Era uma vez um homem que morava em um sítio no interior de São Paulo. Isso foi há muitos anos, antes até de eu ter nascido. Pensando bem, foi antes ainda: nem minha mãe era nascida nesse tempo. Pois bem, o tal homem morava no sítio e da roça que plantava tirava o sustento de sua família, e as famílias naquela época costumavam ser muito grandes, bem maiores do que hoje. Só pra você ter uma idéia, minha avó teve onze filhos, e ela não era uma raridade por lá. Voltando ao nosso homem, ele plantava, colhia e vivia do que tirava da terra. Trabalhava de sol a sol juntamente com seus filhos e com sua mulher apenas para conseguir o grande bem de continuar vivo. Muitos de nós fazemos assim ainda hoje. Mas o homem tinha um hobby, que ele por sinal não fazia a mínima idéia de que se chamava hobby. Ele criava passarinhos. Tinha em casa dezenas de gaiolas e não saia para a roça sem antes alimentar os bichinhos, limpar as gaiolas, cuidar, enfim, de todas as necessidades que ele achava que os passarinhos tinham. Mas a vida é mestra e às vezes muito rigorosa. Um ano não choveu, ou choveu demais não sei bem. O que sei é que, por falta ou por excesso de água, naquele ano o homem não teve colheita, não teve plantação, não teve dinheiro e teve, isso sim, uma dívida que não pôde pagar. Foi preso — naquele tempo as pessoas iam presas por não pagar dívidas. Passou algum tempo na cadeia e a mulher e os filhos juraram que cuidariam direitinho dos pássaros. E cuidaram mesmo. Não morreu nenhum. Não sei quanto tempo esse homem ficou preso. Algumas semanas, uns poucos meses, imagino. Não quero crer que uma pessoa honesta e trabalhadora seja presa por anos e anos a fio somente por causa da natureza. O fato é que um dia esse homem saiu da cadeia e voltou para casa. Entrou mudo, cabisbaixo e um tanto apressado. Sem dizer nada a ninguém, antes de abraçar os filhos e beijar a esposa, foi até o quintal e, cuidadosamente, com os olhos marejados e o coração partido, abriu uma a uma todas as suas gaiolas e ficou olhando seus passarinhos levantando vôo.
II
Era um homem da cidade, trabalhava numa grande montadora, vivia entre carros e prédios e o maior contato que tinha com a natureza era na verdade o prato de salada que comia às refeições e as barracas de frutas e verduras da feira, entre as quais passeava todo domingo escolhendo as laranjas e os tomates. Mas sentia falta, queria ter mais contato com a vida selvagem e, um dia, resolveu passar as férias no pantanal. Ah, foi uma festa! Ficar no meio dos índios, pescar no rio, comer frutas tiradas da árvore e não da geladeira. Certo que odiou os mosquitos e o excesso de calor, mas relevou. O importante é a natureza e ela estava ali, bem à sua volta. Um dia foi com dois índios pescar. Iam pescar apenas para ele comer, já que tinha chegado aquele dia à aldeia e era visitante. Os índios levavam lanças de madeira apontadas com capricho, ficaram com os pés mergulhados na água fresca e transparente, esperando, até que passava um peixe bem grande e um dos índios armou a lança e esperou. Logo o peixe estava ao alcance e a lança foi rápida e certeira, o peixe foi tirado se debatendo de dentro da água. Nisso, olhando ainda para dentro do rio, o homem viu que se aproximava deles um peixe ainda maior que o pescado e falou rapidamente, segurando um dos índios pelo braço. “Olha, um bem grande, pega esse! Pega esse!” O índio olhou para ele com uma expressão de extrema admiração e perguntou: “O senhor come os dois?”
III
Meu filho era muito pequeno, mal falava ainda. Foi no tempo em que chamava ônibus de “ontubusu”, mamadeira de “dela si vai” e não dormia sem o “betô”. Foi também por essa época que num dia em que, depois de “futucar” com uma espada de plástico amarelo uma fotografia de um pôr-do-sol que tínhamos na parede da sala, fazendo com que ela caísse e batesse no seu narizinho, reclamou: “O sol itlago o nalizinho dele!”. Um dia, fomos à casa de minha cunhada, era um domingo, dia das famosas visitas familiares; meu cunhado tinha várias gaiolas com passarinho que ele vivia trocando, vendendo e comprando. Nesse dia ele estava no quintal limpando as gaiolas enquanto eu conversava com minha cunhada, olhando a pequena horta que ela plantara, por isso ouvi a conversinha do meu filho e vi o jeito que ele olhou, durante algum tempo, para todas aquelas gaiolas antes de perguntar ao meu cunhado: “Por que você tem tanto passarinho nas gaiolas?” Meu cunhado passou a mão na cabecinha do meu rapazinho curioso e respondeu: “É porque eu gosto muito de passarinhos.” Meu filho então ficou ali, quieto, aparentemente mergulhado em profundos pensamentos durante bastante tempo, sempre olhando o trabalho de meu cunhado com as gaiolas. Depois, como quem realmente não estava entendendo a lógica da situação, perguntou: “Mas se você gosta mesmo de passarinhos, por que é que você prende eles?”