Usina de Letras
Usina de Letras
19 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 


Artigos ( 63238 )
Cartas ( 21349)
Contos (13302)
Cordel (10360)
Crônicas (22579)
Discursos (3248)
Ensaios - (10684)
Erótico (13592)
Frases (51763)
Humor (20179)
Infantil (5602)
Infanto Juvenil (4949)
Letras de Música (5465)
Peça de Teatro (1387)
Poesias (141311)
Redação (3357)
Roteiro de Filme ou Novela (1065)
Teses / Monologos (2442)
Textos Jurídicos (1966)
Textos Religiosos/Sermões (6356)

 

LEGENDAS
( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )
( ! )- Texto com Comentários

 

Nossa Proposta
Nota Legal
Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->NO ALTO DA COLINA -- 17/11/2009 - 16:59 (Divina de Jesus Scarpim) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Abro os olhos e penso: Será que é hoje? Acho que toda a minha vida me fiz essa mesma pergunta quase todos os dias ao acordar. Mas não saberei se é hoje, ou não antes de subir a colina, coloco a roupa, olho para o rosto adormecido da minha “esposa” com o olhar de despedida de todas as manhãs dos últimos três anos, desço as escadas, calço o tênis e saio para a rua, para o que todos pensam ser a minha “corrida matinal”. Subo a colina correndo, às vezes depressa, às vezes devagar, porque dependendo do que penso, do que sinto e do que lembro desejo ver mais rápido o que há, e se há, lá em cima ou tenho mais e mais medo de ver o horizonte.

Lá no alto me debruço sobre a escarpa e olho ansioso com o olhar de todo dia aquele vale que se descortina e as nuvens esfiapadas que se estendem esparsas abaixo de mim. Lá no fim, onde o verde encontra o azul, não vejo a poeira disforme avançando seu marrom, sei então que terei mais um dia, pelo menos mais um dia. Solto com força o ar que ficou preso nos pulmões, respiro novamente com alívio e me levanto virando o corpo para ver a pequena cidade de onde vim e que se descortina logo abaixo. Volto correndo sem pressa, entro em casa com o coração leve e vejo que Lia já se levantou. Começo a preparar o café enquanto ouço o barulho do chuveiro lá em cima.

Há três anos desci a colina para entrar pela primeira vez nessa cidade bucólica, muito branca e pacata como se fosse tirada de uma propaganda de eletrodomésticos dos anos sessenta. Encontrei Lia, encontrei a casa e encontrei Hugo, gorducho e sorridente em seu berço cercado de brinquedos. Lia é minha esposa, Hugo é meu filho e agora já sabe andar sozinho, dorme em uma cama e me chama de papá. Dessa vez a vida que me foi dada é muito boa. Isso me faz sentir mais assustado todos os dias porque sei que vai acabar e sinto que a próxima será muito diferente, quase que com certeza ruim.

Eles descem e eu assumo minha expressão natural, Lia passa Hugo para meus braços, ganho um beijo de bom dia ainda com cheiro de sono de uma criança adorável que breve não mais verei. Ganho um beijo pleno de promessas de uma noite que virá rápido e que talvez seja a última. Falamos, rimos, comemos e quando saio Lia fica na porta com Hugo nos braços me acenando bom dia.

