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Contos-->UM MÚSICO EXTRAORDINÁRIO / Lima Barreto -- 22/10/2009 - 12:50 (CARLOS CUNHA / o poeta sem limites) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos




















Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites





UM MÚSICO EXTRAORDINÁRIO

( Lima barreto )


Quando andávamos juntos no colégio, Ezequiel era um franzino
menino de quatorze ou quinze anos, triste, retraído, a quem os
folguedos colegiais não atraíam. Não era visto nunca jogando "barra,
carniça, quadrado, peteca", ou qualquer outro jogo dentre aqueles
velhos brinquedos de internato que hoje não se usam mais. O seu
grande prazer era a leitura e, dos livros, os que mais gostava eram os
de Jules Verne. Quando todos nós líamos José de Alencar, Macedo,
Aluísio e, sobretudo, o infame Alfredo Gallis, ele lia a Ilha Misteriosa, o
Heitor Servadac, as Cinco Semanas em um Balão e, com mais afinco, as
Vinte Mil Léguas Submarinas.
Dir-se-ia que a sua alma ansiava por estar só com ela mesma,
mergulhada, como o Capitão Nemo do romance vernesco, no seio do
mais misterioso dos elementos da nossa misteriosa Terra.
Nenhum colega o entendia, mas todos o estimavam, porque era bom,
tímido e generoso. E porque ninguém o entendesse nem as suas
leituras, ele vivia consigo mesmo; e, quando não estudava as lições de
que dava boas contas, lia seu autor predileto.
Quem poderia pôr na cabeça daquelas crianças fúteis pela idade e cheias
de anseios de carne para a puberdade exigente o sonho que o célebre
autor francês instila nos cérebros dos meninos que se apaixonam por
ele, e o bálsamo que os seus livros dão aos delicados que
prematuramente adivinham a injustiça e a brutalidade da vida?
O que faz o encanto da meninice não é que essa idade seja melhor ou
pior que as outras. O que a faz encantadora e boa é que, durante esse
período da existência, nossa capacidade de sonho é maior e mais força
temos em identificar os nossos sonhos com a nossa vida. Penso, hoje,
que o meu colega Ezequiel tinha sempre no bolso um canivete, no
pressuposto de, se viesse a cair em uma ilha deserta, possuir à mão
aquele instrumento indispensável para o imediato arranjo de sua vida; e
aquele meu outro colega Sanches andava sempre com uma nota de dez
tostões, para, no caso de arranjar a "sua" namorada, ter logo em seu
alcance o dinheiro com que lhe comprasse um ramilhete.
Era, porém, falar ao Ezequiel em Heitor Servadac, e logo ele se punha
entusiasmado e contava toda a novela do mestre de Nantes. Quando
acabava, tentava então outra; mas os colegas fugiam um a um,
deixavam-no só com o seu Jules Verne, para irem fumar um cigarro às
escondidas.
Então, ele procurava o mais afastado dos bancos do recreio, e deixavase
ficar lá, só, imaginando, talvez, futuras viagens que havia de fazer,
para repassar as aventuras de Roberto Grant, de Hatteras, de
Passepartout, de Keraban, de Miguel Strogoff, de Cesar Cascavel, de
Philéas Fogg e mesmo daquele curioso doutor Lindenbrock, que entra
pela cratera extinta de Sueffels, na desolada Islândia, e vem à superfície
da Terra, num ascensor de lavas, que o Estrômboli vomita nas terras
risonhas que o Mediterraneo afaga...
Saímos do internato quase ao mesmo tempo e, durante algum, ainda
nos vimos; mas, bem depressa, perdemo-nos de vista.
Passaram-se anos e eu já o havia de todo esquecido, quando, no ano
passado, vim a encontrá-lo em circunstâncias bem singulares.
Foi em um domingo. Tomei um bonde da Jardim, aí, na avenida, para
visitar um amigo e, com ele, jantar em família. Ia ler-me um poema; ele
era engenheiro hidráulico.
Como todo o sujeito que é rico ou se supõe ou quer passar como tal, o
meu amigo morava para as bandas de Botafogo.
Ia satisfeito, pois de há muito não me perdia por aquelas bandas da
cidade e me aborrecia com a monotonia dos meus dias, vendo as
mesmas paisagens e olhando sempre as mesmas fisionomias. Fugiria,
assim, por algumas horas, à fadiga visual de contemplar as montanhas
desnudadas que marginam à Central, da estação inicial até Cascadura.
Morava eu nos subúrbios. Fui visitar, portanto, o meu amigo, naquele
Botafogo catita, Meca das ambições dos nortistas, dos sulistas e dos...
cariocas.
Sentei-me nos primeiros bancos; e já havia passado o Lírico e
entrávamos na Rua Treze de Maio quando, no banco atrás do meu, se
levantou uma altercação com o condutor, uma dessas vulgares
altercações comuns nos nossos bondes.

