Como é que pode uma mesma coisa ser tão gostosa e tão nojenta? Que droga! Se tentava lembrar do lado bom do sexo se ferrava. Não podia. Era só aquela nojeira. Vontade de matar aquele FDP que virava seu corpo do jeito que bem entendia e socava. Aquilo era coisa de bicho. Não gostava nem de lembrar. Que ódio de um dia ter gostado!
Tudo que era “família” estava naquele albinho brega, com a foto de uma loirinha aguada assoprando velinha na capa. Se queriam que olhasse dizia: “Eu não. Nem quero lembrar essa bobeira”. Se não tinha ninguém bem que era uma tentação olhar de vez em quando. Ver aquela menina idiota que era ela, junto daquele cara posudo, metido a gostosão. E a besta da menina achava o máximo. Se pudesse saber!!
Rodrigo nasceu e ela acabou. Ele não escondia nada. Trazia para casa algumas das putas que andava comendo. Todas de barriguinha reta. Cara de quem está por cima. E ela parecia um bujão de gás, uma coisa que nem merecia ser chamada de mulher. Não se pode comer um negócio desses. Um barrigão mais digno de um chute que de um carinho. Ele só ria. Ela queria morrer e matar. Depois ficou pior. Sem o barrigão mas com peitos de vaca, vazando leite. Uma coisa tão nojenta que nem dava pra olhar.
Sobrou o nenê. Agarrou-se nele e engoliu a raiva. O gostosão voltou um dia pra cumprir a obrigação. Mulher é assim. Casou tem que comer. Mesmo que esteja esse traste imprestável. Que saudade de quando ficava sozinha em casa! Ele, com as putas.
Colocou os trapos numa sacola e foi pra casa dos pais. Foi expulsa. Casou, não casou? Agora agüenta. Quero uma puta dentro de casa não. Cuida desse moleque e deixa de frescura. Voltou.
Ah, se pelo menos parasse de parir! Parou nada. Barriga de novo. Ele, caiu fora. Voltava dia ou outro pra mostrar que era o dono. Nasceu Fabinho. O último, juro!!! Cumpriu. Tinha que fazer doze curativos, fez o dobro. Era uma tocha sem fogo que queimava por dentro. Que morresse, mas filho não tinha mais. Não morreu. Só um mioma. Arrancou o útero e tudo bem. Era cuidar dos moleques e esperar. Um dia caia fora.
Tentou trabalhar. “— Mulher minha não sai de casa. Coisa de puta.” (Mas se era de puta que ele gostava!!). Aprendeu a fazer doces, salgadinhos, bolo. Quis colocar placa para festinhas. “— Tem mais o que fazer não? Vai costurar minhas calças e larga de bobeira.” Fazia escondido. Ajuda para as amigas. O dinheiro não dava para quase nada, desistiu.
Chifrar o filho da puta? E o nojo? Só de pensar em juntar suor com alguém o estômago embrulhava. Trauma. Era esperar os moleques crescerem e cair fora. Ficou.
Rodrigo foi fazer um curso na firma do pai. Quando terminou entrou Fabinho. O tempo passava e, de estupro em estupro, ela armava sua saída para quando os meninos saíssem. Aprendeu paciência.
Aquele dia ele veio. Foi o nojento de sempre. Comeu, falou, subiu. Ela ficou enrolando. Se ele dormisse não tinha estupro. Quando subiu ele estava esperando. Deita aí filhinha, hora de cumprir a obrigação. E tome. Foi ao banheiro chorando, e lavava. Lavava até vomitar o jantar, raspava com a gilete toda a pele suja. Lavava até sobrar só a sujeira de dentro do ódio.
Enxugava-se equilibrada em um pé só. Os olhos de lágrimas não viam direito. Caiu, bateu a cabeça na bacia. Morreu?
Proust conta que a gente, antes de acordar, fica tentando localizar o lugar onde dormiu. Na escuridão do limbo da inconsciência, movemos paredes e móveis recompondo cada um dos quartos onde já dormimos até que conseguimos colocar todas as coisas nos lugares certos e, só aí, podemos acordar no mesmo lugar onde adormecemos. Todo esse processo não dava certo para ela. Ia colocando as coisas e só conseguia deixar paredes e objetos no banheiro. Mas o corpo não reconhecia, faltava o frio do piso molhado. A posição do corpo não era a mesma. Para que lado a cabeça, os pés? Não se achava. E a dor? Não devia ter uma tremenda dor no lugar da pancada? Não eram perguntas que fazia. Era o inconsciente que negava o desconhecido e não a deixava acordar. Tentava reconhecer a si mesma. Se saber viva em mundo concreto ou morta do outro lado do nada.