Chego rápido no escritório, passo o dia entre papéis, reuniões, conversas entremeadas de risos e planos para o próximo fim de semana que não sei se terei. Almoço com um grupo muito animado e por alguns momentos chego a esquecer que tudo isso está aqui só de passagem. Nesses momentos meu sorriso é de verdade e meu peito está leve. Mas são momentos, logo lembro que há três anos não sabia o nome de nenhuma dessas pessoas à volta da mesa, de nenhuma mesmo, nem o meu. Vejo o rosto redondo do Marcão e lembro que foi ele quem me encontrou andando à toa pela cidade, me cumprimentou e perguntou se eu estava indo pra casa, afirmei que sim e convidei-o para um drink, insisti e quando aceitou sorri aliviado, acompanhei-o sem que ele se desse conta de que estava me guiando para minha casa, que eu não sabia qual era. Perguntou se Lia estava bem, eu disse que sim e segurei com força o nome na mente, perguntou se Hugo já tinha falado a primeira palavra, segurei na mente esse outro nome e respondi que não tinha certeza, disse, inventando, que ouvi algo que parecia “papai”, mas não podia jurar que fosse, ele riu, disse que talvez fosse o desejo de que a primeira palavra do meu filho fosse papai, um desejo natural, soube que Hugo era meu filho, imaginei que Lia seria minha esposa e sorri confirmando. Chegamos à casa branca de janelas azuis, como que saída de um conto romântico. Parei na porta, indeciso, não sabia se tinha a chave, lembrei de procurar no bolso quase antes que Marcão notasse meu impasse, lá estava a chave, abri a porta e gritei: Lia, minha linda, trouxe alguém para tomar um drink! Pensei no mesmo momento em que gritava: Tomara que chamá-la de “minha linda” não seja algo muito estranho...

No final do expediente me despeço de todos olhando-os com o meu olhar de “nunca mais” de todos os dias desses últimos três anos. Olho, também me despedindo para sempre, como todos os dias, para o escritório vazio: minha mesa, minha cadeira, meu telefone, minha carreira... Saio para a rua e caminho olhando, e me despedindo para sempre, as casas ensolaradas ao entardecer, os quintais aprazíveis, as crianças e seus skates, suas bicicletas, suas bolas, suas vidas, para mim, sem futuro porque podem todas desaparecer amanhã. Entro em casa com a noite, vivo as horas perfeitas que vislumbrei no beijo matinal de Lia e, como sempre demoro a dormir. Será essa a última noite? Três anos de felicidade tensa serão substituídos pelo quê? Sinto medo. Lembro de quando fui o filho do ferreiro, do dia em que ele me marcou com o ferro quente, meu rosto ainda consegue sentir a queimadura embora seja outro rosto e embora não haja nenhuma marca ali. Lembro de quando fui a esposa do policial perfeito e da tensão constante em que ele me mantinha. Lembro de todas as vidas ruins e desejo que a próxima, se for para ser mais uma daquelas difíceis e torturantes, dure somente três dias, como foi quando fui o ladrão perseguido cujo produto do roubo tinha escondido mas não sabia onde. Se continuasse sendo o ladrão mais tempo do que aqueles três dias certamente teria sido morto pelo meu parceiro, como era mesmo o nome dele? Não me lembro, não me lembro também de como era o meu. Sonhei novamente com a parede de pastilhas e acordei com o barulho do sol batendo na janela. Será que é hoje?

Levanto-me, desço as escadas e saio de casa com a alma pesada, como todas as manhãs, todas as manhãs que poderiam ter sido a última nesses três anos, será hoje? Corro rápido, ansioso, corro devagar, com medo, corro tenso, corro pesaroso, corro com todos os sentimentos que me levam todo dia ao alto da colina. Deito-me sobre a relva e olho para o vale abaixo da escarpa, vejo mais fiapos de nuvens sobre o fio d’água que corta o vale e levo meu olhar ao horizonte. Meu coração dispara e quer sair pela boca, debruço a cabeça sobre o braço dobrado e choro. Nunca mais verei Lia, nunca mais verei Hugo, nunca mais a cidadezinha de comercial de eletrodomésticos, nunca mais a casa branca de janelas azuis. A disformidade marrom escura vem se desenrolando no horizonte e vem rápida, levanto a cabeça, enxugo os olhos na manga e olho de novo. Ela já engole um pedaço do rio. Fico olhando a poeira crescer, tomar o verde do vale aos poucos, aos poucos desaparecer o rio, aos poucos subindo a escarpa e cubro a cabeça, me encolho muito e choro ouvindo o vento zunir. Ele leva para longe Lia, Hugo e a casinha branca, leva para longe aquele que fui nesses três anos. Chorando ouço o vento parar e sinto o sol voltar à minha pele. Levanto a cabeça devagar. Tenho medo!

