Abre os olhos sonolento e um pouco envergonhado. Olha devagar para o grande relógio à sua frente: duas e vinte, como os ponteiros são lerdos nas horas tristes! Olha as pessoas ao seu redor, todos aqueles rostos enrugados, aqueles olhos sem brilho e os gestos lentos, tão lentos quanto os seus próprios. A vida na velhice tem um arrastar de lesmas. Algumas pessoas também dormem, ele não é o único a não resistir mais com os olhos abertos durante muito tempo.
A mesa, a grande mesa gelada onde um dia todos se deitariam, a pedra indiferente que conheceria o peso de cada velhice naquela sala parecia sorrir com suas velas acesas, trepidando luz sobre um rosto branco, com as rugas mais aprofundadas, mergulhado em flores murchas em um grande caixão preto.
Pensa no morto, quando ele chegara já estava lá, era um velho agradável, que gostava de falar muito balançando o pedaço de cigarro apagado entre os lábios. Gostava dele, era um velho forte. A velhice enfraquece o corpo e a alma. Às vezes chorava, lembrava de tê-lo visto chorar algumas vezes e se perguntavam fazia bico, chorava mais, demorava para responder com voz rouca e fraca: Eram os filhos, os filhos o desprezavam, logo que ficara velho internaram-no naquele asilo triste e esperavam apenas que morresse, felizes por se verem livres dele. Para os filhos ele era um assassino, fora um pai ruim, severo, duro. Mas ele sabia que estava certo, tinha que ser assim, se não, não seriam homens bons. Certo que bebia muito, saía com mulheres e chegava em casa bêbado e nervoso, se falavam com ele, fosse a mulher, fossem os filhos, apanhavam.
Mas como não beber nessa vida de merda que levava? Trabalhar pesado o dia todo, plantando, colhendo, e depois ter que aturar mulher falando em seu ouvido o tempo todo, criança chorando, criança brigando, fazendo arruaça. Não tinha dinheiro, perdia a colheita. A maldita da chuva não vinha e secava tudo. E quando vinha, vinha demais, apodrecia tudo que plantara, passava fome. O pouco que tinha bebia, bebia a tragos grandes a porca da vida, e se aparecia uma mulher, a mulher ria com ele, a carne da mulher era rija, não era como a da sua, que estava feia, acabada de tanto trabalhar e parir. E mesmo quando a mulher não era muito nova, era um cheiro diferente, que embriagava como a pinga e, como a pinga, ajudava a esquecer.
Depois teve a filha que fez a besteira, andou se bolinando com um vagabundo qualquer e apareceu de barriga. Ele não estava para criar bastardo de nenhuma rampeira. Botou a filha para fora de casa a pontapés. Que se virasse, que fosse cuidar da vida, na hora de se esfregar com homem não lembrou que tinha pai, pois agora que esquecesse mesmo porque ele não ia fazer uma zona dentro de casa sustentando mulher prenhe sem homem para se escorar. A filha foi, riscou seu nome da família e continuou a beber, a mulher passou maus bocados, também, o que ela pensava? ficar chorando, de olhão inchado pela casa, com vagar em tudo, fazendo feijão salgado, arroz sem sal e queimando as roupas dele quando ia passar com o ferro a carvão, então o sangue subia e ele descia a mão, pois se quisesse chorar ele lhe dava motivos, assim pelo menos não ficava chorando por nada.
Depois ficou sabendo, a filha tirou a criança e foi fazê vida, ficou muito tempo assim, às vezes vinham lhe contar da puta nova da zona, da puta Rosinha que não escolhia homem, que apanhava de qualquer um e cobrava barato, ele então escondia a vergonha no copo de cachaça e no colo das mulheres, descontava a raiva na cara inchada da mulher e no corpo magro dos filhos. Mais um tempo e a filha morreu, morreu de podre, de doença de puta e, dizem, morreu amaldiçoando o pai, a mulher inchou mais os olhos, apanhou mais, apanhou tanto num dia de maior bebedeira que caiu na cama e nunca mais levantou, morreu chamando a filha morta. Perto da morte ficou ainda mais idiota do que era, deu raiva, deu vontade de beber e ele bebeu.
Agora os filhos o chamam de assassino, pois o que esperavam eles? que ele tivesse a perdição dentro de casa? Diziam que ele matara a mulher, tinha ele culpa dela ser burra? De ficar chorando por uma perdida que não valia nada? Eles achavam que sim, por isso o enterraram nesse asilo, por isso deixaram que apodrecesse lá dentro, no meio de gente velha e triste, no meio de doentes e loucos, ouvindo choros e gritos à noite, sentindo o cheiro de merda e urina dos que não se levantavam mais para fazer suas necessidades, sentindo, mais tarde, o cheiro da sua própria merda e da sua própria urina. Foi ficando fraco, cada vez mais chorão, no final nem reconhecia mais ninguém. Agora estava ali, deitado na mesa, acabado.
Olhou ao redor e viu que nada mudara, alguns velhos continuavam, teimosos, com olhos abertos, outros dormiam. Alguém tossiu e ele olhou o velho magro, com olhos fundos e cara de idiota, continuou olhando a sala e de repente sentiu uma sensação desagradável, uma tristeza grossa atravessando sua alma apertada. Se deu conta de que naquela sala imperava a morte. Não como em outros velórios que já vira, onde a morte estava apenas dentro do caixão. Ali não, a morte estava na sala inteira, era um morto deitado, cercado por uma porção de mortos sentados que esperavam apenas vagar o lugar para que pudessem se deitar, um de cada vez, sobre a gelada mesa de pedra.
Olhou novamente para o defunto. É Raimundo, Raimundo, agora era tudo mais fácil, não precisava rir, não precisava chorar. E ele jurava tê-lo ouvido, perto da morte, chamar pela Rosinha. Coitado, ficara tão idiota como a mulher. Agora sim, Raimundo, Rosinha não existia mais.