O pequeno barco, alugado a preço módico, progredia lentamente nas águas calmas do tépido mar que mais parecia uma lagoa. Eu decidira pescar de novo e só aquele marujo velho conhecido do cais é que tinha os melhores anzóis e as melhores informações de onde estavam os cardumes. Eu viera com meu amigo, camarada de muitos anos e beberrão que nem ele só. Para se ter uma idéia, já virara uma garrafa de gin com tônica, que era sua bebida predileta. O horizonte compunha um poema rosado, feito de nuvens afiladas, de formas diversas e raras franjeadas pelo sol que do outro lado do mundo já dava suas caras, mesmo àquela hora da manhã.
--O Rei já vem raiando, melhor nos apressarmos para pegar os maiores do cardume.
--Mas como assim?
--É que os maiores gostam de comer os menores e a esta altura, já devem estar se preparando para vir à superfície. Daí, se tornam mais fáceis de se pescar.
Ele dizia isto com a tranqüilidade de quem conhece o que fala, calejado pelas intempéries, mãos grossas de tanta corda e tanto timão. O barco cheirava a peixe, talvez as iscas, talvez o sabor do mar que batia no casco e levantava uma névoa branca que às vezes parecia um spray gelado. Àquela hora da manhã, era como uma ducha.
--Caramba, a última coisa que eu queria agora era tomar um banho de água salgada! Com mil rabos de peixe!
--Não reclame, pelo menos você acorda e quem sabe pára de beber tanto. E veja se não vai vomitar aqui!
--Já me viu vomitando?
--Mais de uma vez.
--Pois não vai me ver de novo.
E tentava encaixar a boca da garrafa em seus lábios grossos, mas o balançar do barco que agora andava em maior velocidade o impedia de engolir a bebida que agora era uma garrafa de uísque.
--Como você resiste a isto?
--Não sei, sei que quando estou no mar preciso disto para me convencer de que estou vivo!
--Mas você está vivo!
--Eu acho. Você, camarada, o que acha?
--Eu acho que lá na frente ( apontando com o queixo de barba rala por fazer alguma região escura no mar logo adiante) vamos encontrar um dos grandes.
Meu amigo tentou firmar a vista o que obviamente se tornara impossível, dadas as circunstâncias. Eu de minha parte comecei a preparar as iscas e comecei a colocar nos anzóis que o barqueiro havia arranjado. Juán era seu nome, pele ressequida, moradia humilde, de pouco falar mas excelente pessoa.
--Assim está bom, Juán?
--Tem de por mais para dentro. Do jeito que está, de uma bocada só vai tudo por água abaixo!
--Rá rá rá. Tem bom senso de humor nosso guia! Pois sim, vai mesmo, tudo por água abaixo ( e fez menção de vomitar ).
--Por favor, aqui não. Se quiser, vá ao banheiro. Não me venha empestear o barco agora, aqui, mar profundo! Fora que os peixes certamente vão fugir esbaforidos com seus ruídos horrorosos!
O barqueiro Juán diminuiu a velocidade. Aproximava-se com cautela de uma espécie de mancha azulada, dir-se-ia uma cor que mudava, como se fora uma bandeira ou talvez um jato de tinta azul-escuro que se dissolvesse e logo se agrupasse do outro lado. Ele desligou o motor e eu preparei as varas, já com as iscas devidamente colocadas. Meu amigo parou de beber e de maneira frenética, passou a preparar as suas varas; três eram minhas, duas eram dele. Eram de sua estimação, segundo ele elas lhe davam sorte de modo que não quis pegar as varas oferecidas por Juán que com um sorriso maroto deu a entender que daquelas varas ele não esperava muito. Uma delas tinha um cabo de madrepérola, extremamente bela e meu amigo dizia que fora com aquela que ele conseguira pescar um peixe enorme num rio do Pantanal. Bom, guardadas as devidas proporções, ali não era um pântano, mas ele se preocupou de colocar mais linha na carretilha e sorrindo mais do que o costume, agora jogara a isca bem ao longe, um zumbido que cortou os ares da silenciosa manhã em mar aberto.
--Agora é que vamos ver quem tem a melhor vara aqui, ou quem pesca melhor.
Juán deu um sorriso olhando de soslaio o meu amigo beberrão. Ele também olhou de esguelha e fez sinal com a cabeça que era para ele olhar em frente; meu amigo era meio complicado quando bebia demais, sempre arranjava confusão. Juán não se deu por vencido, sustentou o olhar, mas os três de repente pararam para ver o espetáculo, gaivotas mergulhando direto no mar para tentarem abocanhar uma ou outra presa. Sinal de que realmente ali se escondia um tesouro. O barqueiro desligou o motor e mergulhou a âncora, de modo que ao silêncio do motor se sobrepunha agora o canto das gaivotas e o pequeno marulhar da água no casco do barco. O barqueiro sumiu para dentro, talvez para dar um tempo a meu amigo ou para se aliviar. O sol surgia no horizonte agora e tingia a proa do barco de vermelho. Olhei para o lado da terra, era uma pequena mancha branca bem longe de onde estávamos, afinal haviam sido uma três horas de lenta viagem até ali.
--Sabe? Se eu morresse hoje, não me importaria, só de ver o que estamos vendo agora já valeria a viagem.
--Não brinque com isto. Estamos em mar aberto e o mar pode mudar de repente.
--Mas eu juro que voltaria para puxar as cobertas de Neide. Nossa, que mulher assanhada. Foi um dinheiro bem gasto.
--Você me falou que havia sido, mas nunca imaginei que fosse tanto!
--É uma destas morenas que...