Olho para mim, uso um vestido florido, sou uma mulher. Levo a mão à cabeça e sinto longos os cabelos, seguro um punhado, trago para frente dos olhos e vejo a cor, castanho claro. Coloco-me em pé e percebo que sou pequena, busco o espelho que passei a levar no bolso e que, ao contrário de tudo o mais, nunca desaparece, olho meu rosto no espelho, sou uma criança! Uma menina sardenta, com olhos tristes e um pouco de beleza. Saio andando devagar. Quem sabe tenho uma família, pais que me amam, irmãos alegres, um quarto só meu e amigos na escola, talvez essa não seja uma daquelas vezes difíceis, talvez seja bom e dure bastante, talvez até eu crescer. Estou vendo a cidade lá embaixo e não é branca como a anterior, é mais cinzenta, tem alguns prédios de quatro e cinco andares e parece um pouco maior. Chego à rua, quanto tempo caminharei dessa vez até encontrar alguém que me conheça e me diga quem sou eu e onde moro? Viro esquinas, entro em uma livraria, ando mais alguns quarteirões, passo na frente de uma escola, viro outra esquina, tenho a impressão de que um menino ruivo acenou, mas não tenho certeza, ele não falou comigo, viro outra esquina, paro na frente de uma loja, olho a vitrine e vejo os anéis, os colares e as pulseiras, não sei se são caros, não vejo o preço, não conheço jóias, passo na frente de uma farmácia e ouço um nome, viro o rosto e vejo uma menina acenando para mim, vou até ela sem jeito e falo “oi”, ela responde, pede pra eu esperar, pega o troco e saímos juntas da farmácia. Para onde você está indo? Para casa, vamos comigo? Só se você me emprestar seu caderno de geografia, e não posso demorar que tenho que levar os remédios da vó. Tá, vamos lá. E ela vai andando e me guiando sem saber, viramos outra esquina e chegamos a um dos prédios, tem cinco andares e um portão aberto, entramos e subimos dois lances de escada, ela para na frente de uma porta e eu seguro a maçaneta e abro o trinco. Estou em uma sala pequena e tem uma mulher de meia idade vendo televisão, ela grita que a comida já esfriou, que eu demorei demais, que só sei sumir pra rua e que ela não sabe mais o que fazer. Todo esse sermão tem uma utilidade prática, descubro o meu nome, descubro que ela é minha mãe, porque a outra menina comenta que minha mãe está sempre brava, e descubro que não sou muito amada e aparentemente não tenho irmãos, não vejo mais ninguém na casa e sigo a menina que parece conhecer a casa e saber direitinho o caminho do meu quarto. Entramos e encontro uma mochila amarela jogada em cima de uma cama estreita, abro a mochila, encontro um caderno com uma etiqueta com a palavra “geografia” em letras vermelhas e enfeitadas. Entrego o caderno para a menina e ela ordena mais do que pede que a gente vá até a cozinha para ver o meu almoço. Ela me guia novamente e encontro um prato no fogão, coberto com uma tampa de panela, pego o prato, levo até a mesa e tiro a tampa, dentro tem arroz e um pedaço de frango, pergunto se ela quer, olha o prato com ar de desprezo e agradece, fico parada sem me decidir sobre qual gaveta abrir para pegar um garfo. Seria a primeira da pia ou a primeira daquele armário azul? Antes que eu tome uma atitude a menina abre a gaveta do armário, tira de lá um garfo e uma faca e me entrega enquanto fala sem parar a respeito da professora de ciências brigando com o Gilberto porque ele não leu o capítulo do livro, percebo pelo jeito que ela fala que aquela cena foi engraçada e foi presenciada por mim, então só confirmo o que ela diz e dou risada como se estivesse lembrando da cena. Começo a comer a comida fria e descubro que estava com fome, a menina diz que tem que ir e diz tchau, eu falo, mais alto do que o normal para não ter que dizer o nome dela, que não sei, passa aqui amanhã pra ir pra escola comigo? Claro, mas não se atrase, sete e quinze chamo uma vez, se você não responder vou embora sozinha. Pode deixar, já estarei pronta, até amanhã. Ela sai e termino de comer enquanto decido. Amanhã, na escola, descubro o nome dela. Aliás, acho que vou ter que descobrir o nome de muita gente. Vi pelo meu caderno que estou na quarta série.