- Ora, veja lá com quem fala! dizia um.

- Faça o favor de pagar a sua passagem, retorquia o recebedor.

- Tome cuidado, acudiu o outro. Olhe que não trata com nenhum
cafajeste! Veja lá!

- Pague a passagem, senão o carro não segue.

E como eu me virasse por esse tempo a ver melhor tão patusco caso,
dei com a fisionomia do disputador que me pareceu vagamente minha
conhecida. Não tive de fazer esforços de memória. Como uma ducha, ele
me interpelou desta forma:

- Vejas tu só, Mascarenhas, como são as cousas! Eu, um artista, uma
celebridade, cujos serviços a este país são inestimáveis, vejo-me agora
maltratado por esse brutamonte que exige de mim, desaforadamente, a
paga de uma quantia ínfima, como se eu fosse da laia dos que pagam.
Àquela voz, de súbito, pois ainda não sabia bem quem me falava,
reconheci o homem: era o Ezequiel Beiriz. Paguei-lhe a passagem, pois,
não sendo celebridade, nem artista, podia perfeitamente e sem
desdouro pagar quantias ínfimas; o veículo seguiu pacatamente o seu
caminho, levando o meu espanto e a minha admiração pela
transformação que se havia dado no temperamento do meu antigo
colega de colégio. Pois era aquele parlapatão, o tímido Ezequiel?
Pois aquele presunçoso que não era da laia dos que pagam era o
cismático Ezequiel do colégio, sempre a sonhar viagens maravilhosas, à
Jules Verne? Que teria havido nele? Ele me pareceu inteiramente são, no
momento e para sempre.

Travamos conversa e mesmo a procurei, para decifrar tão interessante
enigma.

- Que diabo, Beiriz! Onde tens andado? Creio que há bem quinze anos
que não nos vemos- não é? Onde andaste?

- Ora! Por esse mundo de Cristo. A última vez que nos encontramos...

Quando foi mesmo?

- Quando eu ia embarcar para o interior do Estado do Rio, visitar a
família.

- E verdade! Tens boa memória... Despedimo-nos no Largo do Paço...
Ias para Muruí- não é isso?

- Exatamente.

- Eu, logo em seguida, parti para o Recife a estudar direito.

- Estiveste lá este tempo todo?

- Não. Voltei para aqui, logo de dous anos passados lá.

- Por quê?

- Aborrecia-me aquela "chorumela" de direito... Aquela vida solta de
estudantes de província não me agradava... São vaidosos... A sociedade
lhes dá muita importância, daí...

- Mas, que tinhas com isso? Fazias vida à parte...

- Qual! Não era bem isso o que eu sentia... Estava era aborrecidíssimo
com a natureza daqueles estudos... Queria outros.. .

- E tentaste?

- Tentar! Eu não tento; eu os faço... Voltei para o Rio a fim de estudar
pintura.

- Como não tentas, naturalmente...

- Não acabei. Enfadou-me logo tudo aquilo da Escola de Belas-Artes.

- Por quê?

- Ora! Deram-me uns bonecos de gesso para copiar...
Já viste que tolice? Copiar bonecos e pedaços de bonecos... Eu queria a
cousa viva, a vida palpitante...

- E preciso ir às fontes, começar pelo começo, disse eu
sentenciosamente.

- Qual! Isto é para toda gente... Eu vou de um salto; se erro, sou como
o tigre diante do caçador- estou morto!

- De forma que...

- Foi o que me aconteceu com a pintura. Por causa dos tais bonecos,
errei o salto e a abandonei. Fiz-me repórter, jornalista, dramaturgo, o
diabo! Mas, em nenhuma dessas profissões dei-me bem... Todas elas
me desgostavam... Nunca estava contente com o que fazia... Pensei, de
mim para mim, que nenhuma delas era a da minha vocação e a do meu
amor; e, como sou honesto intelectualmente, não tive nenhuma dor de
coração em largá-las e ficar à-toa, vivendo ao deus-dará.

