O primeiro encontro é numa noite fria de sábado. Está parada e vê um sorriso caminhando em sua direção. O sorriso atrai, agrada, prende e ela vai chegando muito perto, tão perto que acaba por se fundir nesse sorriso crioulo.
É uma jovem um tanto quanto amalucada, tem uma vida pela frente e não está sabendo muito bem o que fazer com ela. Sabe, embora sem admitir com todas as palavras, que um sentimento forte a governa e a perde: o medo.
É sensível, sente muito todas as coisas. O que vê a toca mais fundo do que as pupilas, ela sente e sente medo. Medo de ter um futuro igual ao futuro das mulheres que conhece desde sempre, medo de cumprir o papel sem surpresas que lhe está reservado. Junto ao medo, outro sentimento a domina; é como uma sede, é uma quase tristeza, um desejo enorme de se transformar em uma massa de amor. Só assim sente que será material e verdadeira. Só com esse amor desejado sente que existirá. Seu desejo vira sonho, pode se transformar em um pequeno óvulo e caminhar pelo seu corpo, repousar no calor do seu útero e se desenvolver, sentir um corpinho pequeno e indefeso que é seu, se transformar em amor e envolver esse ser. Acorda e tem as mãos vazias, tem um vazio no peito e é inútil porque não é amor. Chora então pelo seu sonho perdido. Lava o rosto, prega novamente seu sorriso apavorado e ninguém sabe que chorou.
Não consegue entender a vida! Tenta mudar as coisas para si mas porque não sabe como fazer, por não saber qual a mudança que deseja, faz tudo errado. Ninguém sabe, nem mesmo sua melhor amiga, que a vê tão malucamente segura, mas muitas vezes se deita sobre os lençóis da madrugada silenciosa e chora, chora muito de medo e de pena. É tão chorona!
Todas as mulheres que olha têm a mesma vida, estão deixando seus dias passar um após o outro sobre uma casa onde elas governam nada. Todas têm as mesmas preocupações vazias, as mesmas palavras ocas, os mesmos olhos perdidos e desde aquelas que sofrem o jugo de um marido que as machuca até aquela apontada como feliz, todas estão deitadas sob o corpo, sob o olhar, sob as ordens do homem ao qual pertencem sua alma e sua vontade, todas estão se consumindo no invisível fogo do inferno da anulação. Nenhuma parece humana, nenhuma tem brilho real, nenhuma consegue ser invejável quando despida de sua casca de sorriso exterior, de encerados pisos, de banheiros sabendo a Pinho Sol. É uma tenebrosa procissão que passa pelas janelas dos seus olhos, e ela chora por elas e por si mesma porque se vê prestes a ingressar nessa fileira macabra. Tenta fugir, se debate, grita e algumas pessoas a olham penalizadas porque não entendem seu desespero. Está tão sozinha que sua angústia não sai, não pode sair de dentro de si.
Para fugir ao destino temido se entrega a uma fantasia, envolta em uma nuvem densa de medo e incerteza procura e é procurada. É tocada por mãos ávidas, retribui com seu corpo feito de medo, travestido de segurança, brilhante de um sorriso que esconde seu pavor. Depois volta para casa, se joga em cama quente, mergulha na noite escura e chora seus atos de desespero que não estão conseguindo lhe abrir outro destino senão aquele que sempre a esperou.
Olha o Homem, mostra a ele seu sorriso mentiroso, sua estridente voz apavorada chega aos ouvidos dele, sorri para ele o seu pavor. O Homem lhe mostra nada, nada que pareça entender seu medo, mas mostra um corpo quente e ela busca aconchego por não poder compreensão. Deita-se, quer que seja ao lado, quer que seja junto, mas quando percebe (percebe logo) está deitada por baixo e faz parte da terrível procissão. Não fugiu ao seu destino, não conseguiu outro caminho. O Homem se deita sobre ela e dorme. Está tranqüilo, repousa. Está em cima e acima dela, mas pesa, seu peso vai aumentando sempre e sempre, torna-se tão pesado que a impede de falar, a impede de fugir. Está presa, para sempre está presa, e agora o medo a abandonou. Não pode sentir medo de seu inevitável destino; ele já se realizou, não há fuga, não há como gritar, o peso do Homem abafa sua voz, não há como sair pois o Homem adormecido lhe impede os movimentos, seus membros aprisionados doem, sofre, chora, sente tanto que chega ao limite de não sentir mais nada. Se pudesse gritar não adiantaria pois o Homem ronca muito alto, não ouviria. Fica perdendo os sentidos sob o peso do corpo adormecido. Não pode ouvir seu próprio pulsar pois o ronco impede qualquer som, o silêncio além do ronco é tão grande, o corpo que pesa é tão quente que não se sente mais. Não se sente sofrer às vezes, sente até prazer, o prazer de estar impedida de pensar, de não ser responsável.
O peso aumenta e sente falta de ar, não pode respirar, está ficando anulada. Seu sorriso é vazio, seu cérebro está oco, sua vida ficou cheia de vassouras e sabão em pó. Vira a cabeça para um lado em um ato de desespero e projeta um pouco seu olhar, o Homem se mexe em seu sono tentando cobrir novamente sua respiração, resiste, não se deixa perder essa pouca liberdade. O Homem machuca mais, se debatendo sem acordar. Projeta seu olhar na parede branca e povoa de personagens fantasmas as marcas irregulares da parede fria, sonha liberdade e busca entranhar seu olhar em uma inexistente dimensão dessa parede irregular.
