Meu nome é Luz. Eu sou uma abstração. Nasci Livre. Não conheci os Frágeis. Nem minha mãe os conheceu. Eles deixaram de existir nos tempos da infância de minha avó. Nasci em uma antiga fábrica de automóveis que continuava sendo uma fábrica de automóvel para nós, mas que era também residência. Na fábrica onde nasci moravam e trabalhavam treze pessoas e produzíamos dois carros por ano. Quando os dois carros ficavam prontos nós organizávamos uma festa. Exceto os passeios fora dos limites da cidade, por muito tempo aquelas festas foram o maior acontecimento da minha vida; melhor até do que o Dia da Limpeza que era um dia em que todos saíamos às ruas limpando, consertando, pintando e enfeitando a cidade onde vivíamos. Enquanto trabalhávamos, cantávamos, conversávamos, brincávamos e éramos felizes com o grande grupo de pessoas que formavam as várias famílias que moravam nas fábricas, nas igrejas, nas escolas, nas vilas...
II
E eram dois deuses. Havia o deus que o homem criou à sua imagem e semelhança e havia o deus que não existe. O primeiro deus criou o mundo em seis dias, olhou e achou que tudo era bom. O deus que não existe não conseguia olhar tudo de uma vez e foi olhando aos poucos. Foi ouvindo aos poucos, foi sentindo aos poucos. Aos poucos, o deus que não existe descobriu que o mundo criado pelo deus que o homem criou à sua imagem e semelhança não era, na verdade, bom. Então o deus que não existe ficou triste e enojado, mas não pensou em criar um outro mundo porque para isso ele teria de destruir o primeiro, e o deus que não existe achava que o deus que o homem criou à sua imagem e semelhança já tinha destruído muito e muitas coisas e muitas vezes desde que, criado pelo homem, resolveu criar o mundo. Além disso, o deus que não existe não só não gosta de destruir como acha que é justamente a destruição uma das coisas mais tristes e feias que existem no mundo criado pelo deus que o homem criou à sua imagem e semelhança. Então o deus que não existe fez com que a partir daquele dia as crianças nascessem diferentes. E o milagre da vida passou a ser um milagre mesmo.
III
Não sei quem era o meu pai biológico, só posso excluir dois dentre os que me criaram, os dois não dormiam com mulheres; muito pequena pude perceber que eles se amavam e dormiam juntos, talvez ainda hoje se amem e durmam juntos como naquele tempo. O amor deles era algo que sempre me tocou e que desde que tive consciência dele sempre desejei pra mim. Tinha outro pai no grupo cuja possibilidade de ser meu pai biológico era remota, ele dormia com mulheres, mas até onde eu soube dormia apenas com uma mulher, e essa não era Jan, minha mãe.
Como praticamente todas as crianças Livres nascidas depois do fim dos Frágeis, também não tive irmãos. Crianças quase sempre foram raras entre os Livres, exceto nos primeiros tempos. Fui muito amada e cuidada, como todas as crianças Livres são. Pela própria raridade, e também pela personalidade das pessoas, as crianças tinham todo o carinho e atenção de que se poderiam precisar e talvez até mais amor do que poderiam querer. O amor que tive vinha principalmente da minha família, uma família grande como eram quase todas as famílias Livres da cidade onde nasci. Todos os homens que viveram comigo naqueles primeiros anos eram igualmente meus pais, todas as mulheres eram igualmente minhas mães. Só sabia que tinha nascido de Jan porque me contavam sempre detalhes do meu nascimento e da gravidez de Jan, caso ninguém me tivesse falado dessas coisas acho que também não saberia quem era minha mãe biológica. Nenhum deles se preocupava com isso, eu também não.
IV
O primeiro médico que tirou de dentro de uma mulher uma criança com o umbigo já perfeitamente curado como só costumava ser até aquele momento o umbigo de crianças que já nasceram há muitos dias ficou espantado e não entendeu como aquela criança havia permanecido sem ligação com a mãe durante todo o tempo que é necessário para cicatrizar o umbigo de uma criança. Como ele havia respirado e se alimentado sem estar ligado à mãe através do cordão umbilical? Vendo que a criança não chorava e olhava a seu redor com olhos curiosos e aparência perfeitamente saudável, o médico chegou a pensar que faria daquele parto um marco em sua vida. Examinou a criança e já estava em sua sala sonhando com a fama que aquele parto tão incomum lhe daria quando um colega entrou com ar incrédulo e contou-lhe que havia acabado de realizar um parto em que a criança tinha o umbigo cicatrizado, não chorara ao nascer, estava perfeitamente bem de saúde e olhava tudo a seu redor com olhos curiosos e inteligentes.
Aquele médico não sabia e nem tinha como saber disso naquele momento, mas quando, dali a alguns anos, essa criança, que era uma menina, fosse ter ela mesma seu primeiro e único filho, este seria tirado de sua barriga com muito menos esforço porque ela, então mãe, saberia que poderia simplesmente tirar de dentro de si a criança puxando-a suavemente pelos pezinhos; seu filho atravessaria então sua pele sem esforço e ela não teria que se dilatar ou que se deixar cortar. Se alguém dissesse isso ao médico agora, ele diria que essa pessoa está louca, e se pudesse vislumbrar esse parto, ele não o chamaria de parto mas sim de mágica.
V
Tive um amigo e logo que saí do berço nós nos tornamos inseparáveis. Ele se chama Hugo e é filho da família que morava na galeria. Da mesma forma que nós morávamos em uma fábrica de automóvel e produzíamos carros, Hugo e sua família moravam em uma galeria e produziam e expunham obras de arte. Eu adorava ficar com eles e aprender técnicas de criação, da mesma forma que adorava aprender com minha família a produzir carros. Hugo tinha paixão por estrelas, eu tinha paixão por animas; Hugo tinha paixão por mim, eu tinha paixão por Hugo. O resultado dessa equação foi que me apaixonei pelas estrelas e Hugo apaixonou-se pelos animais.
Assim que crescemos e nos amamos a ponto de ir embora da galeria e da fábrica tivemos que escolher um lugar para onde ir. Escolhemos o lado de fora para ficarmos longe, porém a uma distância segura, de nossas famílias. E porque tínhamos que escolher uma de nossas duas paixões; ficamos com os animais. Nos juntamos a uma família de biólogos e aprendemos a estudar não só os animais com os quais convivíamos mas também como eram os animais nos tempos dos Frágeis. Nos horrorizamos juntos com o terror da Cadeia Alimentar e nos encantamos juntos com a amizade e o carinho de todos os animais com os quais dividimos nosso espaço, nossos sucos, nossa casa, nossas vidas. Aprendemos a correr como os leões, a apostar corrida com as gazelas sem nunca vencer e a quase sentir as cócegas que as formigas faziam nos tamanduás quando eles enfiavam suas longas línguas nos formigueiros e estremeciam de prazer enquanto elas saíam festeiras de entre seus pelos.
O melhor de ser Livre e o mais terrível de ser Frágil é o tempo que se tem para aprender. Sempre me pareceu torturante a idéia de não ter tempo para conhecer algo pelo qual se tem algum interesse. Saber que os Frágeis nunca podiam acumular muitos conhecimentos sempre foi o que neles mais me causou pena. Eu e Hugo aprendemos a produzir carros, a criar e expor obras de arte, a conhecer e conviver com animais; e aprenderíamos muitas outras coisas ainda antes de nos separarmos. Nós conseguimos ler uma quantidade de livros que nenhum Frágil poderia jamais ter lido e quando resolvemos conhecer a Terra, viajamos por muitos lugares e paramos para aprender muitas coisas; nenhum Frágil teria como ter viajado tanto, a não ser talvez sem parar tempo suficiente para conhecer os lugares; essa era a maneira deles fazerem o que chamavam de turismo.
VI
Demorou pouco tempo para que se soubesse que as crianças não nasciam mais como eram as crianças que haviam nascido até aquele dia, e demorou só um pouco de tempo a mais para que os veterinários e criadores dessem a informação de que o mesmo que acontecia com as crianças, acontecia também com os animais. Gatinhos, cachorrinhos, tigres e macaquinhos saiam de suas mães como se já estivessem sem a ligação do cordão umbilical há muitos dias. Começou-se a pesquisar todos os seres vivos e aos poucos os jornais, as revistas, a internet e as emissoras de televisão e rádio começaram a noticiar coisas que deixavam as pessoas estarrecidas e que elas teriam muita dificuldade para acreditar se cada uma delas não estivesse de uma forma ou de outra presenciando esses fenômenos em seu dia a dia. Não há como dar uma ordem fiel às notícias porque cada publicação, cada programa tinha uma coisa nova a dizer e a avalanche atordoava as pessoas a ponto de não saberem mais se tinham lido, escutado ou presenciado o que cada novidade continha.
VII
Em alguns pontos da terra onde a altura tornava isso mais adequado, havia famílias que estudavam estrelas, um dia eu e Hugo nos unimos a uma delas. Aprendemos tudo que se pode aprender a respeito do universo e de como os Frágeis viam o universo; e foi lá que Hugo conheceu Lila. Eles se amaram de uma forma que eu e Hugo jamais nos amamos; fiquei muito feliz por ele, amei Lila como uma irmã e fiquei na montanha até quando o céu começou a me chamar de forma inquestionável e urgente. Quando parti foi a primeira vez que o fiz sozinha.
Voltei à fábrica de automóvel da minha família e contei a eles o que queria. Eles se entusiasmaram muito e começamos a trabalhar na minha nave. A produção dos dois carros por ano teve sua festa de comemoração atrasada por vários meses durante os próximos cinco anos, mas terminamos e eu pude partir deixando minha antiga família, de cujos membros originais só três ainda faziam parte, acenando alegremente um adeus talvez eterno.
VIII
Resumindo um pouco e da melhor maneira que se pode colocar, o fato é que se descobriu que os nascimentos estranhos eram bem mais estranhos do que se pensara a princípio. Todos os seres vivos nascidos a partir daquele dia eram completamente diferentes dos seus genitores em muitos aspectos, e isso não era verdade apenas no caso dos mamíferos, valia também para os insetos, os peixes e todos os seres vivos que se foi estudando, até mesmo as plantas e os seres microscópicos. Para começar eles não precisavam comer. Os bebês mamíferos em geral mamaram o leite de suas mães, mas logo se pôde perceber que o faziam pelo prazer da proximidade do corpo que os aconchegava e não pela necessidade de alimento. Também não precisavam de água e no momento em que o primeiro criador tentou matar o primeiro filhote nascido depois da data em que tudo mudou, esse criador pensou estar louco. Era um homem acostumado a matar, o filhote foi caminhando como estava sendo conduzido para caminhar e o homem enfiou no lugar do coração o afiado instrumento de morte, a lâmina entrou no corpo do animal e de lá saiu tão limpa e clara como havia entrado. O homem não entendeu, repetiu o golpe e não obteve resultado diferente. O bichinho continuava parado e com os olhos claros e inocentes olhava para o homem que não sabia o que fazer com o seu espanto. O agricultor que encontrou, em meio aos arbustos, uma pequena cobra com toda a aparência de ser venenosa ficou parado, segurando a enxada no ar e sem saber o que pensar quando, depois de receber o golpe que teria decepado sua cabeça, a pequena serpente deslizou vagarosamente por entre as folhas arrastando seu corpo intacto. Depois de muito espanto de todo tipo e em todo lugar, soube-se que os seres vivos nascidos depois daquele dia não podiam ser feridos, cortados, queimados ou aprisionados.
IX
Meus pais e mães... eram quase todos nascidos depois do desaparecimento dos frágeis, como eu, mas uma de minhas mães, a Helena, nasceu de uma Frágil. Ela não gostava de falar a respeito, dizia que nada do que se escreveu ou se filmou daquela época era verdadeiro. Fora essa afirmação era muito difícil arrancar qualquer coisa dela. Mas, ao contrário do que pode parecer, minha mãe Helena não era uma pessoa triste, pelo contrário, era muito alegre. Ela tocava violão e gostava de música. Conhecia músicas muito antigas, compostas pelos Frágeis, algumas tristes, outras alegres. Sempre gostei muito de ouvi-la.
Mas consegui arrancar algumas coisas dela sobre os conflitos. Pouco mas consegui. A primeira vez foi quando li a palavra em uma revista antiga e perguntei a ela o que era “religião”, ela disse que era uma coisa que os Frágeis tinham mas que deixaram de ter depois que surgiram os Livres. Claro que não fiquei satisfeita com a resposta, perguntei mais e ela me contou que a simples presença dos Livres deixou de possibilitar qualquer fé. Lógico que perguntei o que era fé, ela explicou que era como os Frágeis chamavam ao ato de ter certeza de alguma coisa sem que houvesse qualquer coisa que pudesse comprovar essa certeza. Antes, disse ela, os Frágeis acreditavam que existia um ser supremo, invisível, muitíssimo poderoso e exigente - ou vários deles. Acreditavam que se fossem bons enquanto estavam vivos, quando morressem esse ser, que chamavam de vários nomes, entre eles Deus, os levaria para viver eternamente em um paraíso de delícias. E acreditavam também que se fossem maus esse mesmo ser, ou um outro ser que agia em uma espécie de parceria não muito amistosa com o primeiro, os levaria para um lugar terrível chamado Inferno, onde sofreriam por toda a eternidade. Perguntei por que o nascimento dos Livres fez com que parassem de acreditar nesses seres super poderosos e ela explicou que o que os Livres tinham parecia aos Frágeis muito melhor do que qualquer paraíso que esse Deus, ou esses deuses poderiam oferecer; além disso, a vontade enorme de destruir os Livres e de, ao mesmo tempo, ser como os Livres fez com que desistissem de ter fé nos seres sobrenaturais aos quais antes rendiam homenagens. Se continuassem acreditando teriam que aceitar que iriam para o inferno. Os Livres mataram as esperanças dos Frágeis. Ela contou também que alguns Frágeis começaram a prometer aos outros que, se fossem bons e voltassem a ter fé e render homenagens a Deus ou aos deuses, quando morressem renasceriam como Livres, mas não houve tempo para que esse novo tipo de fé criasse raízes.
Nesse dia ela parou por aí. Respondeu a todas as minhas perguntas com a promessa de que quando fosse grande eu mesma poderia descobrir as respostas de todas essas perguntas. Como percebi que ela estava ficando triste parei de perguntar. Era o que todos nós fazíamos sempre. Mas uma outra vez falávamos da Morte Voluntária e de como a imaginávamos e ela deixou escapar que houve muitas Mortes Voluntárias de Frágeis depois que os Livres começaram a nascer. Alguém, acho que foi o meu pai Leo, comentou que a Morte Voluntária era um dos nossos maiores bens. Então minha mãe Helena disse que era um bem sim quando se podia escolher sem angústia, mas que, para os Frágeis, cada um deles, ela frisou, foi terrível porque morriam sempre com dor e com medo, às vezes de si mesmos; morriam por desespero e por sentirem-se irrevogavelmente abandonados por Deus. Ela disse que o maior número de “suicídios”, que era como os Frágeis chamavam a Morte Voluntária deles, foi entre os que, antes do nascimento dos Livres, eram os religiosos mais convictos. Nós sabíamos que ela estava falando da mãe, por isso mudamos de assunto e ninguém perguntou nada.
Todos sabiam que a mãe dela morreu tentando matá-la, diziam que não foi um caso raro na época da transição, mas todos sabiam que deixava seqüelas, como não podia deixar de ser. Parece que ela, como provavelmente várias mãe antes e depois dela até que se acabassem os Frágeis, tentou um método de destruição que não sabia de ninguém que houvesse tentado. Não sei qual foi. Ninguém tinha coragem de perguntar.
X
Estudiosos explicaram que esses novos seres; que começaram a ser chamados de Imortais por alguns, de Highlanders por outros, de Mutantes por mais alguns e de outros nomes do tipo em diferentes lugares e em diferentes línguas e que ao final foram chamados por eles mesmos e ficaram sendo para sempre chamados de Livres; parece que tinham a faculdade de permitir que os átomos que compunham seus corpos deixassem espaço para a passagem dos átomos que compunham outros corpos, vivos ou não. Muito se aprendeu sobre os átomos e as moléculas graças a essas explicações. Revistas e livros foram publicados colocando em linguagem acessível a noção científica de vazio. O que as pessoas comuns ficaram sabendo no final de tudo foi mais ou menos que todos os seres, vivos e inanimados, são compostos de átomos, que esses átomos não são corpos sólidos e densos, que entre os átomos e entre as partículas que compõem os átomos existem espaços vazios proporcionalmente imensos. Com essa explicação simplificada ao máximo, começou-se a entender que esses espaços vazios dos corpos estavam agora permitindo a passagem de partes de corpos diferentes. No final de tudo viu-se os seres como um aglomerado de substâncias que se juntam como se juntam as partículas de água no céu; que formam nuvens, que podem adquirir variadas formas mas que podem ser varadas sem dificuldade por um avião, um pipa, um pássaro e até um pico de morro mais alto. Uma discussão interessante e acalorada que dividiu opiniões e rendeu muitas publicações e programas especiais de televisão foi se os novos seres quebravam ou não a lei da física chamada Princípio da Exclusão de Pauli, segundo a qual dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo.
O fato é que não sentiam dor, não podiam ser mortos por nenhum tipo de arma porque qualquer objeto, incluindo o fogo e a água, atravessava seus corpos sem causar danos, e não podiam ser aprisionados porque assim como os corpos podiam atravessá-los, eles podiam atravessar os corpos. Mas não eram exibicionistas, nunca faziam essa “mágica” de atravessar ou ser atravessado se não fosse por necessidade. Fizeram mais “apresentações” desses dotes enquanto existiam os Frágeis; e para salvá-los de perigos em que se envolviam; do que o fariam durante toda a vida, mesmo aqueles que viviam centenas de anos, depois do fim dos Frágeis.
XI
Nasci quando já não existia dor, os Frágeis nasciam chorando, nós nascemos olhando para todos os lados; parece que a curiosidade nasce antes da gente na gente. Não nascem muitas crianças depois dos Frágeis, por isso o nascimento é sempre um acontecimento festivo; quando está chegando a hora de o bebê nascer, todos os vizinhos vêm se reunir à família e ficam esperando. Assim que nasce, a criança passa de mão em mão para que todos a vejam, a sintam, a amem; só depois ela é colocada sobre a cama da mãe e deixada em paz para que durma.
Como toda criança Livre, dormi boa parte das horas do dia durante vários meses. Parece que os bebes precisam de muita paz e muito sono para crescer e começar a compreender um pouco do que vê e do que é. Jan dormiu no mesmo quarto comigo enquanto fui um bebê; todos continuaram com a produção da fábrica quase no mesmo ritmo, eu deixava muito tempo para que eles montassem motores e pintassem peças metálicas a que davam o formato que definiram na grande mesa do salão. Lembro tão bem dessa mesa! Era enorme e nunca a vi sem que sobre ela houvesse papéis, grandes e pequenos, contendo letras, desenhos gráficos. No começo eu não entendia nada, é claro, mas com o tempo aprendi a ler muito bem todos aqueles papéis, e aprendi que, ao contrário do que pensava quando criança, os papéis não eram os mesmos o tempo todo. Minha mãe Jan fazia parte daquele grupo há muitos anos e já tinha criado com eles o vínculo necessário para que os carros que fabricavam tivessem boa aceitação. Eles criavam, como já contei, dois carros por ano e esse era um bom número para um grupo de treze pessoas.
XII
Logo se começou a denunciar com manchetes alarmantes o problema da superpopulação de todos os seres vivos do planeta. Havia uma catástrofe de imensas proporções à vista, o que se poderia fazer quanto a isso? Muita gente começou a tentar métodos sofisticados a fim de descobrir como matar os Livres. Ninguém mais falou em espécies em extinção; o que há tão pouco tempo era a grande preocupação de muitos biólogos, naturalistas e outros apaixonados pela natureza, simplesmente deixou de ser assunto. Não havia mais risco de extinção, o perigo agora era justamente oposto. As pessoas começaram a perceber que como os Livres eram seres diferentes dos Frágeis e, como não nasciam mais Frágeis, estes é que estavam por extinguir-se. Teria começado uma amostra de brutalidade inusitada entre os homens se não se descobrisse logo depois que os nascimentos diminuíam drasticamente.
Parece que o deus que não existe reservou para si a tarefa de controlar o número de habitantes do mundo criado pelo deus que o homem criou à sua imagem e semelhança. Nunca habitantes demais a ponto de a “casa” ficar desconfortável, nunca habitantes de menos a pontos de pessoas, animais ou plantas morrerem de solidão. O deus que não existe tornou-se o maestro da existência...
XIII
No tempo dos Frágeis a fábrica era o lugar onde muitos deles trabalhavam em troca de dinheiro, nem sempre suficiente para sustentar a vida deles mesmos e de seus dependentes. Todos os dias centenas de pessoas passavam boa parte das horas do dia dedicadas apenas a uma pequena parte da produção de carros cujo funcionamento muitos não compreendiam, de cujas etapas de construção poucos tinham uma noção exata e cuja posse poucos alcançariam. A noção de trabalho, de dependência, de sustentar no sentido de alimentar, vestir e educar outras pessoas foi algo que só compreendi razoavelmente depois de estudar muito os livros e filmes antigos. Algumas pessoas dedicam seu tempo, durante muitos anos, exclusivamente a esses estudos, publicam livros e produzem todo tipo de arte retratando, divulgando e reproduzindo suas descobertas. Foi graças também a esses livros, filmes e às galerias de arte que eu, como apreciadora curiosa, aprendi muito sobre a vida dos Frágeis. Esse foi o meu hobby mais duradouro, cheguei a pensar em um dia, quando resolvesse me mudar da Fábrica, procurar um grupo desses para estudar os Frágeis e a vida que levavam. Mas eu gostava de criar e produzir carros, fui ficando e a vontade foi sendo adiada, sem nunca deixar de ser um hobby a que me dediquei com paixão.
Muito mais tarde, quando me juntei a um grupo de antropólogos e passei vários anos estudando os Frágeis e suas vidas, o que mais me tomou tempo e atenção foi o estudo de suas mitologias. Foi apaixonante estudar toda a gama de deuses, semideuses, seres mágicos e fantásticos de todos os tipos e os contos, histórias, fábulas e livros que produziram falando de toda essa criação de suas mentes férteis. As mitologias dos Frágeis quase sempre começavam como religião, eram seres e histórias em que eles, ou um grupo deles, acreditavam realmente; até que o tempo, as guerras, as misturas entre povos e crenças diferentes, acabavam por fazer com que aqueles seres e aquelas histórias fossem substituídos por outros, então os novos passavam a ser religião enquanto os antigos eram “rebaixados” à qualidade de mitologia. Algumas mitologias demoravam-se séculos como religião, outras duravam menos. As últimas que tiveram e que abandonaram quando os Livres começaram a nascer nem sequer chegaram a ser estudadas como mitologias a não ser esporadicamente por uns poucos Frágeis ateus e, mais tarde, pelos Livres que, como eu, não viam exatamente onde estava a diferença que os Frágeis costumavam colocar entre mitologia e religião.
XIV
Antes de aprender que podia sair do berço quando quisesse, eu ficava onde me colocavam, olhando para meus pais e minhas mães enquanto trabalhavam na enorme mesa do salão central ou em alguma das bancadas de montagem. Nunca na sala de pintura porque eles não tinham como saber se o cheiro de tinta me desagradaria ou não. Não desagradava. Também não deixavam meu berço ou minha cadeira na sala de soldas porque não sabiam se a luminosidade excessiva da solda poderia incomodar meus olhos. Não incomodava. Algumas pessoas não gostavam dessas coisas e não poderiam fabricar carros a não ser que quisessem muito e aprendessem a conviver com o desconforto. Ainda bem que não tive essas sensibilidades, mesmo a fundição com sua luminosidade, cheiro e calor extremos nunca me incomodou. Talvez nem tivesse saído da terra se fosse sensível à solda e ao cheiro de tinta. Não valeria a pena aprender a fabricar carros; afinal, haveria sempre muitas coisas que fazer e aprender!
Meus pais, além de minha mãe Jan, eram: minha mãe Clara, minha mãe Inês e meu pai Enzo, os papais alquimistas que adoravam descobrir novos sabores de sucos e formatos e cores de doces. Senti muitas vezes a saudade dos sucos e doces deles depois que saí da Fábrica. E tinha minha mãe Helena e meu pai Xande; os dois fizeram parte da família de uma tecelagem antes de morar na Fábrica, então criavam roupas lindas para mim. Eu adorava as roupas e eles adoravam que eu as usasse. Minha mãe Jan dizia que eles me vestiam com o mesmo entusiasmo com que as crianças Frágeis vestiam suas bonecas, que eram fabricadas aos milhões e que vinham com roupinhas que as meninas Frágeis trocavam o tempo todo e que alguns chegavam a colecionar. Meu pai Ed e meu pai Rick eram os “papais professores”, estavam o tempo todo ensinando coisas e mostrando como funcionavam os objetos mais variados que me apresentavam; minha mãe Ana era, de acordo com minha mãe Jan, meu “meio de transporte”, ela tinha o hábito de fazer longas caminhadas à tarde e sempre me levava com ela. Eu amava aqueles passeios! Meu pai Ed e meu pai Rick traziam o mundo e o mostravam pra mim, minha mãe Ana me levava ao mundo e me mostrava a ele. Minha mãe Mariana gostava de criar brinquedos que deixava no meu berço, na minha cama, no meu armário de livros, ela era muito boa nisso, tive brinquedos maravilhosos! Era engraçado como ela ficava, de longe e fazendo de conta que não estava vendo, esperando o momento em que eu descobria o brinquedo novo. Meu pai Bruno e minha mãe Iza participavam de tudo na minha vida. Brincavam, faziam sucos e doces, traziam roupas e chapéus, mostravam coisas diferentes que descobriam sabe-se lá onde. Meu pai Leo era um crianção! Era o mais jovem dos meus pais e o que se comportava de forma mais infantil, eu adorava as brincadeiras malucas, as piadas e as palhaçadas dele! Enfim, estavam sempre prontos a me ter por perto; ficávamos muito fora da Fábrica, tomando sol, nadando, fazendo arranjos de flores de papel, pano e outras substâncias que nem sempre eu conseguia identificar, sempre falavam comigo sobre tudo. Ah, eu adorava a companhia de cada um dos meus pais! Tive uma infância muito, muito feliz!.
XV
A princípio apenas uma ou outra pessoa notou que não era mais comum encontrar cardumes nos rios e mares, nuvens de aves ou de insetos na terra. Alguém, provavelmente um veterinário, percebeu que nenhum animal dava cria a mais de um filhote. Percebeu-se também que não nasciam mais gêmeos e que a atividade nas maternidades estava diminuindo muitíssimo. Um dia um hospital não teve nenhum parto, depois outro hospital e aos poucos não se via partos com muita freqüência. O pavor da superpopulação se extinguiu tão rapidamente como começara e outro medo, mais sutil e mais corrosivo começou a surgir com toda a força com que esse tipo de medo sempre surge: o medo do diferente, a inveja, a não-compreensão que já tantas vezes em nossa história tem feito surgir o preconceito.
E os lindos bebês que nasceram sem chorar já não eram vistos com tanta boa vontade, em geral somente seus pais os amavam, as demais pessoas os temiam e evitavam sua proximidade. Muitas crises de depressão a mais do que o normal foram tratadas, muito mais livros foram publicados explicando muito bem para os Frágeis o quanto o curso natural da vida é bom, como nosso corpo é apenas uma moradia temporária, que depois disso teremos uma existência maravilhosa aí sim, eterna e livre. As igrejas do deus que o homem criou à sua imagem e semelhança ficaram cheias. Multidões de fiéis agradeciam a ele por sua mortalidade, mesmo que, no fundo e em silêncio, estivessem fazendo uma prece muito intensa para que o deus que o homem criou à sua imagem e semelhança fizesse o milagre de os tornar iguais aos Livres.
Só mais tarde desistiram de suas orações, de seus deuses e de suas igrejas, templos, mesquitas e sinagogas. Desistiram de suas peregrinações, de suas promessas, de seus fervores e de suas certezas de serem cada qual o dono da verdade única pela qual davam a vida, não queriam mais dar a vida por nada... Quanto mais a vontade de exterminar os imortais crescia, quanto mais, junto com essa vontade crescia a impotência diante de seres que não podiam combater e que não aceitavam combate, mais deixavam abandonadas suas igrejas, seus altares seus livros de orações.
XVI
Pelo que li as crianças Frágeis nasciam chorando. Estavam ligadas ao corpo de suas mães pelo cordão umbilical até depois do nascimento, era por onde respiravam e se alimentavam enquanto estavam no ventre. Os Frágeis não conseguiam viver sem ar e sem alimento, então, quando saíam do ventre das mães, o cordão era cortado e eles começavam a respirar sozinhos; os livros diziam que a primeira golfada de ar que absorviam entrava no corpo de forma muito dolorosa, então eles choravam. As mães também sofriam muito, pois a criança era tirada de dentro dela com muito esforço e, às vezes, era necessário fazer um buraco na barriga delas para que o bebê nascesse. Era possível, e muito dolorido diziam, fazer buracos nos Frágeis.
Parece que quando começaram a surgir os Livres, os Frágeis tiveram problemas com os animais que, ao contrário dos animais Frágeis, podiam ir onde quisessem e invadiam suas casas, seus quartos, suas despensas, então eles cercaram as cidades com eletricidade e freqüências sonoras muito altas; os animais sentiram o desconforto e fugiram. Desde então para ter contato com animais passou a ser necessário ir a lugares onde não tinha a proteção. Como já era assim quando nasci, sempre me pareceu natural, mas imagino como seria a mesa grande da Fábrica se os animais todos perambulassem livremente por todos os lados, e esse seria apenas um dos inconvenientes possíveis!
Consegui ler e estudar muito a respeito de como foi a convivência dos Frágeis com os Livres desde o começo até que todos os Frágeis morressem, mas como minha mãe Helena sempre disse que tudo o que se lia ou via a respeito daqueles tempos era mentira, nunca senti que tenha conseguido saber tudo, consigo saber algumas coisas e imaginar outras, apenas. Penso, por exemplo, que não poderia haver um ódio generalizado contra os Livres, afinal todos eles eram filhos de algum Frágil. Então, suponho que alguns, ou muitos Frágeis fizeram de tudo para amar e proteger seus filhos. Acho que nem todos agiram como agiu a mãe da minha mãe Helena. Imagino também que houve muitas tentativas de entender e, consequentemente, de reproduzir de forma artificial o que estava acontecendo. Acho que muitos frágeis morreram em experiências desastradas na tentativa de se tornar um Livre, ou de, pelo menos, ter algumas das características dos Livres; e imagino que o não envelhecimento tenha sido a característica mais buscada. Li algumas coisas a respeito disso tudo, completei na minha imaginação o “colorido” do que provavelmente aconteceu. Foram, seguramente, tempos difíceis. Mas os primeiros Livres fizeram tudo para ajudar os Frágeis: Trabalharam arduamente em pesquisas de todo tipo, expuseram-se a situações que teriam sido de perigo para os Frágeis, submeteram-se sempre, na medida do possível e com a maior boa vontade a todo tipo de pesquisa que tentaram desenvolver. Li uma vez que até mesmo os animais, não todos mas muitos deles, deixaram-se ficar nos laboratórios para que pudessem ser estudados pelos cientistas.
XVII
Os homens começaram a perceber e depois comprovaram que os Livres não eram na verdade imortais. Depois de esgotarem as possibilidades de destruir esses seres (a maioria das tentativas foram feitas com animais, mas não todas), começaram a encontrar animais mortos. Era apenas um ou outro mosquito, uma ou outra formiga e até alguns pássaros. O problema é que, pela raridade da ocorrência, foi um pouco difícil comprovar que os mortos eram seres nascidos depois daquela data; quando alguém afirmava ter visto, por exemplo, uma mosca morta, outras pessoas duvidavam da veracidade da informação e, mesmo que mostrassem o inseto, muitos diziam que era guardado de antes daquele dia. Animais mortos que tivessem nascido depois daquele dia tomaram o lugar dos OVNIs: muito vistos, muito fotografados, mas de pouca credibilidade. Puderam, enfim, acreditar quando morreu um camundongo em um laboratório. Aquele animal seguramente tinha nascido depois da data, tinha se tornado inútil para os estudos normais de laboratório porque não se podia inoculá-lo com nenhum tipo de vírus, remédio, bactéria, veneno ou qualquer outra substância que seu corpo pouco depois expulsava o preparado em forma de gotas que, como suor, saiam por sua pele. Conseguiram conservar o pequeno rato no laboratório dando a ele tudo o que pudessem pensar que o agradaria, sua gaiola ficou tão atraente que, embora pudesse atravessar as grades e a parede e fugir para onde quisesse, o pequeno ratinho dava apenas alguns pequenos passeios pelo laboratório e voltava para o seu ninho familiar, os cientistas o queriam para tentar estudar justamente a sua condição de imortal, mas um dia alguém o encontrou morto em sua gaiola. O fato foi anunciado e levado aos jornais, logo outros fatos, bastante raros mas convincentes, vieram confirmar que os imortais na verdade não eram imortais.
As poucas mortes serviram também para que, estudando os cadáveres, os cientistas ficassem novamente frustrados. Não havia absolutamente nada no cadáver de um Livre que fosse diferente do que se poderia encontrar no cadáver de um Frágil de excelente saúde.
XVIII
Apesar de todos os tipos de reações, muitas delas nada amistosas aos Livres, eles não fugiram do convívio dos Frágeis nos primeiros tempos. Não fugiram, e até onde sei, assim que tiveram consciência do perigo, os Livres começaram a trabalhar ativamente para evitar que os Frágeis morressem de fome. Houve um alarme muito urgente que previa a morte da grande maioria dos Frágeis por inanição. Os animais não poderiam mais ser abatidos, então não haveria mais carne, as plantas não poderiam mais ser cortadas, então não haveria mais plantações; a conseqüência natural disso seria um desastre sem precedentes, como afirmava a imprensa alarmista. Os Livres foram então procurar alimento em todos os lugares. Traziam folhas e frutos, porque as plantas forneciam sempre o que tinham em excesso, bastava saber o que pegar; traziam leite, mel e algas, que conseguiam buscar até nos lugares onde os Frágeis não conseguiam ir; e, mais tarde, processavam em laboratórios todo tipo de alimento para que nenhum Frágil sentisse fome. Por muito tempo nenhum Livre comeu nada, mas o que dizem os livros é que não houve morte por inanição, ao contrário do que acontecia em lugares mais pobres do planeta antes da vinda dos Livres, e, por causa do fim do parasitismo, a maioria das doenças desapareceu. A velhice, com a falência física decorrente dela, e o câncer, este último cada vez mais esporádico, além da violência da qual não conseguiam se livrar, mataram os Frágeis.
XIX
Mas como morriam? De quê? Qual a doença, o sintoma, o veneno, o tempo? Tudo ficava sem respostas e demorou ainda alguns anos para se descobrir que os Livres morriam quando queriam morrer. E isso só se soube quando morreu o primeiro jovem que sofreu uma grande desilusão amorosa. Não disseram se foi um rapaz ou uma moça, soube-se apenas que esse jovem desejou morrer, deitou-se em sua cama e morreu silenciosa e calmamente, com olhos fechados e expressão de profunda amargura. Dizem que deixou um bilhete explicando que não queria viver sem aquele amor e não queria esquecer aquela pessoa que tanta paixão lhe inspirara. A identidade de uma pessoa menor de idade foi preservada, mas, conversando com seus filhos, muitas mães e pais ficaram sabendo que aquela criatura só estava ao lado deles porque assim o desejava.
Antes disso as crianças foram crescendo e aos poucos muito se soube a respeito delas. Muito se soube também a respeito do mortal comum; enquanto alguns revelavam seu egoísmo e sua bestialidade, outros procuravam encontrar sua tolerância, sua bondade, sua humanidade enfim. Estes olhavam para os seres diferentes como um bom professor olha para seus alunos. Sabe que eles têm um poder que está longe de sua compreensão e um caminho a percorrer iluminado por brilhos e cores que sua percepção não consegue alcançar, mas sabe também que eles são merecedores desse caminho e, mesmo cego e trôpego, ele, professor, pode estender sua mão e abrir seu sorriso para que tudo seja mais fácil nessa vida que se inicia e vai até onde ele e seu sorriso não poderão ir.
XX
A Morte Voluntária é isso: Voluntária. E não, não é traumática justamente pelo fato de ser o que é: Voluntária. Alguém quer morrer porque está cansado, porque não tem disposição para continuar fazendo coisas, não tem vontade de aprender nada, não quer e não sente prazer em criar nada nem em participar de alguma família. Então a pessoa simplesmente morre. Geralmente acontece esse cansaço quando a pessoa já viveu bastante, só que essa noção de bastante varia conforme a pessoa. Sei de gente que nasceu depois de mim e que já morreu, outros que vieram muito antes de mim podem ainda estar vivos. Quando alguém não tem o que os Frágeis chamavam de “sede de saber” geralmente morre primeiro. Estou aqui ainda porque sempre tive muita sede.
Mas a Morte Voluntária já chegou a ser dolorida, com certeza. Pelo que li e pensei a respeito, completando as lacunas, dentre os primeiros adolescentes Livres – essa é a fase mais difícil da vida de alguém -, muitos morreram porque ficaram tristes. As razões podem ser várias: Tristeza por sentir-se rejeitado pela família Frágil a que pertencia foi seguramente o principal motivo; tristeza por perder um ser amado que, por ser Frágil, envelhecia e morria; tristeza por amar e não ter esse amor correspondido. Essa última razão me parece a mais sem sentido, afinal, depois dos Frágeis, ou logo depois, ela desapareceu. Minha teoria é que os sofrimentos dos Frágeis abalavam muito os primeiros Livres e estes se deixavam dominar pelas mesmas fraquezas emocionais que aqueles tinham.
Nunca soube que houvesse alguma espécie de cerimônia de despedida quando alguém resolve morrer. O que acontece normalmente é que a pessoa vai embora da família onde está, procura um lugar solitário e morre. Na verdade ninguém sabe com certeza, quando um membro da família parte, se essa pessoa vai entrar para outra família, viajar sozinha pelo mundo ou morrer. Ninguém sabe e é melhor que seja assim. Qualquer pessoa se sentiria mal por invadir a privacidade do outro perguntando alguma coisa a respeito. Quando me ausentei da minha primeira família todos sabiam que não saia para morrer porque eu estava acompanhada de Hugo e porque voltei várias vezes para visitá-los enquanto estive estudando os animais. Mas houve, por exemplo, um dia em que cheguei e não encontrei minha mãe Inês, os outros me disseram que ela tinha ido embora porque resolveu estudar os animais e as plantas marinhas. O mar mais próximo ficava longe da cidade onde estava a fábrica, minha mãe Inês não disse para que mar ia, então é possível que ela tenha resolvido morrer. Não sei se foi isso e talvez nunca venha a saber, mas não importa. O que importa é que, seja para o mar ou para a Morte Voluntária, minha mãe Inês foi embora quando e para onde quis. Isso é bom e não há o que lamentar. Ao contrário dos Frágeis, os Livres não têm nenhuma razão para lamentar a morte.
XXI
Para os pais era muito fácil educar aquelas crianças. Elas não davam preocupações sérias porque não ficavam doentes e não seriam prejudicadas pelo vício das drogas, coisa que, quando crescidos, muitos estudarão sem compreender totalmente, como estudarão sempre todos os costumes e criações das pessoas mortais por mais bizarras que essas lhes parecerem.
Elas não corriam o risco de se ferirem ou morrerem em um acidente qualquer tão comum nas infâncias e adolescências de até então; e esses pais logo perceberam que seus filhos não precisavam deles, não precisavam de ninguém e de nada, por isso não tinham ambições desmedidas, não tinham desejos pelo que pertence ao outro, não se estragariam no desespero do ter. Os pais em geral não entendiam a impermeabilidade de seus filhos às suas convicções ideológicas; eles não aceitavam um time, uma paixão patriótica, uma “verdade” pré-determinada. Na opinião de algumas pessoas, esses jovens careciam de emoções, mas a verdade é que careciam de quaisquer sentimentos que pudessem levar alguém a um prejuízo ou um dano qualquer. Não tinha nenhum sentido para um deles, por exemplo, desejar algo que outro tinha e ele não porque, fosse o objeto que fosse, ele não o tinha no momento, mas se o quisesse mesmo, poderia tê-lo mais tarde sem que isso trouxesse qualquer tipo de prejuízo.
Além disso, o que os caracterizava basicamente como diferença fundamental entre eles e os Frágeis é que eles gostavam de verdade de outras pessoas e de outros seres vivos além deles mesmos e, por gostarem não conseguiam sentir nada além de felicidade pelo outro quando esse outro possuía algo de bom. Não eram capazes de inveja e cobiça, mesmo que fossem capazes de querer.
XXII
Li bastante, quando estudei os Frágeis, sobre os problemas de convivência que eles tinham, mas esses problemas, por mais que os estudasse, sempre pareceram muito estranhos para mim e seguramente parecem muito estranhos para qualquer um dos Livres. Eles tinham alguns sentimentos horríveis sobre os quais só podemos saber pela descrição dos seus efeitos. Tinham, por exemplo, um sentimento chamado inveja: era algo que os fazia trabalhar, usando dos artifícios mais sutis, para que outros Frágeis perdessem coisas que tinham e que esses, chamados invejosos, queriam para si. Essas coisas “invejadas” poderiam ser de naturezas diversas: um trabalho, uma casa, um carro, uma personalidade que agradasse muitas pessoas, um companheiro de melhor aparência, uma posição de governo, enfim, qualquer coisa, material ou não. Esse sentimento levou a muitas brigas, a muitos assassinatos e até mesmo a guerras. Foi inclusive esse o sentimento que atingiu muitos dos Frágeis que tentaram destruir os Livres nos primeiros tempos.
Outra coisa que tinham como característica era uma incapacidade espantosa de perceber as conseqüências de muitos de seus atos. Essa incapacidade fica mais visível quando estudamos as guerras, mas fica igualmente visível quando estudamos as relações que eles tinham com as drogas, principalmente nos últimos tempos antes que começassem a nascer os Livres. Eles eram sensíveis a algumas substancias naturais ou processadas (as drogas) que, quando ingeridas em forma líquida, sólida ou gasosa fazia com que tivessem sensações variadas como sonhos, alucinações, delírios; parece que essas sensações eram extremamente agradáveis. O problema de muitas dessas substâncias é que elas eram destrutivas e eram viciantes. Então os Frágeis ficavam dependentes delas e essa dependência os levava a consumi-las em grandes quantidades até que eles morriam; e muitas vezes, quando não morriam, ou antes de chegar ao ponto de morrer, sob o poder dessas drogas e sem ter noção do que faziam, roubavam e até matavam pessoas, estranhas ou de suas próprias famílias.
Por serem prejudiciais, as drogas eram proibidas na grande maioria das comunidades, porém a proibição não significava a diminuição de consumo, o que acontecia era apenas que quem passava a vender essas substâncias eram basicamente pessoas que viviam de cometer crimes e que usavam o dinheiro que conseguiam com a venda das drogas para comprar armas e, de posse delas, roubar e matar por quaisquer razões que fossem, ligadas ou não a esse comércio, ou mesmo sem razão nenhuma. Pessoas sem nenhum tipo de envolvimento com o comércio ou o consumo de drogas eram mortas com freqüência por esses criminosos e - o que é absolutamente incompreensível - os usuários das drogas não se sentiam criminosos, não se percebiam como parte dessa cadeia macabra e, o que espanta completamente, eram até tolerados e aceitos como não criminosos pela sociedade comum e pelos governantes!
XXIII
Quando começaram a ir à escola se pôde saber como eram os Livres na convivência com outras crianças às vezes apenas algumas horas mais velhas. As crianças nascidas a partir daquele dia eram muito prestativas, carinhosas e amigas. Logo os professores perceberam que quando havia um problema com algum aluno em aula, esse aluno tinha nascido antes daquele dia. Nunca um mais novo sequer tentava agredir um coleguinha seu, mesmo com palavras, e como os mais velhos logo percebiam que não tinham como agredir os mais novos, só havia brigas e desavenças entre os mais velhos mesmo.
Os Livres eram sempre excelentes alunos como tinham sido e continuavam sendo excelentes filhos. Os problemas começaram apenas quando chegaram à adolescência. Alguns mais novos se apaixonavam por alguém mais velho e a diferença, mesmo que de poucos dias, em pouco tempo tornava-se diferença de muitos anos. Os mais velhos envelheciam, os mais jovens atingiam o pico do desenvolvimento físico e não mudavam mais de aparência. A diferença visível nos relacionamentos mistos causou, durante algum tempo, muito sofrimento emocional de ambos os lados. E, mesmo quando a paixão era entre iguais, acontecia de o romance não dar certo, podia acontecer então de o jovem, sofrendo dores de amor intensas, compreensíveis apenas por outro jovem, escrever um bilhete, deitar-se e morrer. Nesse tempo se percebeu que nascia uma pessoa quando outra morria.
XXIV
Desde crianças, os Frágeis criavam uma espécie estranha de apego a algumas coisas como famílias esportivas ou famílias religiosas, lugares ou opiniões sobre alguma coisa que fazia com que eles agredissem aqueles que se apegavam a famílias, lugares ou opiniões diferentes. Essas agressões iam desde um afastamento puro e simples até o ato de exterminar com armas os que estavam do “outro lado”. As histórias são pavorosas, as chamadas guerras deixavam até milhões de mortos e chegavam a durar décadas, sempre pelos motivos mais absurdos. A própria cor da pele causava conflitos como esses. Li histórias pavorosas sobre o relacionamento conflituoso entre os Frágeis de pele bege, que se denominavam erroneamente de brancos, os Frágeis de pele negra ou marrom, que eram genericamente chamados de negros, e os Frágeis de pele bege mais avermelhada, ou índios. Os de pele bege, nunca consegui entender bem por que motivo, nessas histórias, são os que mais frequentemente se acham superiores aos demais; em muitos escritos antigos chega a acontecer de um Frágil de pele bege tido por muito culto afirmar, como se fosse verdade cientificamente comprovada, a superioridade das pessoas de pele bege; e como muitos outros Frágeis de pele bege concordavam com esse “fato científico” porque era vantajoso para eles, claro, tentavam e muitas vezes conseguiam, fazer com que os próprios Frágeis de pele negra ou marrom ou os Frágeis de pele bege mais avermelhada acreditassem que eram mesmo inferiores e trabalhassem como escravos para os Frágeis de pele bege. Aqueles que não aceitavam eram coagidos pela violência. As histórias são tão horríveis quanto incompreensíveis!
XXV
Quando o primeiro jovem se deixou morrer já tinha acontecido a revolução na medicina; essa revolução foi, primeiro, uma verdadeira fuga de candidatos às vagas na área oferecidas pelas faculdades e, depois, uma verdadeira corrida dos obstetras para outras áreas onde pudessem atuar. Já não existia maternidade e quando se constatou a gravidez de uma jovem em uma cidadezinha do Canadá a notícia saiu em todos os jornais, como tinha saído em todos os jornais semanas atrás a notícia da morte de mais um ser humano dentre os considerados até então imortais. A coincidência nascimento-morte só foi assumida como fato depois de quase duas dezenas de casos e foi de uma regularidade a toda prova durante muito tempo. Só depois do desaparecimento dos Frágeis essa regularidade “um por um” deixou de existir, houve um pequeno “baby boom” e em seguida o estabelecimento de uma regularidade não muito bem percebida porque ninguém se deu ao trabalho de pesquisar. Os Livres, ao contrário dos Frágeis, não eram alarmistas. O que aconteceu na verdade foi que o planeta tornou-se o que se poderia chamar de “um lugar agradavelmente povoado”. Todos os habitantes tinham como escolher tanto a solidão e isolamento total quanto a convivência em famílias numerosas e sem relação sanguínea obrigatória.
XXVI
Não temos tantos dos sentimentos que os Frágeis tinham! Eles se matavam porque, por exemplo, o time de futebol de camisa vermelha ganhava o campeonato daquele ano em um jogo com o time de futebol de camisa azul. Então, os que acreditavam que o time de camisa vermelha era melhor encontravam os que acreditavam que o time de camisa azul era melhor e eles começavam a trocar palavras e expressões negativas quanto ao outro time e quanto aos que acreditavam que o outro time era melhor. Eles se “ofendiam” mutuamente e começavam a trocar socos e chutes até que alguém pegava uma arma não se sabe onde e feria outro, e outra arma surgia e feria mais um, e eles se embolavam de forma incompreensível até que chegavam os policiais, que eram os Frágeis responsáveis por manter leis à força, e separavam com muita dificuldade os dois grupos. Algumas horas depois via-se no país inteiro a notícia de que no conflito duas pessoas morreram e dez ficaram muito feridas. Esse tipo de coisa era muito comum.
Já participei de uma família esportista e é claro que não havia nada parecido com isso. Nós disputávamos partidas e depois nos sentávamos todos juntos para analisar o resultado e ver onde cada um dos times mais acertou ou mais errou, esse encontro e essa conversa depois do jogo era o que tornava o jogo em si mais agradável e válido. Também já fui, com alguns membros de algumas famílias das quais fui parte, a estádios ver jogos; sempre, depois do jogo, nos reuníamos com outras pessoas de outras famílias e ficávamos horas conversando sobre o que aconteceu no jogo, por que o time X perdeu, o que o time Y fez de mais certo para conseguir a vitória, etc... Eram horas extremamente agradáveis e nunca sequer ocorreria a qualquer um dos jogadores ou dos espectadores uma agressão mútua em favor desse ou daquele time.
XXVII
Outra coisa que se descobriu a respeito dos Livres foi que eles não comiam carne. Não havia como uma mãe convencer seu filho de que um hambúrguer pode ser parte integrante de um sanduíche, não havia disfarces possíveis para fazer com que um filé de peixe entrasse no organismo de um Livre, como os animais nascidos antes daquele dia foram se acabando e ninguém conseguia matar um boi ou um frango nascido depois daquele dia, como não se podia pescar nenhum peixe ou capturar nenhuma ave, os Frágeis acabaram por, também eles, deixar de comer carne. Nas fazendas ainda se ordenhava vacas e se fabricava queijos e doces de leite, nas prateleiras dos supermercados ainda se encontrava ovos, leite e mel, mas os proprietários e empregados dos abatedouros, dos açougues, das peixarias e das churrascarias tiveram que mudar seu ramo de negócio e suas profissões. Foi necessário um tempo de adaptação, tempo no qual, é claro, muito se falou em fome, crise e desemprego. A grande vantagem foi o fato de que a quantidade de pessoas e de animais que realmente precisavam comer, beber e se abrigar das temperaturas extremas foi diminuindo com o passar dos anos e, portanto, a crise não foi tão terrível assim. Além disso os que precisavam comer tiveram a inestimável ajuda dos que não precisavam, tanto a ajuda dada pela voluntária abstinência quanto a ajuda dada na procura de alimentos alternativos.
XXVIII
Os Frágeis comiam por necessidade, os Livres comem por prazer. É incompreensível para mim e para qualquer Livre o ato de matar outro ser vivo para comer. Não há essa necessidade e não há essa possibilidade. Quando estive com Hugo em uma família de biólogos, vi muitos animais brincando juntos, como leões e zebras; li e vi em filmes que, antes, os leões só se aproximavam das zebras para matá-las e se alimentar delas e que as zebras só permitiam a proximidade dos leões se, por estarem velhas, doentes ou feridas, não tivessem condições de fugir. Brinquei com porcos e bois e galinhas que antes os Frágeis só criavam para matar e comer. Vi vários livros de receitas que ensinavam a cozinhar ou assar pedaços de animais que os livros chamavam de “suculentos bifes”, “saborosos filés”, “tenros cortes” e outros nomes do tipo. Nos livros havia receitas de doces e salgados feitos a base de vegetais vivos; naquele tempo eles matavam também os vegetais para produzirem alimentos, nós tiramos apenas o que os vegetais permitem ser tirado ou lançam fora, eles “sabem” o que podem dispensar e nós aproveitamos o que nos dão para criar meios de satisfazer nosso prazer gustativo.
Ver as fotos coloridas dos livros de receitas dos frágeis sempre me causava uma sensação desagradável. Aprendi a fazer ótimos doces e deliciosos sucos; esses são os alimentos que os Livres consomem, são sempre feitos de folhas, flores, mel, leite, ovos, frutos. São as coisas que a natureza nos fornece para nos dar prazer; o prazer que custa a morte não é compreensível para nós. Mas é preciso compreender os Frágeis, eles não tinham muitas opções; alias, não tinham nenhuma, principalmente os animais Frágeis. Eles não comiam por prazer, comiam por necessidade e muitos deles eram carnívoros, o que significa que só conseguiam se alimentar de outros animais, outros eram herbívoros, portanto só se alimentavam de vegetais vivos. Os Frágeis se alimentavam tanto de animais quanto de vegetais e, por terem essa possibilidade, alguns Frágeis optavam por se alimentar apenas de vegetais, sentiam-se melhor se não matavam outros animais. Esses vegetarianos eram uma minoria e em geral só se encontravam nos grandes centros urbanos e nos lugares onde havia mais dinheiro; os miseráveis não tinham escolha, comiam o que podiam.
XXIX
Sabendo da existência de um mundo que a grande maioria das pessoas não via: o mundo dos seres extremamente pequenos; e sabendo que nesse mundo microscópico havia muitos seres nocivos à vida de pessoas, animais e plantas, que por essa razão eram objeto de estudo constante dos cientistas de todo o mundo, únicos a realmente ver alguns dos habitantes desse mundo tão estranho, o deus que não existe fez com que no mundo microscópico se reproduzisse uma seqüência de eventos muito semelhantes aos do mundo dos grandes mamíferos; a diferença foi que, como alguns daqueles seres, devido à sua biologia, viviam apenas de e para causar mortes e doenças, esses seres sofreram mutações nas gerações que vieram depois daquele dia; essas mutações permitiam uma vida independente de outros organismos vivos. Não haveria mesmo como continuarem a existir da forma que eram uma vez que os seres vivos nascidos depois daquele dia não eram sujeitos a parasitas ou doenças de qualquer tipo. O resultado mais imediato dessas mutações foi que desapareceu completamente a grande maioria das doenças que afetavam até então o mundo macroscópico.
E os mortais passaram a ter menos dores e sofrimentos físicos porque os vírus, bactérias e fungos, os parasitas, unicelulares ou não, que fossem nocivos a outros seres vivos simplesmente deixaram de existir como tais. Não que não se pudesse ver uma ameba, um Staphylococcus, um bacilo de Koch ou um Aedes aegypti. Eles ainda eram encontrados em muitos lugares caso se procurasse por eles, mas não provocavam mais doenças, não agrediam mais o corpo dos outros seres vivos, mesmo que esses seres vivos fossem nascidos antes daquele dia. Portanto, se pessoas e animais continuavam a morrer, não morriam mais por doenças, apenas por acidente, assassinato ou velhice; acontecimentos como acidentes de automóvel, disparo de armas de fogo, ataque de outros animais ou homens, eram sempre provocados por outro ser vivo nascido antes daquele dia.
XXX
Fui, durante alguns anos, parte de uma família de pesquisadores. Estudávamos o mundo microscópico da mesma forma que com minha segunda família estudamos os animais. Não havia muitas diferenças; nesse mundo também havia uma harmonia e uma cumplicidade visível entre seres que antes se devoravam ou parasitavam animais maiores e pessoas. Pude ver que nosso corpo continua a ser habitat de uma infinidade de seres microscópicos, mas ao contrário do que acontecia no tempo dos Frágeis, nosso corpo não é mais parasitado por eles. Fazem conosco o que fazemos com a Terra: usam o que lhes damos sem precisar nos destruir ou nos adoecer.
O estudo do mundo microscópico é fascinante! São tantas as formas e as cores, as variações de funções dos órgãos, as formas de reprodução; enfim, estudar o microcosmo é como estudar outro planeta! Foi por isso que, imagino e acho que já li algo a respeito, o mundo dos seres muito pequenos, quase invisíveis ou totalmente invisíveis a olho nu, ajudou muito na criação das fantasias dos filmes de ficção científica da época dos Frágeis.
XXXI
Em conseqüência dessa ausência de morte provocada no mundo macroscópico pelo mundo microscópico e em conseqüência de um ser vivo não servir mais de alimento para outro ser vivo, aconteceu algo que agradou muito os Frágeis que viveram aqueles tempos de transição. Na verdade foi talvez o único benefício dos Livres que os Frágeis também puderam desfrutar: deixou de existir uma série de cheiros desagradáveis que incomodavam o olfato dos Frágeis desde sempre e que se deviam à condição de animal parasitado que era a deles antes daquele dia. Aprendi nos livros, mas não cheguei a conhecer na prática, alguns nomes que significavam cheiros desagradáveis comuns nos tempos dos Frágeis e alguns outros nomes de produtos criados para combater esses cheiros e que deixaram de existir depois da vinda dos Livres.
XXXII
Alguns animais morreram de fome porque chegou um tempo em que era muito difícil para um leão mortal encontrar uma gazela mortal com que se alimentar, um tubarão mortal já não encontrava peixes mortais com tanta facilidade e bandos de golfinhos ou coiotes mortais, cada vez mais raros, não encontravam mais cardumes de atuns mortais que pudessem cercar ou um pobre bicho mortal ferido ou velho demais para se defender que pudessem atacar. Então eles morriam e eram encontrados por outros animais, até mesmo de sua própria espécie que com aquele canibalismo conseguiam adiar a morte por mais um dia. O resultado de tudo isso foi que não demorou muito para que dentre algumas espécies não se pudesse mais encontrar nenhum exemplar mortal, e esse era sem nenhuma dúvida o destino de todos os animais do planeta, incluindo, é claro, os homens.
À beira da extinção muitos seres humanos começaram a analisar de forma tão autocrítica como nunca antes sua própria humanidade, seus próprios conceitos e preconceitos. Muitas pessoas acabaram por “sair do palco” felizes porque estavam vendo que depois delas o mundo não seria tão ruim quanto tinha sido até então. Essas pessoas se tornaram atéias por conta dessa autocrítica, ou já eram atéias antes.
XXXIII
É verdade, pelo que estudamos nos jornais e livros da época, que animais morreram de fome nos últimos tempos dos Frágeis, mas, fazendo a estimativa numérica dessas mortes, provavelmente devido ao menor número de nascimentos e ao fato de os Livres não se alimentarem, a quantidade de animais mortos ficou abaixo, e bastante, do que acontecia a cada inverno e a cada ciclo de acasalamento e reprodução antes da vinda dos Livres.
Uma das únicas coisas que vejo com uma certa inveja quando me deparo com fotos ou filmes da época, é a possibilidade que os Frágeis tinham de ver grupos enormes de um mesmo animal se movendo no céu, na terra, na água ou no ar. Sinto essa quase inveja só até me lembrar que as belas revoadas de pássaros estavam provavelmente pegando insetos no ar, engolindo-os inteiros ou esmagando-os com seus bicos potentes; os belos cardumes de peixe prateados estavam provavelmente fugindo de um predador ou de um grupo de predadores que arrasaria um bom número deles dali a pouco, como acontecia com os alegres golfinhos cercando um cardume de atum; e uma manada de cervos estaria, como os peixes, fugindo de predadores que fatalmente dilacerariam as entranhas dos mais lentos enquanto seus corações ainda batiam medo. Quando me lembro desses fatos minha quase inveja desaparece total e completamente e prefiro milhões de vezes o prazer que tive de ver e conviver com boa parte desses animais vivendo apenas em pequenos grupos, mas sem se rasgarem uns aos outros!
XXXIV
Muitas coisas foram mudando ao longo dos anos, algumas mudanças mais drásticas outras menos, algumas ajudando a fortalecer determinadas áreas e outras simplesmente extinguindo produtos, serviços, indústrias. Não havia mais aqueles esportes que envolvem assassinatos e cujos nomes – eufemismos - são caça e pesca. Não havia mais vários tipos de remédios como antibióticos, fungicidas, repelentes e outros cujas fórmulas tinham o objetivo de matar ou afastar vírus, bactérias, fungos, parasitas. Não havia mais lojas e indústrias especializadas em produtos de couro ou pele. Não havia mais viveiros, canis, gaiolas e, logicamente, não havia mais abatedouros, açougues, granjas, zoológicos.
Outras atividades foram desaparecendo aos poucos. Policiais e militares em geral, por exemplo, foram sendo cada vez menos necessários à medida que os mortais diminuíam em número até que chegou o dia em que todo o aparato bélico e todos os contingentes militares de todos os países deixaram de existir. Ninguém matava mais.
XXXV
Em muitas cidades por onde passei vi construções suntuosas, às vezes habitadas, às vezes desertas, que tinham sido o que, nos tempos em que cultuavam deuses, os Frágeis chamavam de igrejas, templos, mesquitas ou sinagogas. Algumas dessas construções eram tão grandiosas e tão cheias de luxo que se poderia pensar à vista delas, que a cidade e o país onde se encontravam fosse um lugar de riqueza habitado por pessoas prósperas, saudáveis e muito felizes. Mas, quando procurava informações a respeito, não poucas vezes descobri que o lugar tinha sido habitado por comunidades miseráveis com uns poucos abastados que, em geral, estavam responsáveis pelo abastecimento de alimentos e bens de primeira necessidade ou estavam responsáveis pela administração desses templos magníficos. Todos eles em geral igualmente aplicados em explorar esses miseráveis mantendo-os na miséria ou contribuindo para aumentar ainda mais todas as suas carências. Os religiosos pediam paciência e prometiam recompensa em uma vida futura, os outros tinham o apoio dos religiosos e não precisavam prometer nada.
Havia também em muitos lugares, prédios suntuosíssimos que se chamavam algo como “prefeitura” ou “palácio do governo”. A sensação que despertavam era a mesma das igrejas, mesquitas e sinagogas, e a decepção quando se estudava o lugar onde estavam era também a mesma. Esses prédios eram as sedes dos governos dos países, estados e cidades e muitos dos mais luxuosos abrigavam o governo de cidades, estados e países mais miseráveis. Sempre havia além desses prédios ditos “públicos”, as mansões e palacetes onde residiam os que geralmente ocupavam, clara ou indiretamente, os postos mais altos da instituição religiosa ou política em questão, e eram sempre tão ou mais luxuosos do que os primeiros. É incompreensível a aceitação e passividade de tantos ante a miséria provocada por tão poucos.
XXXVI
As igrejas suntuosas e os templos cujas construções, devido à antiguidade, às características arquitetônicas ou a ambas as coisas, apontavam para a necessidade de preservação tornaram-se locais de estudo e guardiões da história: Escolas, museus, bibliotecas, galerias de arte. Isso porque as religiões foram deixando de existir à medida que deixavam de existir os Frágeis. Aos Livres toda e qualquer manifestação religiosa era tão incompreensível quanto o patriotismo. Dentre as muitas vocações não houve nenhum caso de Livre desejando ser padre, pastor, monge ou qualquer outro representante de qualquer religião. Não havia nada em nenhuma religião ou crença teológica que pudesse atrair um Livre de qualquer idade, a não ser, é claro, o estudo dessas manifestações dentro das pesquisas em história, sociologia, arte, etc.
XXXVII
Uma coisa que sempre me comoveu muito nos Frágeis foi o hábito que tinham de cuidar de determinados animais em casa. Eles adotavam alguns animais, em geral cachorros ou gatos, como se fossem filhos. Chamavam de “animal de estimação” e em algumas línguas tinham um nome especial, diferente do nome dos outros animais genéricos, mesmo que da mesma espécie. Vi muitas fotos de crianças com seus animais de estimação no colo, se pequenos; ou abraçadas ao pescoço de seus animais de estimação, se fossem grandes. Adultos que não tinham crianças em casa também criavam bichos. Muitos livros, jornais e filmes, falavam do amor dos homens pelos animais e dos animais pelos homens e também da importância, principalmente dos cachorros, como proteção contra outras pessoas que porventura quisessem dinheiro ou algo que pertencia àquele que possuía o animal e que tentasse roubar o dinheiro ou o objeto ou objetos em questão. Havia muito naqueles tempos o que chamavam de roubo ou assalto. Uma pessoa atacava a outra ameaçando-a com algum tipo de arma para pegar dela o que tinha, em geral dinheiro, ou entravam nas casas de outras pessoas quando estas não estavam e levavam tudo que tivesse algum valor. Às vezes essas pessoas, que chamavam de ladrões não conseguiam seu intento: se na casa tivesse um cachorro, este morderia o ladrão que fugiria e não levaria nada, os cachorros Frágeis costumavam morder estranhos.
XXXVIII
Não se vendiam mais animais de estimação embora muitos continuassem a ter seus queridos gatinhos e cachorrinhos que permaneciam na casa por fidelidade aos donos. A grande maioria dos animais, no entanto, viviam soltos por todos os lugares, nem mesmo os maiores ou antes mais ariscos causavam surpresa quando encontrados pelas ruas ou dentro das casas. Era comum que pessoas tentassem atrair um animal qualquer, desde uma cobra até um tigre, para que ficassem por perto a fim de serem acariciados, amados e adotados pelos habitantes da casa, alguns conseguiam e com o tempo era muito grande a variedade de animais, antes considerados perigosos, que se deitavam nos tapetes ou corriam pelos quintais acompanhando as pessoas.
Mas isso não durou muito tempo pois o incômodo da presença dos animais “não convidados” era bem maior do que o prazer de ter um animal cuja presença se desejava, e mesmo esses animais “bonitinhos”, como não podiam ser presos ou privados de qualquer coisa que desejassem, acabavam por se tornar um incômodo de grandes proporções, daí que a necessidade de criar barreiras para manter os animais longe das casas e cidades foi tão urgente que logo não existia mais animal doméstico em nenhuma casa.
XXXIX
Outra coisa muito boa que existia antes era a escola. Eram prédios cheios de salas com cadeiras e mesas onde as crianças ficavam e na frente delas um adulto lhes ensinava coisas como ler, escrever, contar. Muitas das histórias de livros e filmes se passam no todo ou em parte nas escolas. Depois dos Frágeis, com as crianças se tornando mais raras e as famílias maiores, as escolas deixaram de existir. O que se passou a fazer foi cada família ensinar o necessário para as crianças e deixar que partissem depois para que aprendessem o que quisessem com outras pessoas em outras famílias. Foi assim que aconteceu comigo. Meus pais e minhas mães me ensinaram a ler e escrever, me ensinaram geografia, história, matemática, me deram livros para ler e me ensinaram a fabricar carros.
Ah, estou sendo tão resumida! Meus pais e minhas mães me ensinaram muito mais do que isso; me ensinaram a cozinhar, a costurar, a cantar, a ver, a ouvir, a sentir. Somos sempre resultado do que aprendemos com as pessoas com quem convivemos e tenho certeza de que entre os Frágeis não era diferente. Eles também aprendiam, em casa com os pais e na escola com os professores e os colegas, muito mais do que anotavam nos cadernos ou liam nos livros. O problema é que alguns Frágeis tinham coisas muito ruins para ensinar.
XL
E os Livres começaram a escolher o futuro que teriam. Alguns queriam ser estudiosos, pesquisadores, cientistas; outros queriam ser jornalistas, escritores, professores, outros ainda preferiam ser pintores, escultores, marceneiros; e havia também os que queriam ser engenheiros, arquitetos, construtores. As vocações variavam muito e havia até mesmo aqueles que não manifestavam nenhuma, esses em geral preferiam andar por todos os lugares, ver todas as paisagens, conhecer todas as culturas ou até mesmo mudarem-se para os lugares mais remotos como os pólos, os grandes desertos ou o fundo dos mares onde pudessem ficar sozinhos, em pares ou em pequenos grupos. Alguns queriam possuir coisas como casas, aparelhos eletrônicos, alimentos industrializados, outros não queriam nada, nem mesmo roupas, não procuravam modernismos, eram imunes a qualquer tipo de desejo de posse.
E mesmo os que possuíam coisas não tinham esse espírito consumista envolto, disfarçadamente ou não, em ganância que tantos conflitos causou e que tornou-se tão conhecido de todo ser humano ao longo de sua história. Os que faziam coisas, produzindo bens ou prestando serviços, que lhes davam direito a receberem dinheiro e poder comprar não tinham nunca aquela sede de acumular riquezas que faz do homem o lobo do homem. E a sede de poder, desejo máximo de tantos personagens da história desde o primeiro rei até o último primeiro ministro Frágil, era algo simplesmente incompreensível para um Livre. Alguns se tornaram algo equivalente a governantes, mas estavam apenas exercendo a vocação de tornar a cidade, o bairro, o país mais agradável, mais bonito, mais organizado. E faziam isso.
XLI
Os Frágeis tinham governantes, em geral vários, que diziam como deviam agir, quanto ganhariam, onde podiam e onde não podiam ficar. O mundo era dividido em países e em geral os países eram hostis, clara e declaradamente ou de forma simulada e menos óbvia, uns aos outros. Em muitos países as pessoas tinham uma língua e uma moeda próprias, e até tinham características físicas diferentes. Havia países onde as pessoas de pele bege e cabelos amarelos eram maioria, havia países onde a maioria era de pessoas marrons. Essa divisão do mundo em países ainda existia quando saí da Terra, mas não se parecia em quase nada com a divisão dos tempos dos Frágeis. Não havia, é claro, nenhum tipo de hostilidade e nem havia governantes, a divisão era mais tradicional do que real e as línguas de todos os países era aprendizado acessível a qualquer um, bastava passar a fazer parte de uma família que falava uma determinada língua e a gente aprendia a falar essa língua. Não me esforcei para aprender todas porque nunca decidi me dedicar apenas a aprender as línguas do mundo, mas mesmo assim, aprendi vinte e oito línguas diferentes na Terra.
XLII
Havia total incompreensão dos Livres para muitas coisas que os Frágeis faziam, sentiam ou tinham, a começar por toda espécie de violência. Eles não podiam compreender o que levava uma pessoa a agredir outra pessoa, ou um animal; explicar isso a eles era como tentar explicar o que é cor a um cego de nascença. Estudando história, eles ficavam sabendo das inúmeras guerras, do domínio de um povo sobre outro, da instituição da escravidão, considerada normal em tantos períodos e por tantos povos. Na verdade, a própria idéia de povo era estranha aos Livres, eles não podiam compreender como ou por que um grupo de pessoas se sentia superior a outro grupo de pessoas. Por conta disso, desde sempre foi completamente inútil ensinar nas escolas aos Livres o tão valorizado espírito patriótico que sempre foi capaz de arrepiar a pele da maioria das pessoas ao simples toque do hino nacional de seu país. Considerar outro país como um inimigo em potencial, ou mesmo como um adversário era coisa que para os Livres simplesmente não fazia nenhum sentido, da mesma forma que não faz sentido para uma criança recém-nascida as variações das bolsas de valores. Por conta dessa incompreensão o sentido de nação acabou por ser aos poucos abolido, e mais, à medida que os Livres foram se tornando adultos, as barreiras restritivas para migração, emigração e imigração foram deixando de fazer sentido. Não havia mais como um ditador impedir seus jovens de deixarem o país, como fez Fidel durante tantas décadas; não havia como os Estados Unidos barrarem a entrada de mexicanos que quisessem atravessar a fronteira e não havia como a Espanha, a França ou qualquer outro país europeu, impedir a entrada de africanos e asiáticos em seus territórios. Aos poucos, e à medida que passavam a existir mais Livres, as fronteiras foram se tornando meros marcos históricos.
XLIII
Os governos entre os Frágeis eram mais ou menos assim: uma pessoa era escolhida por voto de alguns privilegiados ou por voto de todo um povo manipulado e em sua maioria ignorante, esse líder determinava quais seriam as outras pessoas que fariam as leis que todo o povo teria que acatar, ou essas pessoas eram também escolhidas por votos por esse mesmo povo desinformado e manipulado. Quando cometiam algum crime, percebia-se que na grande maioria dos casos nesse “povo-que-deve-seguir-as-leis-ou-sofrer-as-punições” não estavam incluídos os governantes, ou pelo menos não estavam incluídos quanto às punições previstas para os infratores das leis; os governantes e os mais ricos ou não eram punidos ou eram punidos com muito menos rigor que o homem comum. Quando nasci já não havia governantes, já não havia leis, tudo que sei sobre esse assunto sei através de livros, filmes, peças de teatro, músicas, pinturas, jornais, revistas...
Eles viam vantagens em ter governo porque não tinham outra forma de ter gente cuidando da organização das cidades. Fiz parte uma vez de uma família que cuidava de uma cidade de médio porte e acho que dá para pelo menos tentar explicar por que entre os Frágeis não era possível que uma cidade fosse administrada sem que essa administração fosse também uma guerra de poder entre pessoas movidas unicamente pela ambição. Na família da qual fiz parte todos estavam fazendo algo de que gostavam, porque queriam e com o fim de aprender. Éramos umas vinte pessoas, se bem me lembro e, além de estudar a história da organização, da existência e da administração da cidade em que vivíamos, organizávamos as Festas de Limpeza, era só marcar o dia, avisar a todas as famílias que viviam na cidade e naquele dia todos nós e todos os habitantes empunhávamos vassouras, pás, tratores, caminhões, tudo de que precisássemos para tal e limpávamos a cidade nos pontos em que a limpeza cotidiana de cada família não alcançava. Pintávamos paredes, cercas, portões... Enfim, fazíamos o que fosse necessário fazer. Durante o restante do tempo cuidávamos da manutenção dos lugares públicos como alguns cinemas, parques e bibliotecas, e decidíamos sobre todo tipo de organização de que a cidade como um todo pudesse se beneficiar, como torneios esportivos, concursos culturais e amostras de arte. Estávamos sempre em contato com as famílias que administravam as cidades vizinhas a fim de marcar esses eventos e com as famílias que estudavam a meteorologia para diminuirmos a chance de marcar alguma atividade em dias de chuva forte, neve ou qualquer outra alteração climática que pudesse prejudicar o evento. Uma coisa muito gostosa que fizemos no tempo em que estive na administração foi organizar na antiga mesquita dos Frágeis, um dia semanal para as crianças. Todas as crianças vinham e passavam o dia entre brincadeiras, leituras e conversas enquanto os pais cuidavam de outras diversões.
XLIV
Sendo coerente com a incapacidade que tinham de compreender a violência mais banal e cotidiana, os Livres tinham, para com toda e qualquer pessoa, fossem Livres ou não, atitudes, gestos e fala de uma educação inacreditável. E, tão difícil de compreender quanto a violência, era a indiferença, a aversão, a antipatia, a inimizade a uma ou a um grupo determinado de pessoas. Eles podiam amar alguém, mas não saberiam e não viam sentido nenhum em antipatizar outra pessoa, fosse quem fosse. Era difícil para os Frágeis entender que um Livre sentia carinho por sua irmã e pela colega de classe que acabou de se mudar para o bairro. Ele, Livre, não percebia diferença de valor entre as duas pessoas a ponto de uma não merecer consideração e respeito por mais que fosse distante do ramo familiar ou do círculo comum de amizade.
XLV
Os Frágeis tinham capacidade de sentimentos incompreensíveis; a um deles chamavam “antipatia”, era comum ver nos filmes ou ler nos livros que uma pessoa, assim que via outra pela primeira vez, sentia aversão por ela, era a essa aversão que chamavam antipatia. Às vezes, nas histórias de livros e de filmes, o sentimento era correspondido plenamente e as duas pessoas brigavam e até se matavam sem que o começo do conflito tivesse uma razão clara. Acontecia de essa aversão, principalmente quando vinda de um protagonista, ser resultado de uma espécie de adivinhação sem explicação que fazia com que aquele protagonista soubesse de antemão que a pessoa em questão era má; em geral a antagonista da história. É de lamentar que entre os Frágeis não fosse comum o prazer de ver uma pessoa pela primeira vez, um dos maiores e mais intensos prazeres que já experimentei e que experimento frequentemente. Pelo que li e vi a respeito dos Frágeis, sei que eles desconfiavam uns dos outros, não sem motivos - desconfiança é uma espécie de medo gerado pela incerteza de quem é o outro e de qual é sua verdadeira intenção; às vezes algum Frágil se aproximava do outro se fazendo de amigo, como um ator, mas na verdade desejando fazer a esse outro algum tipo de mal - por isso eles nunca sentiam a mesma sensação extremamente agradável que eu sinto sempre que vejo alguém pela primeira vez.
XLVI
As primeiras mães cujos filhos nasceram sem chorar surpreenderam-se e até ficaram um tanto magoadas quando em situações cotidianas percebiam que seu filho tinha por ela um amor bastante semelhante ao sentimento que tinha pela vizinha, pela enfermeira do posto de saúde, pela vendedora de legumes da feira ou por aquela outra mulher que aparecia no documentário da televisão e que morava em um país distante onde talvez seu filho nunca fosse chegar para conhecê-la. E da mesma forma que a mãe não compreendia o sentimento do filho, o filho era incapaz de entender a surpresa-meio-mágoa da mãe: ciúme era outra coisa que não fazia nenhum sentido para os Livres.
XLVII
Os Frágeis tinham dificuldade para gostar das pessoas que não fossem de suas famílias, e o que eles chamavam de família era algo bastante diferente do que eu chamo de família. Eles não tinham, como eu tive, alguns pai e algumas mães; o que tinham era UM pai e UMA mãe, e tinham um número variável de irmãos porque os pais costumavam ter mais de um filho. Então a família básica dos Frágeis eram os dois pais e os irmãos, quantos fossem, filhos do mesmo pai e da mesma mãe. Fora esse grupo, com algumas pequenas variações, costumavam ter uma certa consideração recíproca com os membros da família anterior de seus pais: os irmãos do pai ou da mãe eram os chamados tios e tias e os filhos desses eram os primos; os pais do pai ou da mãe, eram os avôs e avós; nas cidades essa família secundária não costumava morar na mesma casa. Eles, portanto, nunca trocavam de família, apenas constituíam, quando se uniam a uma outra pessoa, famílias novas. Até aí não haveria problema, o ruim desse sistema de organização familiar era que os sentimentos que os ligavam eram muito frágeis e frequentemente sujeitos a mudanças. Não era raro irmãos se odiarem, pais e filhos comumente viviam entre brigas constantes e primos, tias e sobrinhos muitas vezes tinham ou cultivavam antipatia uns pelos outros. As relações familiares eram tão variáveis e delicadas, os sentimentos bons entre eles eram tão frágeis que havia muitos livros e filmes que tratavam desses sentimentos e conflitos.
XLVIII
Não dá para saber com certeza quantos Frágeis, caso se tornassem livres do medo da morte e do instinto de sobrevivência, suportariam viver da maneira como os Livres viviam, parece que por sua natureza, os animais de todas as espécies, incluindo o homo sapiens, tiravam um prazer vital de suas atividades violentas ou letais. Será que um tigre Fragil suportaria muito tempo a vida se não tivesse nunca que correr atrás de um cervo, alcançá-lo ao final de alguns minutos de tensão, acertar com os dentes o lugar certo do pescoço do animal e sangrá-lo até que pare de se debater para então rasgar a pele e devorar a carne ainda quente? Será que um menino Frágil chegaria a tornar-se adulto sem poder rolar pela grama com os colegas trocando socos e arranhões na disputa por uma bola, um brinquedo, uma posição no grupo? Será que um homem se tornaria velho se não pudesse brigar literal ou metaforicamente pelo pão de cada dia? Não há como saber.
XLIX
O mais terrível que vi com meus estudos e pesquisas dos Frágeis foi na verdade o prazer que tiravam da violência. Eles chegavam ao ponto de ter nomes, a que davam o significado de esporte e lazer, para o ato de matar ou de ferir a eles mesmos entre si ou a outros seres vivos. Vi filmes e livros ilustrados sobre várias atividades que eles chamavam de esporte de luta. No passado de sua história muitos desses esportes de lutas só terminavam com a morte de um pelo outro, mais modernamente, ou seja, mais próximo do dia em que começaram a nascer os Livres, eles aceitavam o fim da luta quando um feria, cansava ou imobilizava o outro o suficiente para que esse não tivesse mais condições de lutar. Quanto aos animais, eles costumavam ir até os lugares onde podiam encontrá-los com mais facilidade e os matavam com armas criadas, vendidas e compradas especialmente para isso. E o mais estupendamente incompreensível é que eles tiravam muito prazer dessas atividades, tanto prazer a ponto de algumas pessoas tomarem como atividade profissional ou hobby essa capacidade de matar ou ferir. Havia livros e revistas especializados no ufanismo dessas “artes”.
L
Mas o fato é que os novos habitantes do planeta viviam muito bem. O tigre encontrava prazer em correr pelos espaços abertos, molhar partes do corpo em um córrego, rolar pela grama com seus iguais ou com outros animais cujos ancestrais foram caça e alimento para seus avôs e até mesmo em servir de montaria para uma criança que por correr mais lentamente apreciava o reforço e oferecia em troca sua amizade feita de sorrisos e carinhos. E um homem ou uma mulher conseguia viver muito bem e muito tempo depois de encontrar a pessoa com quem dividir sua vida e a atividade a que sentia prazer em dedicar-se.
Muitas pessoas tornavam-se artistas, estudiosos, atletas, exploradores ou cientistas e passavam muitos anos, ou até muitas centenas de anos, dedicando-se a aperfeiçoar sua arte, desenvolver suas pesquisar, fazer e aperfeiçoar muitas e muitas descobertas, ganhar muitos campeonatos e disputas. Sim, os Livres também disputavam partidas e campeonatos de futebol, vôlei, beisebol ou natação, a diferença era que não havia jogadas desleais, faltas que denotassem agressão ou disputa de resistência. Na natação, por exemplo, não havia disputa por maiores distâncias, todos conseguiam nadar quanto tempo quisessem, só podiam disputar velocidade e variar o estilo, passou a existir inclusive, como parte das competições regulares, o esporte de correr debaixo d’água, da mesma forma que acontecia com as corridas no solo. Esportes muito apreciados e que ajudavam bastante o desenvolvimento tecnológico eram as corridas de carro, caminhão, moto, e as acrobacias aéreas. Alguns esportes como o boxe e todo tipo de luta corporal com mãos limpas ou armas brancas, touradas e rodeios, simplesmente deixaram de existir e quando os estudavam nas aulas de história ninguém lamentava esses desaparecimentos.
LI
O dinheiro era um problema muito grande para os Frágeis. Os que tinham dinheiro além de querer mantê-lo, sempre queriam aumentar a quantia; eles nunca, nunca mesmo, estavam satisfeitos com a quantidade de dinheiro que possuíam. Em conseqüência disso os que não tinham dinheiro ou os que tinham muito pouco dificilmente conseguiam aumentar essa quantia a ponto de poderem viver longe da pobreza ou da miséria. E os que tinham muito dinheiro nunca sentiam o impulso moral de abrir mão do excesso para que não existissem mais miseráveis no mundo; e eles não o faziam porque para eles não existia excesso quando se tratava de dinheiro. Não dá para compreender por mais que a gente tente, mas o fato é que sempre achavam que tinham pouco e conseguiam afastar a idéia da miséria do outro de suas mentes de tal forma que conseguiam COM NATURALIDADE! comprar por muito dinheiro coisas desnecessárias como, por exemplo, pedaços de ouro para pendurar no pescoço em lugar de usar esse dinheiro, que obviamente era excesso, para dividir entre os miseráveis. Saber que um número absurdamente alto de crianças morriam de fome todos os dias porque seus pais não tinham dinheiro para comprar alimentos para evitar que morressem, surpreendentemente, não fazia com que o ouro no pescoço parecesse vergonhoso. Estou falando em “ouro no pescoço” como exemplo, é claro; eles, principalmente os mais ricos, compravam coisas absurdamente mais caras e absurdamente mais desnecessárias do que isso, se é que se possa dizer que há alguma necessidade de ter ouro pendurado no pescoço...
E o mesmo que acontecia com as pessoas, acontecia com os países; os ricos não só usavam o excesso do seu dinheiro em coisas desnecessárias como exploravam os pobres e os miseráveis para tirar deles o pouco dinheiro que porventura tivessem ou para ganhar mais dinheiro à custa deles, deixando de pagar dignamente por seus serviços ou pelos bens que lhes vendiam, por exemplo. Como vivi em um mundo no qual o dinheiro é algo que se tem para trocar por coisas que se quer e porque como tem gente que faz coisas é necessário que tenha gente que compre essas coisas, mas sem que nenhuma dessas coisas seja tão necessária a ponto de se morrer ou de se matar por elas, não é compreensível essa relação que, pelo que lemos e estudamos, os Frágeis tinham com o dinheiro. O responsável por esse horror era, aparentemente, um outro sentimento estranho e ruim que eles comumente tinham; esse sentimento chamava-se ganância, palavra que define essa vontade nunca satisfeita de ter mais e mais dinheiro e poder.
Quando estava na minha primeira família, aprendi a contar o dinheiro que meus pais e minhas mães recebiam todos os anos pelos dois carros que vendiam. Depois o dinheiro era guardado em uma caixa que ficava na cozinha e cada um pegava o que e quanto queria para comprar as coisas que desejava. Minha primeira compra foi um quadro com uma paisagem cheia de animais que comprei da família do Hugo e pendurei no meu quarto acima da minha cama, eu tinha quatro anos e como o quadro era muito grande para mim, meu pai Ed foi comigo e, depois que paguei pelo quadro e que recebi o troco, ele trouxe o quadro nos braços e o pendurou no lugar onde pedi. Outra coisa que comprávamos sempre, da família do supermercado, eram os ingredientes para os sucos e os doces que comíamos e bebíamos; o dinheiro da caixa nunca acabava porque quando chegava a época de vender outros dois carros comprávamos muito ingrediente e fazíamos muitos sucos e muitos doces para a festa e ainda sobravam algumas notas, no final da festa a caixa estava cheia de novo. Se, depois de passados alguns anos, alguém percebia que a quantidade de dinheiro estava muito grande, nós fazíamos uma lista de coisas desnecessárias que queríamos e saíamos para comprar essas coisas, foi assim que minha mãe Helena comprou uma guitarra e que meu pai Enzo comprou uma moto. Eu comprei, quando tinha 15 anos, uma corrente de ouro e treze pingentes diferentes, cada um lembrando um de meus pais e mães, todo o resto da minha vida e até hoje essa corrente está sempre no meu pescoço. Sei que não preciso dela para lembrar meus pais, mas ela me faz pensar neles em momentos inesperados e eu gosto disso.
LII
O sexo é um caso à parte: entre os Frágeis era um problema dos mais sérios porque existia a possibilidade de alguém forçar outra pessoa a fazer sexo, e como havia pessoas que tinham uns gostos muito, muito mesmo incompreensíveis, sexo chegava a ser comumente caso de polícia. A forma menos absurda de desvio que tinham era a prostituição; outros desvios, chamados taras, eram muitas vezes de fazer a gente se sentir mal como nos sentimos vendo os livros de receitas ou as histórias das guerras; assim eram principalmente os estupros, ou seja, sexo violento e à força, muitas vezes seguido de assassinato, e que se praticava contra todo tipo de pessoa, inclusive crianças.
Para mim o sexo sempre foi algo natural e muito bom, então fica extremamente difícil compreender os desvios absurdos dos Frágeis. Tive sexo com Hugo assim que nós dois sentimos vontade e nunca nenhum dos nossos pais fez qualquer tipo de comentário repreensivo a respeito. Como sempre tivemos acesso a toda informação sobre todo e qualquer assunto, sexo era apenas uma coisa a mais que aprendíamos. Muito cedo aprendi um conceito importante chamado “privacidade” e isso significava que quando alguém entrava em um determinado lugar e fechava a porta ninguém nunca e em nenhuma circunstância tinha o direito de passar por essa porta. Eu soube muito cedo que alguns de meus pais e mães se fechavam para fazer sexo, era normal e nunca despertava nenhum sentimento de estranheza, portanto, quando eu e Hugo decidimos fazer sexo tudo que precisamos fazer foi fechar a porta.
Para as mulheres Frágeis a primeira vez que faziam sexo poderia ser muito doloroso porque elas nasciam com uma coisa chamada hímen, parece que na anatomia dos Livres esse tal hímen nunca faria nenhum sentido e, portanto, nunca existiu. Sexo é algo extremamente prazeroso e praticado com toda freqüência que se deseja, sempre que nosso corpo quer e com quem queremos se há reciprocidade, e isso é tão natural que ver a maneira quase criminosa como os Frágeis viam, tratavam e envolviam em tabus, preconceitos e disputas de poder o sexo foi, depois de seus mitos e religiões, o assunto mais fascinante a que me dediquei - com curiosidade, estranheza e asco - quando estudei os seus costumes.
LIII
Consegui, com a ajuda da minha primeira família, construir a nave com que pude sair da Terra com mais rapidez certamente do que um grupo de Frágeis conseguiria fazer a mesma coisa. A falta de muitos detalhes dispensáveis para mim e que por isso não incluí na nave, a tornaria absolutamente inviável para qualquer Frágil, por isso eles precisariam, certamente, de bem mais tempo, material e tecnologia do que precisei. Só o sistema de armazenamento e purificação de ar era algo que demandaria muito tempo, necessitaria de muitos testes e consumiria muito material; no meu caso a nave pode ser aberta e leve, todo o trabalho e custo de um sistema de ar sofisticado, de processamento, armazenamento e conservação de alimento e de oxigênio simplesmente não existiram. Enfim, sem as limitações dos Frágeis, viajar pelo espaço acabou por se tornar uma atividade razoavelmente simples.
LIV
Durante a viagem tive vontade de morrer algumas vezes, muito tempo sem nada para fazer acaba causando uma espécie de tédio que traz o desinteresse. E eu pensava comigo: e daí se tem ou não algum ou alguns planetas habitados por seres inteligentes? Que me importa descobri-los ou não? Mas sempre me respondi que importava sim, que eu queria saber e que tudo de que precisava era alguma coisa para fazer enquanto não chegava a algum lugar. Então fiz planos! Dormi muito e fiz muitos planos, dormi durante o equivalente a vários dias ininterruptos, passei várias horas detalhando planos, dormi mais e fiz mais planos. Dessa forma e graças aos meus livros, consegui chegar ao primeiro planeta habitado. Lá fui a primeira a chegar, algum tempo depois chegou um casal também vindo da Terra, e cinco naves já tinham partido daquele planeta com o mesmo intuito com que parti, talvez alguém já tivesse chegado ao meu planeta, à minha casa. Acho que vou demorar bastante tempo para cansar de viver; quando voltar à Terra ela estará bem diferente e terei muito mais que aprender.
Esperei encontrar planetas com habitantes muito diferentes de mim, habitantes com escamas, orelhas grandes, formas variadas como nos filmes de ficção científica que adorava ver enquanto vivi na Terra, para minha surpresa dentre os duzentos e quinze planetas habitados que visitei até hoje, nenhum era diferente demais do meu planetinha de origem. Alguns tem pessoas de cores diferentes dos tons entre bege claro e preto que tem na terra, mas o básico de “cabeça-tronco-e-membros” é inalterado. Os animais e as plantas também são basicamente iguais ou com diferenças bastante sutis, nada que se pareça com as fantasias dos filmes. E eles também costumam sempre ficar levemente decepcionados quando me vêem e sabem que vim de tão longe. Todas as culturas de todos os planetas parece que souberam criar seus extraterrestres com graus bastante mais elevados de imaginação do que de fato a natureza espalhou pelas galáxias.
Todos os planetas que visitei, inclusive os que não tem pessoas, apenas plantas e animais, também tiveram um dia em que os Frágeis pararam de nascer e começaram a nascer os Livres. Em todos eles os Frágeis desapareceram há muito e todos tem histórias de transição para contar - via conversa ou via estudos arqueológicos -, todas as histórias são bastante parecidas com as histórias da Terra. A partir do primeiro planeta, não mais viajei sozinha e não mais tive tédio que me fizesse sentir vontade de morrer. Acho - já parei de tentar contar faz tempo - que já vivi mais tempo do que tinha o planeta terra no dia em que nasci, mas, é claro, esse cálculo pode estar completamente errado, afinal, a passagem do tempo é, em última análise, apenas uma sensação.
LV
E, depois de muitos anos, quando seres mortais eram apenas informações para a curiosidade lúdica de alguns e objetos de estudo para a curiosidade científica de outros, o deus que não existe olhou o que tinha feito e viu que era bom. Mas o deus que não existe não poderia, mesmo que quisesse, vangloriar-se de sua criação diante do deus que o homem criou à sua imagem e semelhança. É verdade que ele jamais sentiria necessidade disso porque era mais parecido com os Livres do que com aquele seu colega de profissão. Mas não poderia o deus que não existe, conversar com seu colega a respeito dos mundos de antes e de depois daquele dia; e não poderia porque o deus que o homem criou à sua imagem e semelhança deixou de existir quando deixaram de existir os Frágeis. Aquele deus que o homem criou à sua imagem e semelhança estava morto e isso era um fato, não opinião de Nietzsche.
LVI
É isso: Meu nome é Luz, nasci na Terra por volta de duzentos anos depois da extinção dos Frágeis, vivi e aprendi a Terra por muito tempo até que resolvi sair e pesquisar as estrelas. Encontrei mais de duzentos planetas habitados e agora que fiquei tempo suficiente em cada planeta e vi o suficiente para sentir como fato que eles seguem um padrão regular de desenvolvimento, estou me preparando para voltar à Terra. Vou com um amigo com quem divido a vida há cinco planetas e não faço idéia de quanto tempo durará nossa viagem; pretendemos passar por vários planetas que já visitei e rever tudo que vi naquele tempo e as modificações que cada lugar sofreu, saber como está agora cada um deles. São pessoas demais para rever e para conhecer, são lugares demais para visitar e revisitar a caminho da Terra, onde tenho muito mais que ver, rever e aprender. Um dia vou cansar e querer morrer, mas acho que ainda vai demorar muitos séculos.
LVII
Como eu disse no começo, sou uma abstração. Sou a personagem de um mundo livre: sem dor, sem cadeia alimentar, sem velhice, sem doença, sem morte que não seja voluntária, sem exploração, sem humilhação, sem limites e sem deus. Este mundo não existe e eu não existo. Mas antes de dizer que existe um deus que é infinitamente bom e todo poderoso, antes de dizer que esse deus todo bondade criou o mundo maravilhoso e a natureza perfeita em que você vive porque não há limites para o seu poder; talvez, só talvez, você possa pensar no meu mundo como um mundo que um deus com poder ilimitado e bondade real poderia criar. Talvez você veja que se existisse um deus que realmente fosse infinitamente bom e infinitamente poderoso ele criaria um mundo muito mais parecido com o meu do que com o seu. Talvez um deus realmente bom e realmente poderoso - se existisse de verdade - pudesse dizer: “Faça-se a Luz”... E eu então existiria fora desse papel.