Você acha que não tem doença boa? Pois te digo que tem sim. Conheci uma mulher que teve uma doença que todo mundo adoraria ter. Eu mesma, estou nessa clínica esperando a morte só porque não tive a felicidade de ter a doença dela. Se tivesse sairia daqui logo, voltaria ao mundo, poderia fazer planos para o futuro. Mas sem a doença, sou apenas uma velha de 84 anos que conta o passado porque não pode pensar no futuro, que não existe mais.
A mulher se chamava Júlia. Eu a conheci quando se mudou para o meu prédio. Na época, eu tinha uns 35 anos, meus filhos eram pequenos e não paravam em casa. Ou estavam na escola, ou na rua. Sentia um pouco de inveja daquela mulher que se mudou para o apartamento ao lado. Ela não tinha ninguém, trabalhava e morava sozinha. Um dia, era um fim de semana, meus filhos não estavam, meu marido também não. Eu estava sozinha e, depois de tantas vezes ter cumprimentado e trocado pequenas conversas com a Júlia, me senti tentada a convidá-la para vir à minha casa. Na verdade foi um impulso. Estava subindo a escada e me encontrei com ela, sabia que estava só. Subimos juntas e quando chegamos ao corredor, pedi que ela entrasse para tomar uma cerveja comigo. Ela aceitou e nós entramos. Abri a cerveja e começamos a beber e conversar. Ela não falava muita coisa de si mesma, mais ouvia e perguntava. Era muito simpática, alegre, e gostava muito de cerveja. Acho que foi a cerveja que fez com que ela esquecesse as reticências e me contasse tudo sobre sua doença.
Falávamos sobre idade e ela me disse, meio que brincando, que tinha 82 anos. Como brinquei dizendo que ninguém diria, que ela apenas parecia ser maior de 18 anos - na verdade aparentava uns 30 mais ou menos - novamente afirmo minha crença de que foi a cerveja a responsável por isso, fez questão de mostrar que não estava mentindo.
Contou-me que tinha já 63 anos quando a doença se manifestou. Na época estava sozinha com o marido, pois seus dois filhos já estavam casados. A filha morava em outro país, o filho em outro estado e o contato que tinha com eles era mais via correspondência ou telefonema. O marido não estava bem de saúde, era diabético e sofria muito. Ela, mais saudável, cuidava dele e da casa, se divertindo na medida do possível, com seus bordados.
As pessoas começaram a elogiá-la com freqüência dizendo que estava com ótima aparência, não prestou muita atenção aos elogios embora tenha, logicamente, gostado deles. Quando seus filhos vieram com os netos para o natal ambos afirmaram que estava em ótima forma. Brincaram muito com isso e o genro, que era muito gozador, fez todos rirem dizendo que se ela continuasse assim esperaria mais um pouco e trocaria a filha pela mãe.
Disse-me que começou a atribuir a aparência a uma nova linha de cremes que começara a usar. Chegou até mesmo a recomendar o creme às amigas e foi mais freqüente do que costumava ser no uso deles. Mas os elogios continuavam e ela mesma, olhando-se no espelho, ficava satisfeita. Até o marido, já alheio à aparência dela há tantos anos, chegou a comentar que ela estava diferente e mais bonita.
Quando o marido foi internado, ficou muito abalada. Telefonou aos filhos, ficou no hospital com ele e quando faleceu e os filhos vieram para o enterro não houve clima para elogios de aparência. Depois do enterro quiseram levá-la para a casa da filha, que era onde havia mais espaço. Outro país, outra língua. Não, decididamente não queria. O filho então se propôs a levá-la, o apartamento era pequeno mas poderia dormir no quarto das crianças, ele daria um jeito. Não, ela queria ficar em sua casa mesmo, com suas plantas, seus bordados e seus gatos, longe de todos. Mas mãe, não pode ficar sozinha, tão longe de nós. Posso sim, estou longe de vocês mas tenho telefone. Tem o meu irmão, que mora aqui perto, é só pegar um ônibus ou taxi e estou lá. É certo que a gente não se dá muito bem mas em caso de emergência sei que teria ajuda. E ainda tem os vizinhos, todos me conhecem. Não se mora mais de 30 anos numa casa sem ser patrimônio do bairro. Estarei bem, não se preocupem. Além disso, se mudar de idéia, ligo para um de vocês e arrumo as malas. Por enquanto ficarei aqui mesmo.