O puxão foi tão forte que quase arrancou a vara de sua mão; não é que tinha sorte meu amigo? Justo para ele era a primeira fisgada. Sustentou a puxada e gritava feito louco, enquanto puxava a linha na carretilha velha de guerra. Arqueava-se a vara, quase quebrando. Peixe do mar é mais forte, pensava eu, do que peixe de pântano. Nem um nem outro se rendia, ele dava uma folga, puxava um pouco, lá vinha outra puxada, o peixe havia sido fisgado. Juán dera as caras na popa e admirado observava meu amigo em sua luta contra o peixe que se avizinhava e pela vista era uma garoupa de seus trinta quilos.
--Mas Neide é uma dessas morenas que deixa um homem aflito com aquelas ancas; difícil é pescar uma destas. Sabe-se lá!
--Vai perder o peixe falando assim.
--Pesco melhor bêbado. Você sabe disto.
--Estou vendo! Na minha vara, nem uma fisgada; na sua, já tem um destes grandões!
--E não é que é mesmo, seu moço? Olha lá, o bichão está se cansando.
--É isso mesmo, barqueiro. Essas varas têm história, têm presença; são de meu pai e sempre me ajudaram a pegar estes bichos maravilhosos. Hoje vamos ter peixe para jantar!
Pegou a garrafa e deu um gole enorme. Pelo visto, já estava ficando sóbrio. Subitamente, morderam minha isca e eu comecei a dar vigorosas puxadas e ao olhar para cima, vi o céu salpicado de nuvens róseas.
--Amanhã não saio não. O tempo vira depressa aqui, amanhã vou limpar o barco.
--Por quê, Juán?
--Aquelas nuvens ali, são nuvens que trazem ar frio. O ar frio traz a tempestade, com certeza. Dia de ficar assim parado, esperando a borrasca passar ou a vendo ir ao largo. Não arrisco não; tem gente que gosta de enfrentar, eu conheço este mar daqui, são vagalhões que engolem barcos facilmente.
--Não agoura não, barqueiro! Não agoura que este aqui (e puxava a vara com a certeza da vitória) vai parar na mesa de nossa sala lá na cidade. Você está convidado, você merece.
A tensão entre os dois amainara e o barqueiro pitava um cachimbo agora, enchendo o ar com um cheiro espesso, talvez de um fumo de baixa qualidade. Ele olhava o horizonte, vigiando os sinais e nossas varas. Ao tentar puxar o fio com a mão, numa sacudidela violenta o peixe puxou rapidamente e cortou parte dela.
--Filho da puta! Quer me arrancar as mãos, é?
Ele deu um solavanco e o peixe voltou a responder. A luta ainda iria durar um tempo regada a uísque, palavrões, fumo de cachimbo e cantos de gaivotas que mergulhavam sem cessar no cardume. Uma ou outra saía do mar com o bico ornado de prata, o peixe ainda se debatendo ao fugir do alcance de seus semelhantes. Era a lei da vida, muitos se salvavam, alguns eram sacrificados e dois dos maiores eram puxados para o barco. Vimos ao longe alguns golfinhos que também faziam seu festim, cercando partes do cardume e caçando peixes um pouco maiores.
--Que espetáculo, essa vou guardar em minha memória.
Juán satisfeito dava seus palpites, afinal ele era o barqueiro, era ele que ia receber os peixes. Preparou um arpão para que quando chegassem perto, fosse dado o golpe de misericórdia e assim foi, quando a garoupa de meu amigo foi içada a bordo.
--Deve pesar seus quarenta quilos!
--Parabéns, camarada. A minha você vê, é bem menor.
--Você devia era beber como eu. Aí pegava peixe grande!
As gaivotas andavam perto, bem perto, como se soubessem que podia sobrar alguma coisa para elas e tinham razão; Juán limpava os peixes com maestria, jogando as sobras nas águas e o bater de asas se tornava absurdo e alto, uma algaravia de trinados e ritmos embaralhados em asas luminosas e olhos astutos. Não escapava nada, o mar nem via os restos e o cardume se afastava. Talvez o cheiro de sangue dos companheiros, talvez o barulho das aves ou o motor que era ligado os impressionasse, o fato é que os peixes devidamente limpos, já colocados no gelo com sal nos faziam rir à beça. Decidi aceitar uns goles e fiquei alegre com as piadas de meu amigo de longa data e das descrições minuciosas que fazia das amigas que conquistara ao longo da costa, alguns anos atrás, quando largara tudo para se tornar um boêmio errante.
--O negócio é o seguinte, já levei a vida muito a sério; nesta altura, meu melhor amigo é você e eu me dou muito bem comigo mesmo. Bebo sim, mas não vá me dizer que já me viu caído em alguma esquina, de borco, sendo lambido por cachorros.
--Não, de jeito nenhum.
--Devia aprender a beber mais. Dignifica o homem!
Beber dignifica o homem. Desta, até Juán sorriu, e empertigado, olhou para trás para dar uma última mirada no cardume que se afastara. Notou as nuvens que se formavam no céu. Naquele andor, na calmaria que se formava, ele calculou que pela manhã o tempo havia de virar. Ele preferia ficar em casa, quiçá costurando as redes, talvez passando piche no casco ( sempre havia um vazamento) porque conhecia mais de uma história de companheiros seus que haviam sumido no breu sem nunca mais terem sido encontrados, tudo porque desafiaram a força dos ventos por uma boa pescaria. Ele que não era bobo, se já vivera até ali, haveria de viver mais um pouco se soubesse evitar as armadilhas que carrega o mar profundo que ele respeitava como fosse um sombrio senhor, prenhe de alimento e de barcos sem donos.
Beber dignifica o homem! Essa ele contaria em casa, dizendo aos seus filhos que haveriam de perguntar:
--Mas, pai, beber o quê?
--Da água que passarinho não bebe!