- Isto durante muito tempo?

- Algum. Conto-te o resto. Já me dispunha a experimentar o
funcionalismo, quando, certo dia, descendo as escadas de uma
secretaria, onde fui levar um pistolão, encontrei um parente afastado
que as subia. Deu-me ele a notícia da morte do meu tio rico que me
pagava colégio e, durante alguns anos, me dera pensão; mas,
ultimamente, a tinha suspendido, devido, dizia ele, a eu não esquentar
lugar, isto é, andar de escola em escola, de profissão em profissão.

- Era solteiro esse seu tio?

- Era, e, como já não tivesse mais pai (ele era irmão de meu pai),
ficava sendo o seu único herdeiro, pois morreu sem testamento. Devido
a isso e mais ulteriores ajustes com a Justiça, fiquei possuidor de cerca
de duas centenas e meia de contos.

- Um nababo! Hein?

- De algum modo. Mas escuta. filho! Possuidor dessa fortuna, largueime
para a Europa a viajar. Antes- é preciso que saibas- fundei aqui uma
revista literária e artística - Vilhara- em que apresentei as minhas idéias
budistas sobre a arte, apesar do que nela publiquei as cousas mais
escatotógicas possíveis, poemetos ao suicídio, poemas em prosa à
Venus Genitrix, junto com sonetos, cantos, glosas de cousas de livros de
missa de meninas do colégio de Sion.

- Tudo isto de tua pena?

- Não. A minha teoria era uma e a da revista outra, mas publicava as
cousas mais antagônicas a ela, porque eram dos amigos.

- Durou muito a tua revista?

- Seis números e custaram-me muito, pois até tricromias publiquei e
hás de adivinhar que foram de quadros contrários ao meu ideal búdico.
Imagina tu que até estampei uma reprodução dos "Horácios", do idiota
do David!

- Foi para encher, certamente?

- Qual! A minha orientação nunca dominou a publicação... Bem! Vamos
adiante. Embarquei quase como fugido deste país em que a estética
transcendente da renúncia, do aniquilamento do desejo era tão
singularmente traduzida em versos fesceninos e escatológicos e em
quadros apologéticos da força da guerra. Fui-me embora!

- Para onde?

- Pretendia ficar em Lisboa, mas, em caminho, sobreveio uma
tempestade;. e deu-me vontade, durante ela, de ir ao piano. Esperava
que saísse o "bitu"; mas, qual não foi o meu espanto, quando de sob os
meus dedos surgiu e ecoou todo o tremendo fenômeno meteorológico,
toda a sua música terrível... Ah! Como me senti satisfeito! Tinha
encontrado a minha vocação... Eu era músico! Poderia transportar,
registrar no papel e reproduzi-los artisticamente, com os instrumentos
adequados, todos os sons, até ali intraduzíveis pela arte, da Natureza. O
bramido das grandes cachoeiras, o marulho soluçante das vagas, o
ganido dos grandes ventos, o roncar divino do trovão, estalido do raio -
todos esses ruídos, todos esses sons não seriam perdidos para a Arte; e,
através do meu cérebro, seriam postos em música, idealizados
transcendentalmente, a fim de mais fortemente, mais intimamente
prender o homem à Natureza, sempre boa e sempre fecunda, vária e
ondeante; mas...

- Tu sabias música?

- Não. Mas, continuei a viagem até Hamburgo, em cujo conservatória
me matriculei. Não me dei bem nele, passei para o de Dresde, onde
também não me dei bem. Procurei o de Munique, que não me agradou.
Freqüentei o de Paris, o de Milão...

- De modo que deves estar muito profundo em música?
Calou-se meu amigo um pouco e logo respondeu:

- Não. Nada sei, porque não encontrei um conservatório que prestasse.
Logo que o encontre, fica certo que serei um músico extraordinário.
Adeus, vou saltar. Adeus! Estimei ver-te.
Saltou e tomou por uma rua transversal que não me pareceu ser a da
sua residência.






Autor: Lima Barreto
Produção Visual: Carlos Cunha
















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