Ele dobrou a esquina e foi caminhando devagar, falava sozinho com voz meio rouca e cuspindo saliva junto com palavras soltas e sem sentido. Gesticulava com as mãos e com a cabeça como se diante de si tivesse uma multidão atenta a observá-lo e a beber suas palavras.
Chegou ao ponto de ônibus e encostou no poste desprezando a fila, esperaria por aquele motorista que ele sabia, lhe deixaria entrar e o levaria sem cobrar nada para onde quer que ele desejasse ir, enquanto esperava continuou seu discurso sem dar muita atenção às pessoas que passavam apressadas e nem lhe dirigiam um olhar, salvo uma ou outra criança que virava a cabeça para ver por um momento aquele mendigo cujo aspecto, mais que pena, dava nojo.
Seu único olho vivo olhava para a platéia imaginária, enquanto o outro, vazado, estava morto, sujo e escorrendo uma água amarelada. O paletó preto com uma manga só, rasgada mas no lugar, os bolsos virados e a sujeira visível, balançava seus pedaços quase soltos ao vento. Os pés sujos e grotescos descansavam um sobre o outro e o joelho, visível pelo enorme buraco rasgado na calça exibia uma ferida vermelha e suja.
As pessoas que na fila aguardavam o ônibus estavam visivelmente incomodadas por aquela estranha companhia e por aquele cheiro horrível que o vento favorável trazia.
Finalmente o ônibus chegou e ele foi o último a entrar, sentou em um dos últimos bancos e o discurso continuou. Do seu lado, como era de se esperar, ninguém se atreveria a sentar, por mais que o ônibus enchesse.
Quatro paradas depois subiu uma mulher e sentou-se ao lado dele. Ela usava uma saia xadrez de cores indefinidas pela sujeira, tinha os cabelos emaranhados e um dos ombros, sujo e arranhado era bem visível pelo enorme rasgão na blusa escura tão ou mais suja do que a saia. Na boca, que exibia um sorriso constante pelo qual se identificava facilmente uma deficiência mental, mostrava apenas dois caninos amarelos e quebrados.
Sem nenhuma apresentação prévia os dois, que eram iguais também pelas folhas de jornais amassados que traziam debaixo do braço, começaram a conversar, falavam como duas crianças coisas sem nexo e quase ininteligíveis.
Quando ele se levantou para descer do ônibus convidou-a com um “vamo” e os dois juntos ganharam a rua com um suspiro de alívio geral dentro do ônibus.
Caminharam dois quarteirões e sentaram-se sob um viaduto ainda em construção onde por longo tempo continuaram sua conversa. Já anoitecia quando ele se levantou e de um saco de papel sujo e engordurado que já estava lá tirou um pedaço de pão preto pela sujeira e velhice, repartiu-o em dois e comeram gulosamente.
Conversando animados e sorridentes estenderam os jornais na terra e se deitaram um ao lado do outro. O ato de se deitarem coincidiu com o silêncio e ele, com a cabeça apoiada nas mãos, ficou longo tempo olhando com seu único olho sadio o concreto que se estendia sobre eles, ouvia a respiração dela, que também estava imóvel deitada a seu lado.
De repente, ele se lembrou do que ainda não lhe tinha tido nenhuma importância: ela era uma mulher! ele ainda não tinha notado mas embora suja, feia e mau cheirosa era uma mulher. E fazia tanto tempo... Sua mente começou a agitar seu corpo. por que não? é uma mulher, e tem, e pode, e está aqui...por que não? Então ele se virou devagar e pousou a mão na perna dela, ela tremeu mas não se moveu, ele levantou sua saia e levou um enorme susto.
Lá estava uma ferida, um amontoado de carne disforme, ela tinha sido cortada, ou queimada, a sujeira cobria uma pele que tinha sido criada para cobrir o que restou de toda a carne e pelos que, ele não sabia como, tinha sido arrancada dali.
O susto e o embaraço deixou-o imóvel, ela se cobriu e começou a acariciá-lo como a pedir desculpas, a carícia foi levando-o devagar ao mundo que ele procurara no corpo dela e então ele teve o prazer que há tanto tempo não tinha. Fechou os olhos e esperou que sua alma voltasse ao corpo devagar. Ajeitou a roupa e buscou a cabeça dela que num gesto de carinho repousou no peito. Dormiram.
No dia seguinte, quando abriu os olhos ela já estava de pé e recolhia a última folha de jornal, ele sentou-se, esfregou os olhos com as costas da mão e olhou-a. Ela sorriu seu sorriso debilóide novamente e lhe falou com palavras que enrolava na língua antes de atirar fora da boca banguela: Desculpa, ninguém tenta mais... foi meu marido...Ele abriu os braços como quem despreza explicações.
Ela sai lentamente com o jornal embaixo do braço e ele se deita novamente para olhar por mais um pouco de tempo o concreto do viaduto.