Antes de morrer Ana tinha vinte anos e um medo enorme de si mesma. Não podia dizer não. Aos quinze anos foi violada com sua autorização por um homem bem mais velho que se ofereceu para levá-la para casa em seu carro quando a encontrou na rua à noite, saindo da escola e indo sozinha para o ponto de ônibus. No caminho parou diante de um motel e disse que deveriam entrar um pouco para conversarem e tomarem uma bebida, jurou que não passaria disso e que tudo o que fazia era porque estava emocionado com o brilho triste de seu olhar. Ela não acreditou e sabia que seria violada. Chegou em casa pela madrugada com dois tipos de dor, a mais profunda não se curou nunca.
Evitava às vezes sair de casa porque sabia que alguma coisa iria acontecer, e sempre acontecia. Não contava a ninguém que tudo que fazia era sem querer, nem a melhor amiga sabia que, depois de ir com um homem, jovem ou velho, solteiro ou casado, preto ou branco para um motel ou um terreno baldio, voltava para casa de ônibus ou trazida pelo eventual amante no carro ou na moto, entrava no quarto e trancava a porta, deitava-se na cama sentindo frustração, arrependimento, tristeza e um profundo nojo de si mesma.
No bar onde conheceu Júlio, todos os estudantes costumavam parar, esporadicamente para comprar chicletes e chocolates ou todas as noites depois das aulas para tomar cerveja e, entre risos e gargalhadas, falar mal dos professores. Às vezes até mesmo um ou outro professor mais liberal vinha ao bar e entrava na animada conversa dos alunos. Nesse dia ele não fazia parte do assunto, ou até fazia, mas não com tanto veneno.
Julio entrou no bar para comprar cigarros e, porque viu Ana ficou. Ela sorria. E se tinha alguma coisa que sabia fazer era sorrir. Sorria para parecer o que não era, sorria para esconder o que não queria ser, sorria para não falar o que sua alma gritava, sorria para esconder de si mesma seus pensamentos, seus sentimentos, sua incapacidade.
Ana não percebeu Júlio e não sentiu medo, aquele bar era sua segurança, cercada de colegas de classe e eventualmente com um ou outro professor sentia-se protegida, não receberia propostas porque estava em turma, sairia com a turma e voltaria para casa sem o peso. Mas Júlio não conhecia essa dor e se aproximou num momento que conseguiu furar a conversa de grupo, conseguiu atravessar a barreira dos sorrisos comuns e dizer um chiste, brincar uma palavra, brilhar um olhar e, quando percebeu, Ana estava perdida. Mas ele não sabia e ela jamais lhe diria, como jamais diria a ninguém. Disse sim e saíram quarenta minutos depois. O carro de Júlio era novo, cheirava a fábrica ainda, Ana elogiou sem interesse, para dizer alguma coisa, perguntou sobre o trabalho, respondeu sobre a escola e se deitou sobre os lençóis do motel que já tinha conhecido mais de uma vez a sua humilhação.
Julio não desapareceu como devia, ficou na saída da escola, ficou na porta da casa e até entrou um dia e conversou sobre eletricidade, fio terra, positivo, negativo, curto circuito com o pai de Ana. Júlio trouxe presente no aniversário da mãe de Ana, deu um chocolate recheado bem grande para a irmãzinha de Ana e levou Ana para sua própria casa onde sorriu muito para mostrar que era seu lar e que sua mãe era uma cozinheira pouco criativa mas muito especial. Exibiu o som, os discos mais raros e os mais modernos, os livros de aventuras e o quarto arrumadinho, com tapete do lado da cama e uma parede onde ele dizia vê-la em suas noites de saudade. Ana sorria e dizia sim. Júlio estava apaixonado.
Começou a voltar para casa sem culpa, mesmo quando voltava do motel sentia-se bem, não tinha mais nojo de si mesma porque estivera com o namorado e isso não era pecado. Chegou a ter ilusão de que agora estava salva, livre para sempre da dor. Era uma mulher comum, tinha um namorado e saía com ele e só com ele. Júlio falou casamento e Ana disse sim. Viu uma prisão onde estaria livre das perguntas, dos convites. Uma mulher casada, respeitada, teria até filhos. Havia uma luz no caminho da sua vida, existia um futuro possível sem lágrimas escondidas no travesseiro, sem sorriso-muralha escondendo desespero.
Era feliz, mas precisou ir ao médico e ficou demasiado tempo na sala de espera. Lá estava um loiro alto que convidou. Disse sim e voltou pra casa sofrendo mais, chorou tanto que teve que inventar uma dor de cabeça. Depois pensou que talvez ninguém ficasse sabendo e então estaria bem, poderia continuar a ser feliz, mas sabia que não, não estava a salvo do pavor. Foi depois na loja onde aquele homem sorridente que estava comprando um velocípede para o filho a levou, tinha no porta-malas o mais infeliz velocípede do mundo e levou até perto de casa uma Ana com uma pedra de chumbo no peito. Quanto peso!
Queria terminar o namoro que não era salvação. Dizer que não podia casar porque sabia que não havia a prisão que pensou, ficou triste e sorriu mais, brincou e até levou uma saia florida de presente para a mãe de Júlio, sua inocente futura sogra que não sabia do menino que encontrou no ônibus e que a levou até uma escadaria de um edifício em construção, nem do carteiro que carregava na mala das cartas uma revistinha pornô e que conhecia um terreno baldio onde tinha um sofá ainda bastante confortável. Nem desconfiava do marido da mulher do fim da rua, que tinha um carro barulhento e de medo de ser descoberto só ia a motéis muito escondidos, em lugares que ela não conseguia encontrar depois, quando passeava de carro com Júlio.
Júlio quis marcar a data do casamento, a futura sogra preparou um jantar especial, os pais de Ana ouviram sorrindo quando Júlio propôs o dia e justificou a escolha fazendo as contas do feriado e dos dias a mais que podia pegar de férias para a viagem de lua-de-mel. Perguntou se ela concordava e Ana disse sim. Queria pedir socorro, queria sair correndo ou desaparecer num passe de mágica, então sorriu muito e até aceitou um copo bem cheio daquele vinho doce que subia logo e deixava o corpo tão leve que parecia flutuar.
Mais tarde, no motel, Júlio falou dos filhos, seriam três, duas meninas e um menino. O nome da menina poderia ser Débora, se ela concordasse, ou outro qualquer, desde que não seja nome de travesti, mas um dos meninos teria por força que se chamar Vítor, disso ele não abria mão. Sempre, sempre, desde quando estava na sexta série e viu o filho de sua professora de geografia que já tinha uns vinte anos e estava fazendo faculdade de arquitetura, que tinha o olhar decidido de quem sabe muito bem o caminho que vai seguir e está certo do sucesso, desejou que seu filho, quando tivesse um, também mostrasse essa força e desse a ele, pai, e à mulher que seria sua esposa o orgulho que via na voz molhada da professora de geografia. O nome do rapaz era Vítor e esse passou a ser o nome do seu filho. Era tão certo que era quase como se ele já existisse. Ana concordou quando perguntada. Sim, Vítor é um belo nome.
Ainda faltavam três anos para o Vítor nascer quando Ana precisou ir até o clube levar o cheque para pagar pela festa do casamento. Entrou lá e caminhou devagar até a secretaria do clube lembrando o dia, não muito tempo atrás, que havia entrado por esse mesmo portão, seguido por esse mesmo caminho e chegado até essa mesma secretaria com um recorte de jornal na mão procurando um emprego. Será que a menina morena e baixinha da secretaria se lembraria dela?
No guichê havia um rapaz muito alto, negro e vestido com um moletom de ginasta, estava com uma carteirinha e um cheque na mão, provavelmente pagando a mensalidade do clube. Olhou para Ana e sorriu, ela respondeu o sorriso e baixou os olhos procurando na bolsa os papéis e o cheque, esperou ser atendida e fez o pagamento. Quando voltava pelo mesmo caminho viu que o rapaz a esperava sentado em um tronco de árvore caído, na beira da estradinha que ia da secretaria ao portão do clube, levantou-se quando ela estava mais perto e começou a conversar com a naturalidade das pessoas para as quais timidez é apenas uma palavra. Avisou que estava com o carro logo ali e podia levá-la até em casa. A casa era um motel recém inaugurado que tinha a novidade de ter o quarto todo forrado de espelhos, inclusive no teto, e uma carta de bebidas com drinks sem álcool e batizados com nomes maliciosos. Pediu um "sexo seguro" e fez com Ana um sexo de malabarista, embalado por uma alegria infantil e eterna. Saiu do motel contando histórias de família e de crianças que praticavam esporte como meio de se distanciar das drogas e do peso da vida nas ruas. Parou o carro onde Ana pediu que parasse e começou a ensaiar um convite para que se vissem novamente quando virou a cabeça para o lado porque ouviu uma batida no vidro da sua janela.
Ana viu o rosto transtornado de Júlio antes de ouvir o disparo e sentiu um golpe forte no peito antes de ver a cabeça do rapaz tombar sobre o volante e antes de ouvir o segundo disparo. Sentiu uma dor profunda no peito, mas estava tão habituada a senti-la que não percebeu que morria até que fosse tarde demais.