Ficou, mas o tempo passava e estava cada vez melhor, os vizinhos começaram a comentar que ela havia feito plástica, alguns se tornaram diferentes, não a tratavam mais com a mesma intimidade e quando os filhos vinham visitá-la, ficavam sinceramente espantados.
Resolveu ir a um médico, foi difícil ser levada a sério, mas depois de fazer uma porção enorme de exames o médico mostrou-se apalermado diante dos fatos e lhe disse que aparentemente estava sofrendo uma reversão. Não podia afirmar nada, nunca vira e não tinha conhecimento de casos semelhantes em toda a história da medicina, mas os exames comprovavam que seu metabolismo, que pela sua ficha médica há três anos atrás estava de acordo com sua idade, havia retrocedido, e agora estava com todas as características de uma mulher mais jovem.
Pediu novos exames dali a alguns meses, fez uma série de perguntas e marcou um retorno para a próxima semana. Ela pensou muito, não quis ser curiosidade científica. Não voltou mais e, mais que isso, começou a planejar sua fuga.
Tomou todas as providências. O filho manifestou vontade de visitá-la, inventou um passeio com uma amiga e o filho não veio. Vendeu tudo que tinha, arrumou os documentos, foi até uma cidadezinha pequena, distante oito horas de viagem e alugou uma casinha com dois cômodos no fundo de um quintal. Voltou para casa, arrumou as malas e saiu, enfiou-se naquela casinha e, depois de tingir e cortar o cabelo e vestir roupas diferentes, trocadas pelas velhas em um brexó, começou a sair atrás de emprego. Era professora aposentada, conseguiu empregar-se como governanta em casa de um fazendeiro rico que tinha uma esposa muito infeliz e fútil e três filhos mau-caráter.
Ficou no emprego dois anos, nesse tempo leu nos jornais e viu pela televisão a notícia de seu desaparecimento. Teve sorte, ninguém desconfiou que ela fosse a mulher procurada. Aos poucos a notícia sumiu e todos esqueceram, apenas os filhos, ela imaginava, pensavam nela de vez em quando e se perguntavam o que teria acontecido com mamãe.
Saiu do emprego quando sua doença começou a aparecer e até mesmo os donos da casa, que nunca reparavam em nada, fizeram comentários sobre sua excelente aparência. O patrão disse que as águas do lugar fizeram bem à sua governanta, que parecia mais jovem do que quando chegou.
Mudou-se novamente de cidade e dessa vez foi trabalhar em uma escola particular, dava aulas de geografia e história para adolescentes e pré-adolescentes. Conseguiu ficar quatro anos, mas quando saiu teve que mudar as datas dos seus documentos, pois não tinha mais como uma mulher que aparentava 40 anos ter 70. Tentou alterar a data de nascimento dos documentos, mas não ficou bom, então alegou perda e tirou novos dando apenas o número dos antigos. Quando o departamento que procurava tinha o seu registro com data, acreditavam ter colocado a data errada e a corrigiam. Passou a ter 20 anos menos.
Pouco tempo depois de nossa conversa, pude constatar a verdade do que dissera. As pessoas no prédio começaram a ficar preocupadas com aquela mulher assanhada, que fazia plástica, estava cada vez mais bonita e representava uma ameaça aos lares já que estava chamando a atenção dos maridos. Ela então se mudou. Não se despediu de ninguém. Saiu num final de semana e soubemos depois pelo zelador que seu apartamento estava para alugar.
Nunca mais a vi, mas às vezes penso nela e me pergunto o que terá acontecido. Terá voltado até ser uma adolescente, até se tornar novamente uma criança ou não chegou a tanto?
Gosto de imaginar que foi se tornando mais jovem até uns dezoito ou vinte anos. Então conheceu um rapaz por quem se apaixonou. Tentou fugir com o medo que já se tornou seu companheiro muito conhecido, mas desta vez não conseguiu. O rapaz a amou e ela não teve forças. Ficaram juntos e, aos poucos, ela percebeu que estava curada. Casou-se com o rapaz, teve outros filhos, e está agora envelhecendo calmamente pela segunda vez.
Penso assim e consigo acreditar de verdade que isso aconteceu. Então me pergunto: será que quando tiver novamente seus sessenta anos a doença voltará a se manifestar?