Sonha e a cada sonho sente o peso aumentando, sente o debater no sono e o ronco ferindo seus ouvidos. O sonho a alimenta como se estivesse comendo a cal vitaminada da parede-tela do seu cinema sonhado. Começa a ter desejos, desejos e esperança, esperanças e medo, medo e fé, fé e coragem, coragem e medo, medo e medo de sair dessa posição, mover seus aprisionados membros e dar alguns passos, mesmo que depois caia sem forças e sinta frio por falta do calor do Homem adormecido sobre si.
O corpo quente em contato com o seu traz um quase esquecimento, traz também um castigo que ela inconscientemente se impôs. Desde o primeiro encontro de sexo é espancada e a palavra vaca ressoa em meio à sua culpa e ao seu pavor. Vaca, vaca, vaca é uma palavra que dói, é um chicote a espancar seu ego dolorido e marcado. Coloca as mãos sobre a cabeça e foge, corre com suas fracas pernas e mais fraca vontade, se deixa ficar deitada ouvindo o sino que ressoa e diz: vaca!
Não sabe por que ama o corpo quente, o sorriso caminhante. Acaso saberá alguém o porquê de qualquer sentimento que o domina? Será ela diferente do comum dos mortais a ponto de entender os segredos da alma humana e da própria? A verdade única é que ama. Primeiro ama sem saber, pensa que gosta de brincar de estar com o Homem, ela nua-vestida, ele nu-coberto. Ela o vê sem vê-lo, ama não amando, é estéril. Mas seu útero infecundo recebe chuva constante e contraria sua tristeza, realiza seu desejo. Ela ama e Ele existe. Ele é tão pequeno, mas tão vivo! Está dentro do seu corpo e é mais vivo que ela. Com as mãos, com os olhos do seu amor, com as palavras cálidas que lhe saem da alma ela o acaricia. Com toda sua alegria o envolve, com a sua esperança o alimenta, ela o sente mover-se dentro de si e sabe que seu amor está sendo um bem para Ele e mais amor Ele pede e mais amor ela lhe dá, e mais o ama e mais ama o Homem porque ele proporcionou, mesmo sem querer, o milagre dEle existir, está grávida de amor e sua barriga enorme é maior que o mundo, é mais azul, ela ama tanto!
É grávida e é rainha. O Homem atravessou vales e montanhas e no seu corcel travesso chegou até onde se escondia sua mágoa, sua mágoa não se mostrou. O Homem não sabe dela, vê apenas seu sorriso falso, seus olhos fingidos, ouve sua voz mentirosa e não acredita mas não se importa, ela se esconde também de si mesma e não ouve mais nenhuma palavra dita, ouve sim, teimosa, a que não diz nunca, quem diz é ela, diz que ama e o Homem mudo e, talvez, emocionado, pousa no peito sua cabeça doída. Fecha os olhos e ouve tudo que o Homem não diz no bater do coração. Por isso Ele existe, brota e cresce dentro de si, Ele é o seu amor que tomou forma, Ele é mais que um deus, Ele é tudo que em sua imperfeição ela jamais mereceu ter, por isso, tão loucamente terra, loucamente humana, loucamente dúvida, se vira para o céu, olha nos olhos de Deus. Agradece. A pedir nada tem. Agradece tudo, agradece cada pulsar desse coração que se faz de amor dentro do seu ser, agradece sempre, agradece tudo e espera. Espera embevecida, espera iluminada e apaixonada o dia em que ele vai sair de dentro do seu corpo e se deixar acariciar. E o Homem espera com ela, está tão confuso, tão espantado que não sabe mostrar o que é, só vê através do espelho do seu amor e não pode saber que a imagem que o espelho projeta não é real. No espelho dos olhos se vê brilhar, se vê amada, se vê grávida de luz, é tão feliz!
Fora do espelho a realidade é outra, os olhos a enganam e só muito depois a boca lhe fala com palavras ásperas, com questionamentos irônicos. Um interrogatório acirrado informa que quando os olhos mostram amor, e o sorriso diz carinho, respeito, paixão, quando até mesmo a mão escreve palavras de louvor. A mente, a frieza de Homem racional e sério acusa, joga pedras e a cobre de lama e vermes. Sorri amor, escondendo no sorriso o desdém que chama cuspindo a palavra vagabunda, que ela não pode ouvir porque o Homem vira o rosto do seu desprezo.
O desprezo dói, mas Ele existe e ela não pode fugir. Ele repousa em seus braços e é tanta entrega que ela pára comovida. Seus olhos pousando nesse pequenino corpo não sabem se choram ou riem, às vezes a felicidade é tanta que o Homem a engana, o corpinho frágil a alegra e crê no amor, crê no Homem e é feliz. Mas então o Homem lhe faz perguntas irônicas, pisa com seu desprezo, fere e deita-se sobre ela, usa-a como um objeto abjeto. E ela se abraça ao corpinho feito de amor, chora e não pode fugir.