia em toda a parte, a toda a hora. E de repente:

- Você não sente às vezes vontade de fazer uma loucura? Não sei bem dizer, uma coisa assim como se jogar pela janela, quebrar tudo, apunhalar gente na rua? Eu sinto. Hoje estou nos meus dias. Briguei com Laerte, gritei com os criados, pintei o sete! Este maldito cigarro, se a gente não toma cuidado, queima os dedos. Também é a última caixa...

- Por quê?

Fez um sorriso amargo.

- Por quê? Você quer saber por quê? Porque não há mais dinheiro! Ah! Senhor! É melhor não ligar pra esta miséria de vida!

Foi para o piano.

- Sabe que é isso?

- Viúva Alegre?

- Ainda não, infelizmente!

E riu. Mana Maria não achou graça.

- Você precisa arranjar uma ocupação qualquer, tia Carlota. Uma coisa que lhe encha o tempo. Uma coisa séria. Um filho, por exemplo.

- Está doida! Basta o marido! Você ainda quer me dar um filho! Deus me livre!

Largou o piano, acendeu mais um cigarro:

- Isso que eu disse é brincadeira minha. Você precisa se casar.

Então chegou a vez de mana Maria rir.

- Não ria não. É isso mesmo. Mulher foi feita para casar.

- E ter filhos.

- Isso não. Quer dizer: você por exemplo é o tipo da mãe. Mas eu não. Não tenho saúde, não tenho jeito e agora também já não tenho dinheiro.

Esse assunto de dinheiro não agradava mana Maria. Ia dirigir a conversa para outro lado. Mas tia Carlota continuou:

- Se você soubesse a apertura em que nós estamos...

Não houve outro jeito senão falar:

- Não é possível.

- É sim.

E os olhos umedeceram logo porque em tia Carlota as lágrimas eram fáceis como a alegria. Foi preciso ir para o quarto de mana Maria onde havia deixado a bolsa com o lenço. De pé, virando a cabeça de forma a concentrar as lágrimas no canto do olho para chupá-las com a pontinha do lenço torcida, tia Carlota ia falando:

- Já há tempos eu via Laerte preocupado. Até que ontem ele me contou a verdade. De forma que este inverno não podemos sair de São Paulo. Veja você que situação!

Mana Maria sem dizer palavra esperava o momento da facada. Recusaria? Recusaria.

- E de vestidos, então, nem se fala! Aí mana Maria falou:

- Que criancice, tia Carlota! Para que mandar fazer mais vestidos? Você já tem uma coleção enorme. E toda ela moderna. Esse de hoje por exemplo é novo.

Tia Carlota guardou o lenço na bolsa, estava mesmo em frente do espelho grande do guarda-roupa, aproximou-se, passou as mãos pelas cadeiras, arqueou os braços, colocou-se de viés e sem tirar os olhos do espelho:

- Você não acha que ele me engorda um pouco?

- Não. Vai muito bem para você.

Tia Carlota começou a pôr o chapéu.

- Se eu pudesse diminuir um pouquinho estes seios! Operação eu não faço, tenho medo. Mas não são muito exagerados, você não acha?

- Que idéia!

No jardim tia Carlota perguntou:

- Então, nada feito?

- Como, nada feito?

- Casamento? Seu pai na certa aparece hoje a noite para saber o resultado. Não fale nada com ele, bem?

- Fique descansada.

- Nada feito?

- Nada.

Mana Maria acompanhou-a até o automóvel. Já o chofer batera a porta quando tia Carlota se lembrou:

- É verdade! Vocês vão jantar comigo quinta-feira?

- Vamos!

- Não se esqueçam! Às oito horas!

Mana Maria fechando o portão pensava no presente de aniversário para tia Carlota. Um vidro de perfume? É. Tabac Blond.




Joaquim Pereira ainda não eram sete horas e já atropelava a filha:

- Você não vai se vestir?

- É cedo. Em cinco minutos eu me apronto.

- Está bem.

Mas positivamente não estava. Ia para o quarto, perfumava o lenço, dava uma escovada no cabelo, voltava para a saleta onde a filha lia um jornal da tarde.

- Olhe que já são sete horas!

Mana Maria pousou o jornal no colo:

- Mas, papai, que pressa é essa?

- Você sabe que eu gosto de comparecer na hora marcada. Acho uma falta de educação a gente chegar tarde.

- Fique sossegado que nós chegaremos a tempo.

E chegaram. Joaquim se demorou pagando o táxi. Depois, como a filha não se movesse da calçada, falou:

- Vá entrando, que eu tenho ainda de comprar cigarros na esquina.

Mana Maria entrou. E logo no hall, sentado entre tio Laerte e um irmão deste, Major Nicolau, membro do Instituto Histórico e Geográfico, deu com o Dr. Samuel Pinto. Instintivamente teve um movimento de recuo. Mas foi um segundo. Tio Laerte veio ao seu encontro. Visivelmente contrafeito.

- O Joaquim?

- Vem já.

Mana Maria apertou a mão do major. O Dr. Samuel Pinto estendeu a sua.

- Já se conhecem, não é verdade? falou tio Laerte.

- Já. Boa noite, doutor.

E quando o médico afogueado e sorridente observava que há muito não tinha o prazer de a ver, etc.:

- Com licença.

Tia Carlota estava na sala de jantar às voltas com um vaso de flores. A mulher do Major Nicolau contava as graças do neto. Tia Carlota se enrubesceu um instante. Mana Maria viu o rubor, falou entregando o presente:

- Para você perfumar seu aniversario.

- Ora, para que você foi se incomodar? Muito obrigada.

Esperava uma palavra de protesto, uma censura indignada. Mas a calma da sobrinha, seu ar de indiferença, a fez pensar que vinha avisada pelo pai ou ao menos com o espírito preparado. Antes assim. A presença do Dr. Samuel lhe fora anunciada horas antes. Ela protestara a princípio. Falou mesmo em indecência. Mas o marido, para sua grande surpresa, fincou o pé. E ela cedeu certa de que a sobrinha se indignaria, faria um escândalo, qualquer coisa assim. A responsabilidade não era dela. E isso mesmo pretendia explicar para mana Maria.

