O ferro é uma arma e vai matando. Mata os germes das roupas que recolheu há pouco do varal, mata as rugas do tecido e as roupas ficam mais bonitas, mais perfumadas; até parecem mais limpas. Mata o tempo... e mata a si mesma! Houve um dia de amor. Houve um dia de amor e em troca desse dia entregou tudo. Entregou a si mesma, se deu. Não como a gente se dá no sexo mas como a gente se dá na morte. Agora empunha o ferro e com ele mata quem já morreu. O ferro é leve. O nada é leve, e tanto pesa para quem tudo quer. Quer tudo!!! quer a si mesma de volta!!! Ela se deu, afinal, para quem? Se ninguém a tem?
Odeia essa vida! Mas não é um ódio morno, uma aversão apenas, é um ódio forte e violento, um ódio que nasce de dentro, que brilha nos olhos, um ódio de morte. Tem saudades até das passeatas desfeitas a golpes de cassetetes dos tempos de estudante, da amiga que levou um tiro na perna, e do tio, o tio que não era parente, apenas um conhecido de seu pai que a pegava no colo, trazia balas e falava coisas tão bonitas que ela não entendia nem se lembrava mais, mas gostava. Um dia ele desapareceu — Assassinado por motivos políticos, disseram à boca pequena. Jamais encontraram o corpo, chorou escondida. Aquela tristeza era mais gostosa, trazia consigo um ódio ativo, alimentado pelos jornais que nada diziam, pelos que diziam como podiam e por aqueles que diziam como não podiam e tinham que ser comprados cedo, às carreiras, antes que a policia recolhesse. Sente saudade até do velho que conheceu naquela festa chique. Era deputado, seria o próximo governador com certeza. Todo sorrisos olhou, gostou, convidou, tinha que ser discreto, cuidar da imagem, por isso a levou para um motel afastado, todo escondido, tomando cuidados e mais cuidados. Submeteu-se como se estivesse muito interessada, ele pediu o jantar pelo interfone, não deixaram dados nem documentos na portaria, o motel não exigia. Ele estava no banheiro escovando os dentes quando ela escondeu a faca no colchão, bem ao alcance. Durante a trepada, as conversas, o filme pornô na televisão, a mente não parava de trabalhar, pensava em tudo, todos os detalhes cuidadosamente planejados. Ele cochilou levemente. Pegou a faca, colocou na fronte, apertou com força e bateu com o cinzeiro como se fosse um martelo em um prego, entrou tudo. No desespero ele apertou um seio com força, doeu muito, ficou roxo, mas valeu a pena. Pediu a conta, pagou, cuidou de limpar todos os lugares que havia tocado, arrastou o corpo para a garagem, sentou-o no banco, colocou o chapéu, escorou como pôde. Trabalho difícil, lento e cansativo. Ligou o carro, saiu. Na portaria entregou o tíquete a uma recepcionista sonolenta e entediada, levou o carro até o lugar que havia escolhido, escuro e solitário, limpou cuidadosamente volante, chave, câmbio, maçaneta, tirou o xale da cabeça, guardou na bolsa, saiu andando devagar, meia hora depois pegou um táxi e no dia seguinte, a cada jornal que alguém lia tinha a agradável sensação de estar contando seu feito. Esperou meses a chegada da polícia, não vieram nunca. Crime perfeito. Os jornais insinuaram vingança de bandidos e depois pararam de falar no assunto. Foram meses emocionantes, tensos, agitados. Mas o tempo passou e agora a lembrança era como se fosse de um filme a que assistiu. A protagonista poderia ser uma atriz qualquer, mais verossímil do que pensar que foi ela mesma, num tempo em que viver era perigoso... e excitante! Conheceu o marido, namorou, casou, teve a criança e agora está em pé diante de uma mesa passando roupas. O ferro é uma arma, de posse de uma arma, empunhando uma arma vai matando.
Ouve barulho na porta, é o marido que volta do trabalho.