Se conheci ele? Olha moça, conheci sim, conheci bem até demais, fui criada com ele.
Quer que eu conte? Tem muito que dizer não moça, sei que ele nasceu lá na roça. Pai tinha não, era filho de uma mulherzinha solteira mas tão quietinha! Tinha parente vivo não moça. A mulherzinha chegou e já estava de barriga, por Deus do céu moça, lembro como se fosse hoje, assim como se tivesse vendo ela agora bem aqui na minha frente, e olha que eu era bem pequenininha, tinha lá uns seis, sete anos, não mais, mas ela me impressionou, moça. Era tão magrinha, tão pequena, com aquela barrigona toda. Mas, coitada, morreu. Só deu tempo de ele nascer, morreu. Tava tísica, pobrezinha. Eu lembro do enterro que fizeram pra ela, a velha que morava junto com ela tinha dinheiro não, nem sei como é que elas comiam, viviam num barraco preto que de tão pequeno parecia até privada.
Sei quem pagou não, moça. Sei que fizeram o enterro, um caixãozinho feio, pobrezinho de dar dó, nem coberto de pano ele era, era pintado de preto mesmo, pintado lá com piche, talvez. Talvez nem fosse não, mas foi isso que eu pensei quando vi. E o tamanho, moça? Um caixãozinho desse tamaninho, parecia até caixão de anjinho. E ela foi enterrada lá no cemitério do alto do morro. Teve laje não. Fecharam com terra, botaram umas florzinhas em cima e acabou.
E ele? Tinha quem cuidava não, era danado de bonito. Sei como não, moça, até hoje não entendo isso, mas era gordinho, forte, rosadinho. Eu não lembro direito da cara dele não, mas lembro de escutar o que todo mundo falava. Tão gordinho e forte, nem parece ter saído da barriga daquela mulherzinha tão pequena.
Todo mundo olhava, todo mundo achava bonito, mas cuidar que é bom, ninguém queria não. Também, moça, não era falta de vontade, tinha gente que se pudesse até que ficava, mas cadê jeito? Podia não, todo mundo lutando com a vida e já com um monte de filho pra cuidar, quem tinha menos, tinha cinco, quem tinha mais, tinha treze. Até parece perseguição, moça, mas era treze mesmo, ninguém ficava com mais, se tinha quatorze, um morria, tinha é que ser treze.
Bom, daí minha mãe ficou com ele, era das que tinha menos, tinha só cinco, ficou com seis. E ela pelo menos sabia que não ia ter mais. As outras não, todas que tinham cinco, estavam é no caminho pra chegar nos treze. Minha mãe, por causa daquela doença que até hoje não sei bem o que foi não; sei que operou, teve de ser levada pra cidade, depois sabia: filho tinha mais não. Pegou o moleque e lá vai cuidar dele.
No começo era bom, novidade, coitadinho, todo mundo tinha dó. Depois o dó sisqueceu e a gente tinha raiva, raiva de ter que cuidar de filho que não era nosso, minha mãe dizia assim, eu ficava com raiva também, tinha de trabalhar bem mais pra minha mãe poder cuidar dele. Lembro que quando ela me dava ele no colo pra eu segurar e ele destampava o bueiro e não queria parar, eu beliscava ele, daí ele chorava mais e eu beliscava com mais força, deixava marca no corpinho dele, e quando minha mãe via, eu fazia que não sabia de nada.
Mas ele foi crescendo. Bem cuidado posso dizer que foi não, moça. Não era filho, tinha de trabalhar mais ainda pra poder comer. Logo cedo foi pra roça c’os mais velhos, roupa ninguém comprava pra ele não, usava as dos meninos quando ficavam pequenas pra eles.
Trabalhava muito, mas mesmo assim sempre arranjava um tempinho pra brincar. Moça, sei como é que ele conseguia não. Todo mundo era calado, ninguém não tinha vontade de brincar. A gente tudo, até de falar tinha preguiça, ninguém tinha tempo disso não, era muito trabalho pra se cuidar com coisa à toa.
Mas ele não, moça. Falava até não poder mais, e tinha o diabo no corpo, cansava não. Trabalhava, e muito, mas cansar, cansava não. Ainda subia nas árvores, caçava passarinho e sorriso na boca dele era mais que mato, chegava a irritar a gente de tanto que ria. Qualquer coisinha era motivo pra ele destramelar a risadeira, ria a mais não poder, sei de que tanto se ria não.
E o danado era inteligente, moça. De tudo que achava tirava proveito. Fazia carrinho, trenzinho, revólver, tudo de pau, de carretel de linha, de lata velha, de tudo que é lixo que aparecia. Ninguém ensinava ele não, achava sozinho pra quê que servia as coisa. Eu lembro que muita vez, ele pegava duas ou três tranqueiras, assim que nem... um pedaço de pau de cabo de enxada, uma fivela de arreio e um cabo de faca de picar fumo. Pegava aquelas coisas e ficava com elas na mão um montão de tempo, estudando. Virava daqui, virava dali, limpava, lavava esfregava e de repente saía correndo com aquelas coisas e voltava depois com um brinquedo novo. Sei como fazia não, sei que fazia porque a gente via depois no brinquedo onde estava o cabo de faca , o pedaço de pau, a fivela do arreio.
Mas ele era danado de ciumento, desde pequeninho s’escondia pra fazer os brinquedo dele, ensinar não ensinava pra ninguém e se via alguém com um brinquedo dele virava fera, podia apanhar, mas batia, e se insistiam em tomar, na primeira oportunidade ele estragava tudo e nunca mais que fazia, a troco de nada.
Quando chegou na hora dele ir pra escolinha da Dona Bem Aventurada foi. Todo mundo não gostava da escola, ia por obrigação, ele não, chorava pra ir lá e queria aprender, pegou uma danada de uma mania de escrever que até dava raiva, escrevia em tudo que é lugar. No dia que mataram um porco ele pegou uma faca e escreveu o nome dele na pele do porco, ficou bonito, aqueles riscos vermelhos na pele raspada, branquinha.
Dona Bem Aventurada se tomou de xodó pelo moleque. Na escola, na hora que dava aula parecia que tava falando só com ele, os outros podiam até dormir que ela não ligava não, só tinha ele de aluno. Os outros até que gostavam, podiam ficar olhando pela janela o sol queimando lá fora e o céu azulzinho, azulzinho. Podiam ver o poço onde a nêga Rosa tirava água e um pedaço da roça de café do Seu Malaquias, era gostoso ver pela janela e pela porta aberta as galinhas ciscando lá fora e o dia se indo embora.
Outros dormiam, o cansaço é que mandava, e tinha gente que fechava mesmo os olhos.
Ele não, moça. Não olhava janela, não olhava porta, nem piscava os olhos. Cansaço se tinha não mostrava, só era escrever, ler lição em voz alta, fazer conta difícil. E Dona Bem Aventurada babava, gostava que gostava.
Palmatória? puxão de orelha? beliscão? tudo esquecido, tudo esquecido por causa dele. Foi tanto o chamego que quando foi embora, Dona Bem Aventurada levou ele.
Veio lá em casa pedir ele pra minha mãe, foi um alívio pra ela, deu ele e tudo que ele tinha, quase nada não moça. Deu só pra encher uma sacolinha velha mas se foi. Foi lá pra cidade que Dona Bem Aventurada levou ele, daí nós não soubemos dele um tempão.
Minha mãe morreu, eu casei e mudei, tive filhos e nem me lembrava mais dele, agora que a senhora veio reviver tudo.
Taí, moça. Eu disse que não tinha muito que contar não, sei nem pra onde direito que ela levou ele, sei só que levou e ele foi tudo feliz, contente da vida, dando pulinho de alegria. Quantos ano que ele tinha? sei direitinho não, devia de ser uns dez, onze, por aí.
Sei mais nada não, moça. Não tem de quê. A senhora não aceita um cafezinho coado ind’agorinha?