Quando termino de almoçar fico indecisa sobre se deixo o prato na mesa como está ou se lavo e guardo, não quero fazer nada que pareça fora do normal, depois de pensar um pouquinho concluo que aquela mãe que não se mexeu do sofá esse tempo todo não deve ser uma mãe que venha lavar a louça depois do almoço da filha que se atrasou para chegar em casa sabe-se lá de onde. Lavo a louça, enxugo e guardo, abro a porta do armário errada para guardar o prato, mas na segunda tentativa consigo acertar. Volto para o quarto e passo o resto do dia mexendo em todas as coisas para ver se consigo me encontrar em alguma delas. Vejo uma menina organizada, e com péssimas notas, por que será? os cadernos são impecáveis, a expressão que vejo no espelho é de uma criança inteligente, encontro boletins antigos em uma gaveta e vejo que as notas eram melhores. Tem alguma coisa errada “comigo”. Minha “mãe” não entra no quarto, encontro alguns gibis e começo a lê-los. Espero.

Ele chega pouco antes das sete e vem até o quarto me dar um beijo. Tento não parecer muito fria nem muito entusiasmada, “mamãe” está junto e conta que me atrasei para o almoço como sempre, digo que fiquei conversando com uma colega, ele pede que eu seja mais compreensiva com a minha madrasta e descubro, com um certo alívio, que “mamãe” não é minha mãe. Vamos todos para a sala e ficamos vendo televisão e conversando enquanto a madrasta faz o jantar, não sem antes cobrar minha ajuda com os tomates e as batatas, ajudo de forma um pouco atrapalhada porque ainda não tomei posse direito do meu novo corpo e essas mãos tão pequenas são um pouco estranhas pra mim, mas parece que ninguém repara muito. Jantamos os três conversando, ou melhor, o “papai” conversando, a madrasta respondendo com monossílabos e eu ouvindo muito e falando o mínimo possível. Vemos televisão e a madrasta diz que está com sono e sai da sala, eu espero só até o próximo comercial, digo boa noite, que tenho que acordar cedo e vou também para o meu quarto, descubro como colocar para despertar o relógio que tenho na cômoda, pego os gibis e começo a lê-los.

Quando já estou começando a sentir sono e a me perguntar se essa será minha última, além de primeira noite na cidade dos prédios baixos, vejo a porta se abrir e “papai” entra no quarto. Ele diz que ela tomou os remédios e agora está dormindo como uma pedra, diz que veio dar boa noite, senta-se na cama e me beija dizendo que sentiu muita saudade, meu coração dispara quando sinto que ele pega minha mão pequena e leva até um pedaço de carne semi ereto e asqueroso, ele diz coisas que não ouço porque minhas orelhas fervem e minha cabeça dói. Quero gritar, chorar, sair correndo e quero de volta aquele corpo que tive até a manhã desse mesmo dia para dar muitos socos na cara desse ordinário cafajeste que me avisa com respiração entrecortada que não devo contar nada pra ninguém do que ele está me ensinando, que não devo contar nada para ninguém nunca porque se eu o fizer será muito ruim para nós todos, mas principalmente para mim que terei que viver o resto da minha vida em orfanatos onde muitos homens farão coisas muito ruins comigo e farão porque não são como o papai que só quer um carinho inocente e que não vai me machucar, que saberá esperar até eu ficar um pouquinho maior para me ensinar outras coisas e pra me mostrar o que devem fazer as mocinhas comportadas que amam seus pais. Ele suja minha mão e quase vomito, ele pega uma toalha de mão e enxuga tudo, me dá um beijo na testa e sai do quarto com a respiração ainda ofegante. Eu desejo matá-lo. Quanto tempo vai demorar para que eu possa ver a poeira subindo novamente no horizonte, de lá do alto da colina?

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui