E eu era uma menina verde. Verdes não eram meus olhos, minhas roupas ou meus sapatos. Verdes eram meus olhos, minha pele, meus dentes. Paz nunca tive, sempre alvo da suprema curiosidade humana. Em que lugar do mundo poderia esconder-se uma menina verde? Como poderia disfarçar-se e passar despercebida uma menina verde? Jamais pude fugir ao meu destino de curiosidade, jamais me pude furtar à minha sina de material para estudo. Ah, como deviam lamentar-se alguns cientistas pelo fato de que eu estava viva e, pelo menos por enquanto, não poderiam eles me fatiar como a uma mortadela para estudar-me, centímetro a centímetro, até poderem descobrir onde estava guardada a caixa de tinta verde que me coloria todo o corpo! Mesmo meu sangue não se parecia com o sangue de nenhum homem ou mulher, estava mais para sangue de inseto, ao menos pela sua cor verde-esmeralda-brilhante e servia apenas para estudo, nunca para uma transfusão.
Meus pais nunca tiveram dificuldades, ao menos financeiras, desde que eu nasci. Tinham casa, carro e dinheiro na medida de suas necessidades, e até um pouco mais, com a única condição de sempre morarem perto do laboratório e estarem sempre permitindo que fizessem comigo todos os exames, testes e estudos que desejassem. Minha mãe, graças ao amor que prende toda mãe a seu filho, mesmo que esse seja verde, lembrou-se de exigir apenas que me mantivessem saudável e permitissem meu crescimento normal. Pobre mãe, que crescimento normal julgava ela poder ter uma menina verde?
Nunca soube o que era ter amigos, freqüentar escolas, ir ao clube, ao parque ou ao circo (lá eu seria a atração). Não pude nunca tirar férias com um grupo de iguais (não havia iguais) para explorar pequenas matas e nadar em calmos rios. Sabia de todas essas atividades pelos relatos dos meus irmãos. Sim, eu tinha um casal de irmãos e, pasmem, eles não eram verdes.
Vivia mais no laboratório do que em casa. Queriam saber tudo, jamais se saciavam de estudar-me. Ensinavam-me coisas, eu aprendia e eles avaliavam meu QI. Avaliavam tudo que partia de mim. Até mesmo minha urina e minhas fezes (verdes como um licor de hortelã e um mouse de abacate) eram periodicamente examinadas à exaustão. Em alguns dos muitos noticiários e programas de televisão a que eu era levada, alguém dizia, em tom exclamativo, que eu era muito bonitinha, apesar de ser todinha verde.
Meus pais também foram muito examinados logo que nasci. Fizeram toda sorte de perguntas aos dois e examinaram cuidadosamente seus corpos e suas mentes. Depois deixaram-nos em paz, concluíram que eram absolutamente normais; nada havia neles que justificasse minha intensa e teimosa cor verde. Principalmente espantou a todos o nascimento de meu irmão um ano e meio depois de mim; ele era completamente normal, todo rosado e de sangue vermelho como rubi. Minha irmã veio depois apenas confirmar que o problema não era de meus pais; poderiam ter quantos filhos desejassem que, parece, todos seriam normais; apenas eu, por uma razão para todos inexplicável, nascera verde; e nascera verde de meus pais como poderia ter nascido verde de qualquer outro casal do planeta; afinal, meus pais não eram diferentes de ninguém.
Aprendi a ler, escrever, contar. Aprendi história, geografia e ciências. Sempre tinha alguém pronto a ensinar-me tudo que minha curiosidade desejasse desvendar. Sempre havia alguém pronto a satisfazer todos os meus desejos de comida ou de brinquedo. Apenas um desejo ninguém no mundo era capaz de satisfazer: O desejo de, um dia ao menos, passar despercebida, não ser alvo de espanto, não ser olhada como uma coisa de outro mundo. Quando soube da lenda de que os marcianos seriam homenzinhos verdes, cheguei a me pensar descendente deles. Mas eles não existiam, eu soube depois, enquanto que eu existo, e existo com toda certeza porque penso. Não é fato incontestável? : penso, logo existo.
Sempre gostei de saber como as coisas eram. Gostava de saber como tudo é por dentro, porque tudo funciona, e mais: queria saber como é que as coisas são feitas. Aprendi ciências e vi, em química, física, mecânica o porque dos objetos, da matéria, dos inventos do homem e das forças da natureza. Aprendi biologia, anatomia, botânica e zoologia e entendi, na medida do possível, como e de que são formados os seres vivos. Li poemas, contos, ensaios, romances e a bíblia e aprendi um pouco sobre a mente humana. Tornei-me, como era de se esperar, cientista. E um dos grandes mistérios que estudava à exaustão era uma menina verde que com o tempo foi se tornando adulta, séria, objetiva, forte.
Mostrei-me uma mulher de caráter e, embora não deixasse nunca de ser alvo da curiosidade humana, tratavam-me agora de forma um pouco diferente: muitas das perguntas que faziam a outros cientistas a meu respeito quando eu era uma menina verde, faziam a mim mesma agora que eu era uma mulher verde. Fiz algumas descobertas celebradas no mundo científico, desenvolvi alguns estudos importantes para a ciência, recebi alguns prêmios cobiçados pelos homens que se dedicam ao conhecimento. Apenas, como todos os cientistas que, à exaustão examinaram meu sangue, minha saliva, minhas excreções e meus raios X desde que nasci, não consegui descobrir onde está a latinha de tinta que me coloriu completamente de verde.
Conheci muitos lugares do mundo, conheci muitas pessoas e aprendi muitas línguas. Mas nunca conheci a privacidade de andar entre os homens como mais um representante da espécie. Conheci a dor de perder a mãe para uma doença que, anos depois eu ajudaria a erradicar, de perder o pai por um acidente que provocou uma hemorragia que, anos depois eu me sentia capaz de estancar, de ver meus irmãos tentando ficar longe de mim para poderem conquistar um pouco de privacidade e cuidarem de suas famílias sem ser alvo da curiosidade dos abutres. Nunca pude conhecer, porém, os sentimentos que atraem uma pessoa para outra por muito ou pouco tempo, fazendo com que uma se torne complemento da outra. Nunca tive um relacionamento afetivo mais profundo do que o amor de meus pais ou o carinho de um ou outro colega de profissão que conseguia, acima da própria curiosidade, ver o humano que haveria por detrás de meu rosto verde.
Resolvi ter um filho, esperei pela primeira menstruação até os 18 anos, escolheria um dos homens que desejavam passar algumas horas comigo para saber se era bom estar com um ser tão absurdamente anormal, para vangloriar-se de ter dormido com mulheres de todo tipo, até mesmo uma totalmente verde. A menstruação não veio nunca, soube-me estéril. Jamais poderia saber se um filho meu seria verde ou normal e, pensando melhor, algum tempo depois, alegrei-me pelo fracasso, afinal, eu não queria ser responsável voluntária pela existência de outra pessoa que pudesse ser tão privada de vida particular como eu.
Cheguei a ter amigos que se portaram de forma nobre, tentando tratar-me apenas como um ser humano, mas ninguém conseguiu amar-me verdadeiramente porque algumas pessoas são até capazes de amar um ser bastante diferente, mas ninguém tem a capacidade de amar um ser que parece pertencer a outra espécie. Passei a vida em laboratórios. Sendo estudada e estudando vi os dias se arrastarem, ao menos de uma coisa eu estava livre, ao contrário de todos os seres humanos: a vaidade não me era lícita, não havia nenhum motivo para que eu tentasse chamar a atenção das pessoas, esta sempre foi minha, ironicamente.
Por essa razão não me chamaram muito a atenção os dias que passavam, exceto quando notava em outras pessoas os sinais, tão visíveis, de envelhecimento e, mais tarde, quando comecei a ver muitas pessoas que conheci morrendo de morte natural. Percebia raramente os sinais que o tempo fazia em meu próprio corpo e nenhuma vez esses sinais me foram muito incômodos. Nós, as mulheres verdes, não tememos a morte.
Hoje sou uma velha verde. Continuo a fazer meus estudos, a desenvolver minhas pesquisas mas, ao contrário de muitos dos meus colegas, nunca pude dar aulas ou palestras sobre meus conhecimentos: os alunos, ou os ouvintes, prestariam muito mais atenção à minha cor verde do que a qualquer coisa que eu estivesse dizendo. Alguns cientistas, ao ver-me, mentalmente esfregam as mãos: está chegando o dia em que poderão me fatiar como uma mortadela para encontrar a latinha de tinta verde que me coloriu durante quase um século.
Acho que não encontrarão nada, penso que essa tintura verde foi apenas uma piada do TP com o intuito de mostrar aos homens que Ele tem o direito de usar qualquer tinta que queira sem alterar em absolutamente nada a essência de sua criação. E eles, como sempre, não entenderam a piada e não entenderão jamais.
Quando me perguntaram, em um dos muito programas de televisão aos quais sempre fui chamada, se tive uma vida feliz, enumerei meus sucessos científicos e, demagogicamente, concluí que valeu a pena; mas, perguntando apenas eu, para mim mesma, teria que dizer que passar uma vida como curiosidade, excluída do convívio humano normal, torna uma pessoa hermética ao conceito de felicidade. Não, não fui feliz. Não, não fui infeliz. Apenas dei meu Show, como todo mundo. A diferença é que o meu teve um número muito maior de espectadores.