Mas a procura do inconsciente foi se fazendo sentir. Primeiro sons indefinidos, emaranhados no limbo. Depois pequenos movimentos de nervos. Mais intenção de movimento do que movimento real. Até que chegou ao inconsciente aquele som — passos! — O som cavo ressoando em um filme antigo. Que som agradável!!! Tentava incorporar o som ao sono, criar um sonho para encaixá-lo. Faria isso não tivesse batido no mais fundo do abismo a pergunta. — Em que piso soariam assim os passos? — De quem eram não importava. Que piso os recebia era crucial que se soubesse. O desejo de saber puxou a consciência que percebeu som de motor ao longe, murmúrios indefinidos e os passos que se afastavam.
Ainda não estava acordada. Faltava ligar o consciente ao concreto e nada de concreto era percebido. O medo de estar morta. Até que veio a palavra, perfeitamente distinguível em meio aos sons e murmúrios. A palavra era o concreto que a traria de volta. Os ouvidos reconheceram uma palavra que veio de longe, íntegra e decifrável. — amanhã — E o agora se fez verdade.
Abriu os olhos e ficou olhando o lugar. Fez o reconhecimento. Era um hospital, lógico. Tinha até uma enfermeira lendo revista, toda desligada do mundo. Quando foi passar a página e deu com os olhos dela levou um susto. Foi tudo pro chão, revista, paz e quase que a poltrona vai junto. Ela falava meio assustada. — A senhora acordou! A senhora acordou! — Finalmente parece que se tocou e parou com o papagaiar. Assumiu o ar profissional e chamou o médico. Entrou um rapaz loiro e sardento, tão alto que estava mais para jogador de basquete do que para médico, mas enfim...
E ele examinou, riu, falou. Ela perguntou. Por que estão me chamando de Sueli? Ele avisou que a estão chamando pelo nome, oras. Mas eu me chamo Ana. O médico nem ligou. É amnésia. Normal. Foi um acidente e tanto. Ah, graças ao cinto de segurança você está viva. Cinto de segurança no banheiro? Que banheiro? Eu cai no banheiro. Caiu nada, foi acidente de carro, e dos bravos. O carro já era, por pouco não sobra nem você pra contar a história. Não era verdade, caramba! Adiantava falar? O tal do médico só falava em trauma, amnésia, choque. Desistiu. Pensou em algum membro faltando. Queria se mexer, teve medo. Perguntou. Eu tô inteira? Mas é claro que tá, não falta nem uma unha. Alívio. Mexeu as pernas de leve. Bom. E o tempo? Setenta e oito dias. É dia que não acaba mais. Coma mesmo, de dar medo de não voltar. Voltou. Que legal.
Hora de tentar levantar, sair da cama. Trabalhão, mais que câmara lenta. E coloca travesseiro, coloca mais travesseiro. Senta sem travesseiro, põe pernas para fora, pisa no chão (tem micro alfinetes. Dói!) e apóia feito bêbada, anda um passo por vez, nem sabe direito como é que se faz. Amnésia? Volta para a cama, amanhã vai de novo.
Legal, uma volta pelo quarto em tempo record (hora e meia). Nesse ritmo, disputa a São Silvestre ano que vem. Médico sem graça. Falar em sem graça lá vem ele com novidades. O marido quer entrar, fazer visita, coitado. Tão preocupado. Pelo amor de Deus não!!!... Hoje não. Diz qualquer coisa. Não quero ver marido nenhum. Só se vierem os filhos. Que filhos? Meus dois filhos, oras. Mas a senhora não tem filhos. Não deixa ele entrar. — O medo é maior do que a curiosidade.— Tudo bem, fica calma. Digo que não pode receber visita ainda, ele volta amanhã. Obrigada. “Preferia que não voltasse nunca.”
Cansada. A enfermeira ficou quieta, pode pensar um pouco. Que história é essa de Sueli? Não tem filhos? Que brincadeira sem sentido. Devem ter trocado as fichas, amanhã resolve. Tomara que não venham operar algum órgão bom ou coisa parecida. Não, logo vão se tocar. Cansada...
Acordou bem disposta, ótima. Hoje teria alta. Como não? Estava perfeita. Voltar para casa. Saudade dos meninos. Foi ao banheiro sem chamar ninguém, para quê? Estou ótima. Mas quando se olhou no espelho ... Olhar indiferente. Aquele olhar que olha e nem vê direito. Desvia logo e cuida da vida. Nada de estranho. Mas e se esse olhar topa com algo totalmente novo? Não devia ver o que vê. Olha novamente. confere e é o que não é. E tudo está perdido. Não sabe mais o que é. Desesperou. Gritou. Gritou tão alto e correu tão depressa que apagou tudo. Uma confusão de grito, enfermeiras, apertos, espetada de agulha, gritos, pernas e braços seguros lutando por se soltar sei lá por quê. E o escuro.
Abriu os olhos e a enfermeira olhava para ela, curiosa, parecia armar o bote para segurá-la de novo caso tentasse se mexer. Lembrou a loira que vira no espelho com olhar de susto. Não entendia nada. Parecia filme de ficção. Mudar de rosto, ser outra pessoa. Que loucura. Foi engano, deixa olhar de novo. Mas a enfermeira segurou forte. Calma, o médico já vem. E tocou a campainha. Soltou o corpo sem resistir. Entrou o médico. Viu fantasma no banheiro? Médico sem graça.
Perguntou quem era. Pediu que o médico contasse tudo. Chama-se Sueli, tem vinte anos, casada. Marido tem vinte e seis, trabalha com comércio exterior. Estão casados há pouco tempo. Dois anos, talvez. Sofreu acidente. Voltava da faculdade. Faz direito. Só. Ah, sim. O marido está lá fora. Prometeu que o receberia. Pode entrar? (Já é amanhã?). Não lembro de nada... Eu digo tudo para ele, é amnésia. Passa logo se ficar tranqüila. É jovem, recupera-se fácil. Se tivesse quarenta ao invés de vinte, ele se preocuparia, brincou.
A enfermeira pergunta se tem fome. Puxa! nem tinha lembrado disso mas percebe que está faminta. Ela pega o interfone e pede um café da manhã reforçado. Entra o tal marido. Espera que a olhe com cara de susto e grite que nunca a viu antes. Ele chega perto e começa a fazer carinho. E beija, e fala de saudade, de preocupação, todo cheio de frescura. Credo! É novo, até que bonito. Parece um pouco com o Rodrigo. Ele fala feito um bobo. Dá uma vontade enorme de rir, cair na gargalhada, rir até chorar. Lembra dos filmes que viu e morde os lábios para ver se funciona. Funciona a mordida, o fato de ter desviado os olhos ou a entrada da moça de azul trazendo o café. Ela começa a comer. Come por fome e come para não falar nem ser tão paparicada assim. Não gosta dessa beijação toda. Cara chato!
Queria que a deixassem em paz. Precisava voltar ao banheiro. Olhar de novo o espelho, ver se a loira ainda estaria lá. O médico mandou o marido sair. Saiu. Que bom. Ficou só com a enfermeira. Aparentou naturalidade. Perguntou se poderia sair da cama. Precisava ir ao banheiro, escovar os dentes. Ela não desconfiou. Foi com cuidado. Natural. E a enfermeira não a seguiu. Ainda bem. Entrou. Cabeça baixa, olhos no chão... Chegou perto da pia, encostou. Fechou os olhos, levantou a cabeça. Respirou fundo. Prometeu. Não grito. Não grito. Juro que não grito. Abriu os olhos. Prendeu a respiração, se não prendesse gritaria. Ela estava lá!! A loira. Olhava com cara de espanto. Chegou mais perto. Ela também. Virou a cabeça. Ela virou. Olhou bem dentro dos olhos e levou outro susto. Quem estava lá dentro não era a loira, era ela mesma. Não dava para explicar. Afinal, caramba, quem já passou por essa situação antes? Como explicar que o brilho lá no fundo dos olhos era ela mesma e não a loira? O que foi que aconteceu? Vestiu o corpo da loira como quem veste uma roupa de festa (gostou da roupa). A enfermeira bateu de leve na porta. Precisava de algo? Não, já estava saindo. Deu descarga. Fez a cara “natural” e saiu devagar. Deitou-se e a cabeça até doía de tanto que tentava entender o que estava acontecendo.
Quando bateu a cabeça morreu e foi parar no corpo da loira que; quando sofreu o acidente, morreu também? É possível uma coisa dessas? E agora? Ia ficar no corpo da loira para sempre ou um dia, hoje ou amanhã, ia dormir e não acordar mais porque morreria de verdade e a loira voltaria para seu corpo? Que coisa mais complicada! E se a loira, quando saiu do corpo, trocou de lugar com ela, foi parar mesmo no corpo dela? Talvez esteja agora em um outro hospital, ou nesse mesmo, acordando e levando o maior susto ao descobri que agora está “morando” no corpo de uma velha de quase cinqüenta anos. Coitada! Tomara que tenha morrido mesmo. O que fazer agora? Ficar com essa cara de pateta fazendo de conta que não se lembra de nada por quanto tempo? Dizer tudo o que aconteceu e virar atração daqueles programas que falam de vida depois da morte e outras coisas malucas? Ser alvo da curiosidade fanática dos crentes e do deboche dos céticos? Não, decididamente, não dava para falar nada mesmo. A cara de bobona desmemoriada parecia ser a melhor solução. Por enquanto.
Livrou-se do marido babão em pouco tempo. Conseguiu um emprego e ficou morando sozinha em um pequeno apartamento que pertencia aos pais de Sueli e, conseqüentemente, a ela já que agora era Sueli. O coitado do marido não conseguiu nunca entender o que acontecera com sua esposa que parecia ter se tornado outra mulher depois do acidente. Seu comportamento não era possível de ser explicado apenas como amnésia. Esqueceu-a e até começou a namorar novamente. A família não sabia o que pensar dessa nova mulher que saíra do coma e parecia desconhecer a tudo e a todos, inclusive a si mesma.
No começo comportou-se de forma passiva. Com ares de muita tristeza e embaraço manifestava seu pesar por não se lembrar das pessoas que a cercavam. Enquanto todos tentavam colocá-la à vontade, aproveitava-se para colher informações. Já tinha quase que descartado o temor de ter que restituir o corpo que habitava à sua verdadeira proprietária. Resolveu então aprender tudo sobre a mulher que agora era até que conseguiu fingir algum retorno de memória e tranqüilizar os pais de Sueli a ponto de não se oporem a que ela morasse sozinha e não com eles.
Uma das coisas de que mais gostou no fato de ser Sueli foi que esta não tinha problemas financeiros. “Voltou” à faculdade pensando que não conseguiria levar uma semana sem despertar suspeitas mas, para sua surpresa descobriu que todos os assuntos lhe pareciam extremamente simples e de fácil assimilação. Resolveu continuar. Ganhou um carro novo de um pai muito sério e carinhoso e decidiu atropelar o marido.
Planejou muito o atropelamento, não era para matá-lo, isso seria simples demais. Queria apenas que sofresse. Começou a seguí-lo esperando pela oportunidade, demorou meses para estar na rua escura um dia em que saiu bêbado de um bar e voltava para casa meio cambaleante. A rua estava quase deserta, em uma curva virou o carro e pegou-o de frente Parou, chamou as pessoas, simulou um desespero tão grande que ninguém se atreveria a suspeitar. Levou-o ao médico juntamente com uma das testemunhas, prestou depoimento mostrando um nervosismo estudado que a tornou muitíssimo inocente e interessou-se pelo seu estado no hospital em que estava. Foi pessoalmente à casa dele, depois de pegar o endereço, avisar a família sobre o atropelamento e chorou nos ombros de Rodrigo de felicidade por poder revê-lo enquanto ele a consolava pensando que as lágrimas fossem de tristeza por ter atropelado seu pai. Abraçou-se a Fabinho pedindo desculpas e, intimamente agradecendo a Deus por vê-lo tão grande e bonito. Os dois rapazes garantiram-lhe que não a culpavam de nada. Ofereceram café, pediram que se sentasse e conversaram os três durante muito tempo até se tornarem amigos para todo o sempre.
Assim que seu marido voltou do hospital, foi visitá-lo em casa e ficou satisfeita de ver que tivera alguns ferimentos bastante doloridos e que suas pernas precisariam de algum tempo e muita fisioterapia para poderem caminhar novamente. Então pensaria em outra coisa. Envenenamento talvez. Existem venenos que matam bem devagar e a pessoa sofre muito, basta acertar na dose. Acertaria.