- Venha tirar o chapéu.

Foram para o toucador.

- Olhe, Maria, eu lhe dou minha palavra de honra que o convite ao Dr. Samuel...

- Eu estou lhe perguntando alguma coisa?

- Não. Mas eu faço questão que você saiba...

- Eu não quero saber nada.

Tia Carlota ficou sem jeito.

- Ao menos você não está zangada com comigo?

- Zangada propriamente, não. Surpresa. Nem isso. Está tudo certo.

E sorriu. O sorriso doeu em tia Carlota. Humilhou-a.

- Olhe, Maria, eu não sei o que você está pensando. Mas eu juro para você que seu pai e Laerte é que arranjaram essa embrulhada. Laerte só me avisou faz umas duas horas, se tanto. E me proibiu que prevenisse você.

Era verdade. Mana Maria sentiu. Nunca a tia lhe falara naquele tom de sinceridade.

- Acredito. Fique descansada que isso não tem importância nenhuma.

Voltaram para a sala de jantar. Uma porta envidraçada separava-a do hall. Tia Carlota falou:

- Façam o favor...

Joaquim foi o último a entrar. Parecia um menino chamado para receber o castigo da travessura. Seu olhar se encontrou com o da filha. Um segundo. Mas bastou para que ele percebesse o desastre. De forma que um mal-estar horrível tomou conta dele. Sem saber bem o que fazia olhou o relógio. O Major Nicolau caçoou:

- Que é isso? Está com pressa, homem? Quis dizer qualquer coisa, não soube, sorriu desenxabido. Tia Carlota colocou o Dr. Samuel à sua direita e para junto deste mana Maria se deixou empurrar por tio Laerte. Do outro lado da mesa redonda bem em frente ficou o pai. Dona Ester, mulher do Major Nicolau, perguntou para mana Maria:

- Ana Teresa como vai?

- Vai bem, obrigada.

- Já deve estar mocinha.

Dr. Samuel entrou na conversa:

- Guardo uma excelente impressão dela. Uma menina muito dócil, muito bem-educada. Deve lhe dar muita satisfação, pois não?

Mana Maria não respondeu.

- Imagine! É como se fosse filha dela! - falou tia Carlota.

- Esta sopa é de milho verde?

- É. Você não gosta? perguntou tio Laerte. O major falou:

- Gosto muito. Parece espargo.

- É espargo que se diz? Sempre ouvi dizer aspargo.

O major deu duro na mulher:

- Espargo, sim senhora! Aspargo falam as cozinheiras. Delas é que você ouviu dizer aspargo!

- Você está enganado! Ouvi dizer de muita gente boa.

- Ignorância.

- Mas que discussão! exclamou tia Carlota. Deixa isto para o Instituto Histórico, Nicolau.

- Se o senhor gosta de História, Dr. Samuel, tem aqui um entendido.

- A História é mestra da vida, minha senhora. Quem sabe História sabe o futuro.

- Bravos! aplaudiu o major.

- Para que saber o futuro, agora? Depois cartomante também sabe sem estudar História. Estou brincando, Nicolau, não vá se zangar.

O major arranjou um ar galante:

- Com você eu não me zango nunca.

O que amargou profundamente a mulher:

- Guarda toda a zanga para mim.

E começaram então a discutir, Dona Ester e tia Carlota atacando os maridos que fora de casa vendem alegria e no lar implicam com tudo, num mau humor constante. Dr. Samuel achou azado o momento para conversar em voz baixa com mana Maria:

- Se não fosse esse jantar eu não teria com certeza o prazer de cumprimentá-la antes de minha partida?

Mana Maria não abaixou a dela para responder:

- Com certeza não teria mesmo esse aborrecimento inútil.

- Aborrecimento? A senhora sabe perfeitamente que não seria.

Mana Maria com o olhar posto no pai, que desviara o seu, foi logo às do cabo:

- Mas eu creio que lhe dei uma resposta bem clara ao seu pedido de há dias. Só se não lhe transmitiram.

Insensivelmente abaixou a voz que tremeu um pouco. O Dr. Samuel sorriu amarelo:

- Transmitiram sem me tirar de todo a esperança. Depois, nós do Norte somos tenazes. Não cedemos diante do primeiro obstáculo não.

Mana Maria sentiu o rosto afogueado. Em torno dela era visível o mal-estar. A discussão sobre os maridos mal-humorados havia cessado. A razão daquela presença cerimoniosa, até então disfarçada, se patenteava grosseiramente mesmo aos olhos desprevenidos do major e sua mulher. Havia em todos um ar de condescendência contrafeita, de cumplicidade acanhada.
Tia Carlota querendo salvar a situação, piorou-a dirigindo-se ao cunhado:

- Que tristeza é essa, Joaquim? Não disse uma palavra até agora.

A resposta saiu tímida, arrastada:

- Eu? Eu estou... ouvindo... Não tenho... motivo nenhum para tristeza.

- Muito ao contrário - pensou sublinhar com malícia o major.

Mana Maria foi ganhando um nojo enorme daquela comédia toda. E com o nojo tinha pena do pai, do papel triste que ele fazia ali. Estava arrependido. Era visível. E temia as conseqüências, o pedido de explicação da filha, a censura fatal que o humilharia. Só o sentimento de sua superioridade dava a mana Maria a calma necessária para não estourar, acabar de uma vez com a farsa. Ela era a mais forte. E a consciência disso tornava sem importância o resto. e jantar podia durar a noite inteira, a vida inteira. Inutilmente. Ela era a mais forte.
Tia Carlota não tinha vontade nenhuma de conhecer os Estados Unidos.

- Aposto que o senhor vai se aborrecer, Dr. Samuel. É verdade que o senhor vai estudar, não vai se divertir.

- A senhora prefere a Europa?

- Tenho uma vontade louca de conhecer a Europa. Mas Laerte não se decide.

O olhar de tia Carlota era um olhar de subentendidos. Punha reticências, segunda intenção, na frase mais banal. Olhar que encorajava. Doutor Samuel aos poucos foi se entregando à sedução. Como um derivativo. Mana Maria discutia educação infantil com o major. Dona Ester contava graças do neto para o cunhado, tia Carlota e o médico pegaram a conversar entre sorrisos. Joaquim, sem dizer palavra, fingia prestar atenção a Dona Ester. Inteiramente voltada para o major, seu vizinho da direita, mana Maria defendia a educação religiosa. Até que uma risada mais alta e demorada de tia Carlota desviou para ela a atenção de todos.

- Sabem o que o doutor acaba de me confessar?

Doutor Samuel ficou uma pinóia.

- Acredita ainda no teu amor e uma cabana!

Ninguém achou graça. E o mal-estar voltou. O médico passou a odiar tia Carlota. Uma leviana. Uma mulher perigosa. Naturalmente tinha amantes. Ou então era dessas que de repente cortam a ponte que elas mesmas lançam. O major falou:

- Mas o Dr. Samuel tem toda razão, Carlota. O amor se contenta com pouco.

- Só que o doutor se esqueceu dos filhos - disse Dona Ester. - Os filhos completam a felicidade.

Tia Carlota estava de veneta:

- Que é que você entende por felicidade? Felicidade para mim é não pôr desgraçados no mundo Aí está!

- Ah! Bom ! você pensa assim...

Dr. Samuel achou oportuno se dirigir a mana Maria:

- As crianças são o encanto do mundo, a senhora não acha, Dona Maria?

Mas foi tia Carlota que respondeu:

- Para os médicos de crianças principalmente!

Então o Dr. Samuel, a princípio irritado, depois visivelmente deliciado com as próprias palavras, fez o elogio da criança. Para o Dr. Samuel, acreditassem, curar uma criança ele não poderia dizer que era um prazer. Sim. Podia. Era um prazer. Isto é: não era dos que curavam por obrigação, com mero fito de lucro. Não. Ele punha na salvação do corpo o mesmo ardor que um sacerdote poria na salvação da alma.

- Belas palavras, sim senhor ! - exclamou o major.

E partidas do coração, acreditassem. Do leito de uma criança doente ele nunca se aproximou sem piedade e nunca se afastou sem proveito. A infância e a velhice são as coisas mais sagradas deste mundo porque são as que se encontram mais perto de Deus. Sobretudo a primeira. Porque o velho vai para Deus purificar-se das misérias do mundo. E a criança vem pura de Deus, livre ainda das misérias terrenas.

- Bravos, doutor ! Eu sempre pensei assim! - falou Dona Ester.

E com razão. Os povos de civilização superior têm o culto da criança. Por quê? Porque a criança é o futuro, é o que conforta e sustenta os homens, aquilo que os anima ainda na hora da morte: a esperança.

- É isso mesmo! "Lasciate ogni speranza..." - aparteou tio Laerte.

Sim. Na porta do inferno. Ele poderia citar mil casos de sua clínica para provar a superioridade da criança. Mas seria repetir o que está na consciência de todos. Contaria um fato só, bastante eloqüente. Tratava ele uma menina, vítima de pertinaz moléstia infecciosa. Era órfã. Mas tinha ao seu lado quem lhe fizesse as vezes de mãe e de mãe extremosa. Um dia, examinando o termômetro, verificou que a doentinha ainda estava com febre.
E ele ia comunicar isso àquela que dia e noite na cabeceira da criança se desdobrava em desvelos verdadeiramente maternais, e que naquele momento se achava de costas para o leito, quando seu olhar se encontrou com o da doentinha. E naqueles olhos infantis de expressão puríssima, que a febre tornara ardentes, ele leu claramente um pedido a que não pôde deixar de se submeter: o pedido de não dizer nada, de não afligir a enfermeira dedicada, com a notícia de que a febre ainda não cedera. Só depois de se retirar do quarto, pondo seu dever de médico acima de tudo, é que ele fizera a comunicação com tanta grandeza de alma proibida pela criança.

- Lembra-se, Dona Maria?

Era a chave de ouro. Dona Ester emocionada quis falar:

- Meu netinho também...

Mas não pôde concluir. Porque o marido cobria sua voz:

- É o que eu sempre sustentei! Desses gestos só uma criança é capaz! Admirável! Admirável! E sem saber bem o que dizia:

- Meus cumprimentos, Joaquim! Também para você, Maria!

A admiração que sempre lhe causava a facilidade oratória do Doutor Samuel quebrara o embaraço mudo do chefe de seção do Serviço Sanitário:

- Sempre foi de fato uma menina de muitos sentimentos, Ana Teresa! Felizmente.

Mana Maria procurou uma saída para aquela cena ridícula. Falou no ouvido do major:

- Creio que é hora da saúde.

- É? Você acha? Não terá champanhe? Eu não vejo taça!

- É nesse copo comprido que servem.

O major observou:

- Futurismo.

E alto para o irmão:

- Como é, Seu Laerte, não tem champanhe para a saúde?

- Tem, como não!

De forma que depois de um ligeiro protesto de tia Carlota (para quem era bobagem essa história de saúde) se fez um silêncio de expectativa. A criada encheu os copos. Feito o quê, o major tomou a palavra de copo erguido:

- Carlota, queira receber os nossos votos de muita felicidade! Ad multos annos!

- Muito obrigada pela felicidade e pelo latim! É latim, não é?

- Do bom! Daquele que se ensinava no meu tempo, não desse de hoje.

Mana Maria perguntou sorrindo:

- Tem diferença?

Mas não obteve resposta porque tio Laerte bebia à saúde de Dona Ester, marido, filhos e netinhos. Pousados os copos, houve nova saúde levantada pelo major que desejou muita prosperidade para o caro Joaquim e suas gentilíssimas filhas. A criada surgiu com uma bandeja de sorvetes. Tio Laerte falou:

- Espere um pouco. Tem ainda uma saúde. À felicidade do Doutor Samuel e ao bom êxito de sua próxima viagem!

Dr. Samuel se declarou comovido no seu agradecimento. E reparou que mana Maria mal ergueu o copo sem levá-lo aos lábios. O major achou o sorvete ótimo. Joaquim e a filha concordaram. Dr. Samuel adiantou que nunca tomara tão bom. Dona Ester em vez do esperado elogio perguntou:

- Sua cozinheira que fez?

Tia Carlota falou:

- Quem mais?

- Podia ser de confeitaria.

O major se zangou:

- Êta mulher, meu Deus! Quando é que confeitaria já fez sorvete assim?

Dona Ester ostensivamente deixou o sorvete pela metade.

- Café aqui ou no hall?

- No hall - preferiu tio Laerte.

Tia Carlota se levantou. Sentada na cadeira de vime depois que o Dr. Samuel lhe acendeu o cigarro compôs seu olhar mais perigoso e disse baixo:

- Perdoe a minha brincadeira de há pouco.

- Ora, minha senhora! Eu é que lhe peço perdão de contrariar suas teorias amorosas. Naturalmente fruto de uma experiência que me falta..

Era a vingança. Acadêmico na Bahia, o Dr. Samuel ganhara fama de terrível ironista.

- Você acha?

Estranhou o você. Não. Com ironia não ia. Melhor ser cínico. Tinha sempre na lembrança o que lhe dissera sua mãe sobre as donas da alta sociedade: são as piores.

- Meu olho de clínico, minha senhora. Não falha.

Tia Carlota desviou o rosto, franziu as sobrancelhas, demorou o olhar na sobrinha que conversava com Dona Ester, encarou o doutor, disse num sorrisozinho:

- Então é certo o que dizem? Os médicos só acertam no diagnóstico e conseguem curar quando se trata de doença alheia? Quando eles mesmos ficam doentes não sabem se tratar?

Com mulher daquele tipo ele não sabia lidar. Não era a primeira vez que verificava isso.

- Que é que a senhora quer insinuar com isso?

Ela fingiu impaciência:

- Ora! Morda aqui! E a minha experiência amorosa onde é que está? Se quiser eu lhe servirei de médico-assistente.

- Não se brinca assim com os sentimentos alheios, minha senhora!

- Mas eu não estou brincando. E francamente acho seu caso desesperador, sem remédio...

Dr. Samuel ia ser malcriado. Positivamente. Com certeza tia Carlota percebeu isso no jeito nervoso dele. A criada entrava com o café, ela disse:

- Em todo o caso experimente uma xícara de café. Quem sabe fará bem...

Levantou-se, foi para junto da sobrinha. Então o major e Joaquim se aproximaram do médico. O major desenvolvia um de seus temas históricos prediletos: a vantagem que resultaria para o Brasil se tivesse vingado a colonização holandesa. E era uma de suas manias: não dizia Holanda, dizia Batávia. De forma que Joaquim concordava sem entender direito.

- Hein, doutor? Não é verdade? O Brasil colônia da Batávia! Que colosso.

O Dr. Samuel não estava disposto a discutir o que quer que fosse naquele momento. Sentia-se humilhado. Era homem que se humilhava com facilidade mas não inutilmente. Então o seu orgulho doía.

- Sob o ponto de vista da eugenia, por exemplo. Que é que o senhor acha?

O Dr. Samuel não quis achar nada:

- Não sei não. Seria um caso interessante a estudar.

- É um ignorante, pensou o major. E com redobrada segurança prosseguiu em suas considerações.
Enquanto o médico procurava tomar uma resolução. Retirava-se. Despedia-se secamente e retirava-se. Logo. Mas isso era abandonar a luta e não era de seu feitio abandonar uma luta. Nem até então fora vencido em nenhuma. Quando Joaquim timidamente, por meias palavras, lhe comunicou a resposta da filha ao pedido de casamento, ele perguntara: O casamento é de seu gosto, pois não? Joaquim pela milésima vez disse que sim. E Dr. Samuel, dominando â vontade aquele homem sem nenhuma, obteve dele que arranjasse um encontro com a filha: - Eu a convencerei, tenho certeza. Mas de que forma? - Joaquim não descobria um jeito bom. Andava à procura dele quando lhe apareceu o concunhado para pedir depois de uma conversa muito longa cinco contos de réis por quinze dias. Cinco Joaquim não tinha. O que confessou sumamente envergonhado. Tinha (ia dizer três) mas insensivelmente saiu um. Disse, um, sentiu remorso, acrescentou: um e quinhentos. E ficou em paz com sua consciência. Tio Laerte guardou o cheque e ouviu as queixas de Joaquim.

- Então não quer casar mesmo?

- Veja você. Recusar um partido dessa ordem!

- E ele continua firme? Firmíssimo.

- Ah! Então fique tranqüilo. A Maria acaba cedendo. Você não conhece nortista.

A questão é que conhecia a filha. Contou o embaraço em que estava. E foi então que tio Laerte sugeriu convidar o pretendente para o jantar de aniversário da mulher. Esta ficaria por conta dele. Joaquim (como sempre) relutou em aceitar a idéia. Mas o cunhado avocou para si toda a responsabilidade:

- Se ela ficar zangada, você manda falar comigo.

Joaquim cedeu:

- Assim, sim.

Apertou agradecido a mão do concunhado (podia ter dito dois contos), recusou os agradecimentos dele, comunicou logo o plano ao Dr. Samuel.

- Olhe que é a última tentativa que eu faço. Dr. Samuel garantiu que nem era necessária outra. E entregava os pontos? Não entregava.

- Já disse para os confrades do Instituto Histórico e estou pronto a repetir onde e quando queiram: se o Brasil tivesse passado para o domínio da Batávia seria hoje o primeiro país do mundo!

Joaquim arriscou uma pergunta tímida!

- Maior que a Inglaterra?

- Maior que a Inglaterra!

Tio Laerte perguntou:

- Que é que é maior que a Inglaterra, Nicolau?

E informado do que se tratava deixou o grupo das mulheres para discutir com o irmão. O que ele fazia sempre para pôr em destaque os conhecimentos históricos do major, sua grande admiração. Fazia umas objeçõezinhas que ele mesmo sabia idiotas para o major responder com vantagem. O Dr. Samuel se decidiu e entrou na conversa das mulheres. Dona Ester falava do netinho. Não tinha outro assunto.

- Que idade tem ele, minha senhora?

- Vai fazer quatro anos em agosto.

- É forte?

- Oh! uma criança linda! Só queria que o senhor visse!

Por enquanto ele não tirava os olhos de mana Maria. Mas como dizer o que queria na presença das outras? Se não o deixavam a sós com ela por que aquele jantar? Tia Carlota falou:

- Sente-se, doutor.

Sentou-se no canapé de vime ao lado de mana Maria. O olhar malicioso de tia Carlota irritava-o. Aquela mulherzinha estava se divertindo à custa dele.
Tinha umas pernas bonitas a sem-vergonha. Dona Ester traçava um plano de educação para o netinho:

- Eu já disse para Nini. Nada de botar o menino desde cedo num colégio. A melhor educação é a que se dá em casa. Dizem que os comunistas na Rússia separam as crianças das mães. Comigo, eles veriam! Preferia matar meu filho a entregar para os bandidos! O senhor não é comunista?

- Sou adversário decidido do comunismo, minha senhora! A sociedade não prescinde dessa célula que é a família e o comunismo destroi a família! Ainda há pouco li um estudo...

Tia Carlota interrompeu:

- Comunista aqui só existe a Maria.

Dona Ester se sacudiu toda na cadeira:

- Que horror, minha filha! É verdade?

- Brincadeira de tia Carlota.

- Não é não. Você é comunista.

Doutor Samuel interveio:

- Dona Maria naturalmente é uma inteligência aberta às reformas sociais. Percebe, como todos nós, os erros do regime capitalista e quer...

- Não! Eu não posso acreditar que Maria seja comunista! Que horror, meu Deus!

Mana Maria sossegou Dona Ester:

- Não acredite. Tia Carlota gosta de brincar. Eu tenho um instinto de propriedade tremendo. O que é meu é meu. E em geral só gosto do que me pertence. Não poderia morar numa casa que não fosse minha.

Levantou-se.

- E vou para ela, papai, minha casa que já são horas. Papai, vamos indo?

Disse num tom tão brusco que assustou tia Carlota, incomodou Dona Ester, empalideceu o Dr. Samuel. Joaquim perguntou de mansinho:

- Você falou comigo?

Tia Carlota não deixou a sobrinha responder:

- Não é nada, Joaquim! Pode continuar sua conversa!

Mana Maria se arrependia mas não cedia. A idéia lhe veio de repente, ela falou, se levantou, não se sentava mais.

- Não, papai. São horas. Vamos?

Tia Carlota teimou:

- Não admito! Que horas, coisa nenhuma! Sente-se, Maria, deixe de ser boba!

- Não. Se papai quiser ficar, eu vou sozinha. Mais uma vez (tinha consciência disso) decidia o seu destino.

E abandonando o caminho que para outras seria o mais agradável ou o menos desagradável (para ela também, quem sabe, não queria saber) escolhia o outro, o dela, onde seria sozinha. Joaquim não dizia palavra, ar de tonto, hesitando. A filha decidiu por ele:

- Fique papai. Naturalmente tio Laerte quer jogar. Eu tomo um táxi. Não tem importância. Com licença.

Foi pôr o chapéu. Dona Ester falou baixinho para o Doutor Samuel:

- Ela teria ficado aborrecida com o negócio do comunismo?

- Como, minha senhora?

- A conversa sobre o comunismo parece que contrariou a moça.

O Doutor Samuel pôs um profundo sarcasmo na voz:

- Não foi isso não, minha senhora! A razão é outra. Eu conheço bem esses temperamentos. Freud explica isso.

- Quem?

- Freud. A senhora nunca ouviu falar em Freud?

- Não. Quer dizer...

- Pois Freud explica o caso perfeitamente, esses nervosismos subitâneos, essas explosões.

Tia Carlota seguira a sobrinha.

- Eu compreendo sua vontade de ir embora. mas faça um esforço e fique mais um pouco.

Mana Maria disse que não, que estava de fato cansada, se levantara muito cedo, passara a tarde inteira na cidade fazendo compras, queria dormir.

- Está bem. Mas não guarde nenhuma raiva de mim.

- Raiva por quê?

Enquanto a sobrinha punha o chapéu (foi um segundo), calçava as luvas (nem arranjara o rosto). Tia Carlota aprovava a resolução da sobrinha:

- Você quer saber de uma coisa? Você tem toda a razão. É um bocó de mola. Quer dizer: todo metido a sebo, falando difícil, teimoso (eu gosto de homem teimoso), mas um bocó. Depois, feio! Parece um sapo. Papapá, papapá, papapá, minha senhora pra cá, minha senhora pra lá, medicina é sacerdócio. família é não sei quê, não vai não.

Mana Maria (estava nervosa) falou:

- Pois eu pensei o contrário. Pensei que ele tinha agradado você.

- Por quê? Porque brinquei com ele?

- É...

- Xii, Maria, você não me conhece!

Sorriu, acrescentou com um brilho nos olhos:

- Quando eu quero de verdade ninguém resiste...

Outra qualquer dizendo isso irritaria mana Maria. Tia Carlota era diferente. Era uma menina louca. Mana Maria falou e abriu a porta:

- Eu imagino.

- Como os homens são idiotas, meu Deus!

Mana Maria quis chamar um táxi.

- Não. Eu mando levar você. O chofer está aí para isso.

Mana Maria não aceitava nada de ninguém:

- Para quê? Eu vou bem de táxi.

- Não, senhora. Um marido eu compreendo que se recuse. Mas um automóvel não admito. É o cúmulo.

Agora era o momento difícil da despedida. Ninguém se sentia à vontade. Mana Maria apertou a mão do major:

- Boa noite, major.

- Então, já vai?

- Já.

- Boa noite.

Apertou a mão mole (mana Maria desconfiava de quem não punha energia no aperto de mão) de tio Laerte:

- Até qualquer dia.

- Quer deixar mesmo a gente tão cedo?

- Preciso.

- Vá com Deus.

Apertou a mão de Dona Ester (mana Maria detestava beijos):

- Lembranças para Nini. E para o netinho também.

- Você precisa marcar um dia para conhecer ele.

- Qualquer dia telefono.

- Não deixe mesmo de telefonar.

Apertou a mão do Doutor Samuel sem dizer palavra. Só uma ligeira inclinação de cabeça. Foi comoção, foi qualquer coisa. ele reteve a mão enluvada murmurando:

- Muito prazer...

Com um ligeiro puxão, ela se desembaraçou, disse para o pai:

- Então, até logo.

- Até logo. Eu não demoro muito.

Tia Carlota acompanhou-a até o terraço:

- Desse você está livre.




Felizmente para Joaquim o Doutor Samuel logo depois da saída de mana Maria retirou-se também. Não se justificava mais a presença dele, não havia mais conversa que pegasse, tio Laerte propôs que se jogasse bridge, Doutor Samuel não jogava, tio Laerte por delicadeza retirou a proposta, ele compreendeu:

- Eu peço licença para me retirar.

Foi uma despedida fria, remate rápido de um aborrecimento. Joaquim se sentiu aliviado, readquiriu a fala, pediu para a cunhada tocar, desafiou os campeões presentes para um bridge bravo. Estava por ora livre do que ele mais detestava no mundo: uma explicação. E no caso eram duas. Mas a filha estaria dormindo quando ele chegasse em casa e o Dr. Samuel ficaria para o dia seguinte. Com certeza ele o procuraria no Serviço Sanitário. E seria uma conversa desagradável. Paciência. Até lá o homem se acalmaria, se convenceria de que malhava em ferro frio. E quanto à filha, ele a conhecia. Só falaria se provocada. O pai não tocando no assunto, ela também não tocaria.
O licor aumentou o seu bem-estar. Já meia-noite passada tomou o caminho de casa. A pé para fazer um pouco de exercício. Se fosse ver a Zoraide? Não. Sem telefonar primeiro era arriscado.

- Táxi, doutor?

- Não.

Dobrou a esquina. Ninguém. É bom surpreender assim as ruas desertas no silêncio noturno. De dia a atenção se perde no bonde que passa, na casca de banana, no pregão dos vendedores ambulantes, nuns olhos, num palavrão, num anúncio. A gente vê perto e vê baixo. Das casas só tem importância a vitrina das de comércio, o número das de moradia. De noite, tudo muda. Não há perigo de esbarros, de atropelamentos. A vista se alonga desembaraçada. É possível parar, erguer a cabeça, embasbacar, cismar, examinar, não há respeito humano. E a rua: postes, árvores, jardins. fachadas. Os homens dormem: a rua vela. Ele não saberia exprimir (não era literato, graças a Deus) a sensação gostosa que lhe davam essas voltas a pé para casa noite alta. Mas era evidente que se sentia mais forte, mais homem, o único homem. De dia se anulava na multidão, era ninguém. De noite ganhava outro relevo na sua solidão, uma certeza mais grata de sua realidade. Ouvia os próprios passos, via a própria sombra.
Dobrou a esquina. Ninguém. Era como se a rua dissesse: - Pode passar, trânsito livre. Depois na noite vazia, silenciosa, o cheiro dos jardins é mais forte, a feitura das casas mais branda, as calçadas mais largas, as esquinas mais misteriosas. A imaginação tem campo livre. Os homens são prisioneiros das casas, tranca na porta, cadeado no portão. Está reintegrada a rua na posse de si mesma, no gozo de sua liberdade. Tal como é e não como a fazem e sujam os homens, a desfiguram os homens de dia. Deserta a cena, vive o cenário. Através das venezianas no terceiro andar da casa de apartamento se escoa uma luz vermelha. Se ele fosse ver a Zoraide? Quase uma hora. Tarde demais.
Dobrou a esquina. Alguém. Ainda distante, na mesma calçada, cambaleando. Embriagado. Melhor atravessar a rua. Detestava bêbados, tinha pavor de bêbados. O vulto colou-se à árvore. Depois se equilibrou na guia do passeio, pesadamente desceu ao leito da rua. Joaquim resolveu não mudar de calçada. Agora o bêbado olhava o céu. Lua cheia. Tirou a palheta. Era o Platão de Castro. Joaquim apressou o passo.

- Ó Pereirinha!

- Como vai, Platão?

Não parou.

- Espere aí um pouco!

- Não posso. Estou com pressa!

Platão berrou:

- Es-pe-re, seu canalha!

Quis correr, estatelou-se nos paralelepípedos. Joaquim se voltou, teve pena, foi erguer o bêbado.

- Não precisa me ajudar! Eu me levanto sozinho.

Mas Joaquim ajudou. Depois ergueu a palheta.

- Vá dormir, Platão!

- Não. Quero propor uma coisa para você.

- Agora não tenho tempo.

- Fique ai, seu! Está vendo a lua? Responda. Está vendo a lua?

- Estou.

- Não tem pena dela, não? Responda. Segurou o braço de Joaquim.

- Tenho.

- Então vamos latir para ela pensar que é cachorro.

Joaquim puxou o braço, empurrou o bêbado, quase o derrubou, saiu na disparada. Platão gritava:

- Pereirinha, você não é poeta, Peireirinha! Seu animal! Seu bandido! Seu bêbado!

Dobrou a esquina. Três varredeiras da Prefeitura. A poeira subia em caracol, se esborrachava nas arvores, nos postes, nas fachadas. Joaquim tapou com o lenço nariz e boca, furou a nuvem de olhos fechados. A moreninha do 79 suicidou-se três dias antes com lisol. O que ela tinha de mais bonito era o andar. Coisa mais provocante. Imaginem aquela perfeição debaixo da terra apodrecendo. Que horror. De Purezinha então só podiam restar ossos. Para que pensar nessas coisas? Mas pensava sempre, era um sofrimento.
Dobrou a esquina. Ninguém. A magnólia plantada por Purezinha estendia um ramo sobre a calçada. Pensando bem, não há nada como ter uma casa: a casa da gente. Pátria, podem falar o que quiserem, pátria, bobagem. Ele não pegaria em armas para defender a pátria. Mas atacassem a casa dele para ver. Nunca imaginou que pudesse haver porão fedido como o da viúva do médico italiano. Um cheiro de gato, impossível. Empestava a calçada. Atravessou a rua pensando que a noite não estava assim tão quente. E sentiu em toda a sua plenitude essa delícia que é chegar.




