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Contos-->O HOMEM PLURAL -- 17/11/2009 - 17:02 (Divina de Jesus Scarpim) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Ele nasceu quieto, nunca chorou e durante toda a sua vida jamais disse uma única palavra. Nunca manifestou qualquer sentimento, nunca respondeu a uma única pergunta, fosse com palavras, com acenos ou com um olhar. Nunca tomou uma decisão ou manifestou um desejo, nunca se viu um gesto de apreço ou de raiva, uma expressão de curiosidade, um brilho de descoberta, uma sombra de ternura. Nada! Ele era uma personificação, ou mais ainda, o superlativo mais completo e mais absoluto da mais completa e absoluta apatia.

Viveu pouco tempo. Os médicos não viam nunca nada de errado nele. Tinha boa saúde, era bem cuidado, tinha uma mãe dedicada que o alimentava a cada três horas e se preocupava com os nutrientes e com os líquidos que ele precisava consumir. Era uma atividade de tempo integral já que ele não manifestava fome ou qualquer outra necessidade. A mãe o levava ao banheiro, colocava-o na cama, vestia nele as roupas e até espantava de seu corpo eventuais moscas ou pernilongos. Ele não tomava nem mesmo a simples atitude de se mover, sua mãe movimentava seu corpo todos os dias com exercícios recomendados pelo fisioterapeuta.

E por que esse homem era tão diferente? Será que não tinha consciência de si mesmo e do mundo que o cercava? Será que não sabia de sentimentos, de sensações e de necessidades? Será que esse homem viveu tanto e não aprendeu uma língua, fosse de sons, fosse de gestos, com que se comunicar? Teria ele algum tipo de retardamento mental que não permitia que aprendesse a mais simples das coisas, como movimentar o próprio corpo? Ou seria a inexistência total de memória que não permitia que se lembrasse nem mesmo de que existia? Era perfeitamente saudável e ficou doente apenas seis vezes nos seus vinte anos de vida. Ninguém ligou as doenças às guerras. Ninguém contou as doenças, nem as guerras.

Na verdade o problema desse homem não era falta; era excesso. Tinha tantas consciências que não podia ser uma consciência; tinha tantas vontades e tantas necessidades que não podia manifestar apenas uma delas; tinha tanto a dizer, e dizia, que não conseguia articular um som ou esboçar um gesto; sentia tantos prazeres e tantas dores que não podia gemer por nenhum deles. Sabia tantas línguas que não conseguia decidir por uma palavra. Sentia tanto, de mal e de bem, que não tinha como conseguir chorar ou sorrir.

Ele nasceu plural. Ele nasceu sendo o mundo. Ele nasceu com a consciência de todas as pessoas, e passou a vida sentindo as dores, os prazeres, os horrores, as crenças, os desejos, os temores, os sentimentos todos de todas as pessoas do planeta e ao mesmo tempo. Ele foi sua mãe a cuidar de um filho todo apatia; enquanto isso foi o médico a não entender aqueles sintomas e o pai a fugir daquela situação desconfortável. Foi também o artista de sucesso que a mãe via na televisão, o criminoso, o repórter e a vítima de cuja notícia a mãe tinha conhecimento pelo telejornal. Foi ao mesmo tempo todos os soldados e civis que mataram e morreram, que torturaram e foram torturados em todas as guerras e todos os conflitos que a mãe via, e que não via, nas notícias dos jornais. Era ao mesmo tempo a adolescente apaixonada, a esposa espancada, o marido cansado, o filho se derramando em energia.

Era aquele que queria a guerra, aquele que desejava a paz, o filósofo que pensava os conflitos e o intérprete que traduzia as tentativas de diálogo. Era o médico de campanha que suturava a ferida sangrenta, o ferido que se esvaia e o poeta que desmaiava à vista de sangue. Era o estuprador libidinoso e a criança inocente e dolorida, a mãe plena de amores, o filho indiferente e o frio parricida. Era o criador, o fabricante, o detonador e a primeira vítima da última bomba criada. Agonizava sob tortura, gozava a dor alheia, sofria as dores do mundo, lutava por melhores tempos, tinha crenças e duvidava. Procurava por respostas, se negava a fazer perguntas, tinha a vida à sua frente, morria sem esperança, dormia e estava acordado, era atleta e comatoso, tinha riquezas incontáveis, passava fome e frio. Era ele e era todo mundo. Morreu de puro cansaço. De tantos movimentos jamais se mexeu.
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