Adelaide, portuguesa peituda, cantava lavando o terraço. A cometa do tripeiro soou na esquina, insistiu inutilmente diante do 52 (Adelaide não deu importância), foi soar em outra freguesia.

- Estado! Fanfulla! Fôôôlha!

O caminhão da Antártica passou sacudindo as casas. Cozinheiras iam e voltavam da feira carregando cestas, os chinelos estalavam nas calçadas.

- É a sorte de hoje! É o cavalo com 43!

Adelaide largou escova, balde e pano, correu para dentro de casa.

- Garrafeiro! Garrafa vazia! Garrafeiro!

A viúva de quimono curto veio mostrar as pernas gordas na calçada. A carroça com a mudança pobre rodava devagarzinho. No meio da rua. O italiano de preto tapou o sol com o maço de bilhetes para ver o aeroplano. A sereia da Assistência uivou numa rua próxima.

- É a Paulista com 100 contos! Último inteiro para hoje!

Adelaide desceu depressa a escada de mármore, entregou para o italiano dos bilhetes duzentos réis embrulhados num papelzinho. De sandálias sem meia, acompanhados pela criada vesga, passaram os quatro filhos menores impúberes, uma escadinha, do Doutor Laurindo de Sá. Um mulato de palheta com uma carta na mão, olhava o número das casas. Escorregou na casca de banana, se equilibrou, riu de seu quase tombo, entregou para Adelaide espiando no portão o envelope cor do céu.

- Tem resposta?

- Ele não me disse para esperar é porque não tem. Até logo.

Mana Maria lia no Estado o crime passional que agitara o bairro da Moóca enlutando dois lares húngaros, quando Adelaide lhe entregou a carta. Conheceu logo sem nenhuma surpresa a letra esparramada do Dr. Samuel, a letra das receitas: tome de duas em duas horas diluído em um cálice de água. E de novo a indecisão como acontecera com o livro: lia não lia, lia não lia. Mana Maria disse para si mesma que não era assim. Essa maldita história, é que a estava deixando hesitante. Pensar isso foi o suficiente para deliberar logo abrir o envelope. Sabia o que estava dentro. Mas também podia ser que não fosse o que pensava. Quando menina tinha absoluta certeza da soma que o cofre continha. Contava todos os dias, escondia a chave debaixo do colchão. E todos os dias o abria, contava os níqueis com uma esperançazinha louca de que tivesse mais.
Enchia quatro páginas e dizia assim:
"Senhorinha!
O vosso orgulho ou a vossa mórbida indiferença recusaram a proposta honesta que eu fiz, menos por mim, que sou homem e sei vencer na vida, do que por vós, que sois mulher e tendes necessidade de um amparo outro que não o paterno ou o fraterno. Recusastes e eu, nas vésperas de uma viagem, que tenho a certeza será mais um triunfo na minha carreira, não quero insistir, embora certo de que não refletistes bem sobre a excelsitude do destino que, ao meu lado, como senhora do meu lar cristão, vos esperava! Não vos dirijo esta, pois, para vos desvendar um coração alanceado e pedir-vos misericórdia. Não! Almejo precisamente desiludir-vos sobre o mal que porventura pensais haver-me feito e tirar-vos assim qualquer possibilidade de remorso. Sou moço, sinto-me forte e pertenço a uma raça de bravos que a adversidade não abate e atemoriza. A vossa atitude nenhum golpe representou para mim, que na luta retempero minhas energias de brasileiro digno e profissional honrado. Se vos disserem que sofro, não acrediteis. Posso vos assegurar até, sob palavra de honra, com o pensamento voltado para Aquele que julga todos os nossos atos e intenções mais recônditas, que se pressuroso me mostrei às vezes, foi por instigação de vosso pai, tomado do nobre desejo de vos dar companheiro dedicado e fiel, capaz de vos tornar menos cruel e monótona a existência e concretizar dignamente os vossos sonhos de mulher. Assim não quisestes talvez para felicidade minha!... Não vos preocupeis comigo. E onde quer que me conduzam o meu trabalho, o meu talento, a minha capacidade e a minha estrela, contai, sempre, por maior que seja a vossa precisão, com os meus sentimentos cristãos de solidariedade humana. Vosso respeitoso servo,
Samuel Pinto."
Ficou com a carta na mão avaliando o despeito enorme dele. Sujeitinho besta. Ferido no seu orgulho quis humilhá-la. Coitado. Não sabia com quem se metera. Ela podia ainda guardar uma lembrança de certo modo simpática do desgraçado. Mas depois dessa carta só tinha nojo. Aquilo era uma cusparada de vencido. Ela vira uma vez na calçada de sua casa uma briga de meninos. O que apanhou, deitando sangue pelo nariz, estendido no cimento, quando o outro se afastava, cuspiu-lhe nas costas. Mana Maria fazia questão de guardar aquela cusparada idiota. Foi para o quarto, abriu a secretária, guardou ao lado de outros papéis, contas do colégio de Ana Teresa, recibos de impostos. Depois se debruçou na janela. Seu Manuel jardineiro (um dia por semana ela o tratava para arranjar o jardim) podava devagar uma roseira. Conversando com o entregador mulato da Confeitaria Esmeralda, cesta vazia debaixo do braço.

- Seu Manuel, o senhor não entende nada de mulher!

- Pois sim.

Tinha um ar canalha e chupava um cigarro.

- Não entende não. Acredite no que estou lhe dizendo, Seu Manuel. Não há como mulher do interior!

Seu Manuel sacudia a cabeça. Mana Maria achou que devia sair da janela mas ficou escutando.

- Mulher da capital é besta, quer dinheiro, chama a polícia, Deus me livre!

- Pois aqui onde me vê já tenho papado muitas e nunca tive motivo de queixa.

Envergonhada, uma quentura no rosto, incomodada, ela deixou a janela.

- E porque o senhor não sabe o que é coisa boa. Olhe, seu Manuel: mulher do interior a gente derruba ela, ela cai sempre de jeito, prontinha!

- Explica isso melhor, rapaz. Conta cá como é essa caída assim tão jeitosa.

Então aquele domínio sobre si mesma, mais forte que a sua vontade, que a fazia sempre retroceder na hora de dar o último passo, que a retinha no momento exato da condescendência, da derrota, da fraqueza, o que fosse, arrancou mana Maria da janela, abruptamente. Voltou para o escritório, pegou o jornal, sentou-se. Porém a tragédia passional do bairro da Moóca não a interessava mais. Resolveu ver quem havia morrido. Falecimentos. Correu os nomes, não conhecia nenhum. Deu nela vontade de voltar para o crime dos húngaros, mas foi um instante só. Jogou o jornal no sofá, levantou-se decidida a ir visitar o túmulo da mãe. Numa das reviravoltas comuns de seu espírito. Passar do preto para o branco, limpar-se neste das impurezas daquele. A conversa do jardim a perturbava, a revoltava, talvez prosseguisse entre detalhes canalhas, ia acabar com ela.
Chamou a copeira:

- Diga pra Seu Manuel cortar umas dálias, um molho grande. Mas sem demora, imediatamente!

No quarto, vestindo-se depressa, ouviu a Maria gritar a ordem ao jardineiro, depois os passos do mulato do armazém na direção do portão. E gozou malvadamente a interrupção da conversa indecorosa. Não, não podia admitir essas coisas na sua casa. Essas coisas. Ora que estupidez, mulher do interior, mulato imundo. Não podia precisar a sensação de proibido, de vergonhoso que aquilo lhe dava. Era lixo, isso tinha a certeza de que era, não adiantava esclarecer que espécie de lixo. Era e acabou-se.
Pediu um táxi fechado. Seu Manuel cortava periquitos perto do portão, ela sem olhar mal respondeu ao cumprimento respeitoso dele, fingiu pressa, ainda fora do automóvel deu o endereço para o chofer:

- Consolação.

- Cemitério?

- É.

Dentro do vasto quadrilátero de muros altos, nenhum ar triste e sim frio de limpeza e ordem. Ali cada um se despede do atropelo e da confusão da vida, tem seu lugar na morte. Sobrepostos, lado a lado, apodrecendo jazem. Como a areia das ruas retas, a pedra dos túmulos alveja sob o sol que murcha as flores. Os ciprestes montam guarda, o verde-escuro deles acaba oscilando em ponta, ao vento. Troncos partidos, anjos em prece, cruzes, as sepulturas ricas, as sepulturas bonitas, as sepulturas pobres, as sepulturas feias, bem tratadas, maltratadas, não há igualdade. Os ruídos da rua atravessam o silêncio de arquivo, biblioteca, depósito, silêncio de morte. Os que passam lá fora tiram o chapéu, os que entram pisam de leve, a atitude não é propriamente de respeito mas de cerimônia. Também acanhamento.
Mana Maria ia notando os túmulos novos. Aquele de esfinge deve ser de sírio. Não disse? Família Yasi. A italiana de papoula no chapéu preto parou também, admirou, perguntou:

- É um leão?

Informou de má vontade:

- Não: esfinge.

- Ah sei! Finge de leão. É belo!

Não teve vontade de rir. Nem de sorrir. Prosseguiu de rosto fechado. Quebrou à direita, quebrou à esquerda, estacou. Pôs as flores nos dois vasos de mármore, ajoelhou-se, apoiou os cotovelos na lápide, juntou as mãos, nelas encostou a testa, ficou pensando. Padre Raimundo dizia: A melhor oração é a que o coração improvisa. Ajudada pela enfermeira, ela vestira o corpo magro da mãe ouvindo as marteladas dos homens da empresa funerária na sala de visitas. Não chorara. Não. Quando todos se puseram de joelhos no quarto mal-alumiado e só ela de pé, debruçada sobre o leito, sustinha entre os dedos da que morria a vela acesa da agonia lhe veio a decisão de não chorar. E não chorou. Nem quando o caixão florido se fechou, nem quando ele saiu pela porta do terraço, nem quando o pai voltou (ele sim, chorando) e lhe deu a chave presa numa fita roxa para guardar:

- Minha filha!

- Coragem, papai, vá descansar.

Ela tinha coragem e não precisava de descanso. Ela era a forte, a dominadora, a incorruptível. A que resistia contra tudo, contra todos, contra ela mesma. A serviço do quê? De sua memória, mamãe.
Levantou-se. Era falso. Não: era verdadeiro. Ela substituía a mãe naquela casa, naquela família que Dona Purezínha dirigia sem oposição. Por isso não podia casar. Por isso tinha de ser dura, só pensar na missão a cumprir. Grandes palavras. Sentiu-se ridícula. Ajoelhou-se. "Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo. Amém. Ave Maria, cheia de graça..."
Alguém parou junto dela.

- Ia justamente procurar o senhor. Tem água no regador? Ponha nos vasos.

O homem levou a mão no chapéu, fez o que ela mandou. ".... e na hora da nossa morte, Amém. Em nome do Padre, do Filho, do Espírito Santo. Amém."

- Está satisfeita com o meu serviço? É um túmulo de que não descuido.

- Estou. Eu lhe devo um mês?

- Ia amanhã à sua casa buscar o dinheiro.

- Eu pago já.

O homem agradeceu (quem pagaria para tratarem o túmulo quando ela morresse?), mana Maria foi andando devagar. Olhou o relógio: 11 horas. Na área principal deu com um enterro que chegava. Atrás do caixão um velho caminhava, o lenço nos olhos, amparado por dois moços também chorosos. O padre com o livro de orações protegia a vista contra o sol forte. Pouca gente. O sino da capela tocou. Mana Maria deu 400 réis para a negra velha. Não costumava dar esmolas não. Mas sentiu que ali devia dar. Estava um pouquinho comovida. No enterro dela não viria ninguém. Era capaz até de faltar gente para carregar o caixão. Morreria num hospital. Para não dar trabalho para ninguém. Foi descendo a Rua da Consolação ao longo do muro do cemitério. Na frente dela duas meninas de sandália carregavam uma cesta de lavadeira. Como um caixão. Uma de cada lado segurando na alça. Apressou o passo, na esquina tomou um táxi. Do automóvel ainda viu as meninas que haviam pousado a cesta na calçada, descansavam alegres.






Autor: Alcântara Machado
Produção Visual: Carlos Cunha

















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