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Contos-->CAIDO DO CEU / G. Lenôtre -- 18/11/2009 - 03:34 (CARLOS CUNHA / o poeta sem limites) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


















O poeta sem limites apresenta nos










“Melhores Contos da Literatura Universal”






CAIU DO CEU

As velhinhas de outros tempos não eram como as de agora. A condessa de Cherizet, figura encantadora e venerável que paira entre as minhas mais remotas recordações, contava uns bons oitenta anos quando eu, ainda muito pequeno, a vi pela primeira vez. Era ao mesmo tempo ativa e silenciosa, concentrada e prazenteira. Os belos olhos, umas vezes risonhos, outras pensativos, fechavam-se amiúde, como se ela quisesse contemplar, sem ser distraída pelas coisas do presente, numa espécie de longo êxtase enternecido, os dias da sua felicidade passada. Tinha a boca desdentada, mas a fronte sem uma ruga. Três ordens de caracóis grisalhos emolduravam-lhe as faces; as mãos eram ainda brancas e finas, e havia em todo o seu aspecto essa indefinível serenidade dos velhos que conheceram grandes venturas, e que estão certos de continuar a ser, até o fim da vida, os meninos bonitos da Providência.
Em volta dela chilreava o bando dos netos, garotos turbulentos, amimados mas respeitosos, que eram meus companheiros de estudos e brinquedos.
Bem me lembro de um dia de inverno em que estávamos todos reunidos à lareira da sala, junto da avó, que tricotava meias sem levantar a cabeça, mergulhada como de costume no seu sonho interior. Estava-se na véspera de Natal. Quando somos pequenos, o Natal causa-nos sempre uma espécie de medo. A expectativa do mistério traz um arrepio de angústia deliciosa. Parece que o céu está no segredo da festa, e que a noite chega de uma forma diferente. O crepúsculo é cor de fogo ou violeta: é a hora em que o Menino Jesus sai do paraíso para começar a sua árdua jornada. Naquela tarde, eu via morrer o dia triste de dezembro, esperando ver passar o Menino Deus, e ao mesmo tempo muito assustado com a idéia de que Ele pudesse entrar por ali, assim de repente, e entregar-me em pessoa o tambor, o sabre, as dragonas e o capacete empenachado que eu lhe tinha pedido...
Um primo maior, a quem confiei o meu temor, encolheu os ombros com ar de superioridade:

— Não sejas pateta.

Era um “espírito forte”. Fiquei olhando para ele, sem entender. Nisto a avó, que parecia distraída, achou que era altura de intervir:

— Devem-se pôr sempre os sapatos na chaminé — disse, num tom que não admitia réplica.

— Mas, vovó...

— Em todas as idades — estão ouvindo? — em todas as idades aquilo que a gente deseja pode cair do céu. Eu, por exemplo, recebi do Menino Jesus um marido e um dote.

— Um marido?!

— Um dote?!

— Pela chaminé?!!

— Sim, pela chaminé.

Durante alguns instantes ela ficou calada, mergulhada outra vez no sonho, sorridente. Tricotava com rapidez, com o espírito alheado, muito longe, e de repente pousou a malha no regaço e começou a contar uma história. Contou-nos como a sua infância fora triste: tinha perdido os pais na Revolução Francesa. A mãe morrera na prisão e o pai fora fuzilado em Quiberon. Recolhida por uma velha parenta emigrada, passara a adolescência no estrangeiro. De regresso à França, depois da Restauração dos Bourbons, encontrara-se sozinha em Paris, sem amparo. Os bens da família tinham sido confiscados; a fortuna, dispersa pela grande convulsão. Só lhe restava o velho palácio da família, abandonado havia vinte anos, devastado, a cair em ruínas, inabitável, bom apenas para demolir, e cujo valor mal chegaria para pagar o pequeno dote de que a moça necessitava para ser recolhida num convento, onde poderia acabar os seus dias. Tinha apenas uma vocação resignada... Mas que poderia esperar da vida?
O palácio que habitava já estava vendido. Esperavam apenas que ela saísse, para começarem a demoli-lo. Os móveis tinham sido leiloados. A jovem reservara para si apenas um quarto no primeiro andar, sumariamente mobiliado com uma cama e algumas cadeiras; ali passara o outono de 1815, numa solidão e num recolhimento semelhantes aos que esperava encontrar no convento para onde entraria em breve.
O último dia que viveu na casa senhorial onde nascera foi particularmente triste. Era o dia 24 de dezembro de 1815. No dia seguinte, Natal, devia dar entrada, logo ao amanhecer, no Mosteiro da Visitação, na Rua de Saint-Jacques, e ela vagueava sozinha pelas grandes salas vazias. Uma mulher que a servira nos últimos tempos vinha, à noite, dormir no antigo cubículo do porteiro.

— Sim, sim, lembro-me muito bem dessa noite — contava a avó, abanando a cabeça com ar pensativo. — Não toquei na ceia que Tienette me servira. Ela já se tinha ido deitar, embaixo, na ala do palácio que dava para a Rua de Saint-Dominique, e eu, antes de adormecer, quis ver pela última vez a casa onde nascera, e onde meus pais tinham vivido. De vela na mão, percorri as velhas salas ressoantes, cheias de sombra e frio, com os forros de seda pendentes em farrapos, como gigantescas teias de aranha. Lá fora a rua estava silenciosa; era uma triste época.

Alguns dias antes, tinham sido fuzilados o marechal Ney, Labédoyère e muitos mais; nesse dia, soubera-se da condenação de La Valette. Por toda parte, de uma ponta a outra de Paris, os partidários de Napoleão eram perseguidos e presos. Só se falava de conspirações, de conjuras, de perseguições e de represálias. Quando anoitecia, o único ruído a cortar o silêncio das ruas era o passo pesado das patrulhas na ronda.
Triste e desanimada, fechei finalmente as portas todas, voltei para o quarto — o quarto onde passara a infância tão feliz — e preparei-me para me estender na minha cama pela última vez. Acabavam de soar as onze horas. Estava descalçando os sapatos quando os sinos de São Tomás de Aquino começaram a repicar. Só então me lembrei da missa da meia-noite, que os sinos anunciavam, e o meu pensamento voltou muitos anos atrás, aos Natais de outro tempo. Como tudo isso ia longe!... Via-me naquele mesmo quarto, no tempo em que a minha mãe ainda era viva, pondo à noite, toda contente, os sapatinhos na chaminé de mármore lavrado, tão larga e profunda que, curvando-me sobre a pedra da lareira, e espreitando para cima, divisava lá no alto, muito no alto das grandes paredes aveludadas de fuligem, as estrelas do céu. Essa lareira, agora negra e fria, parecia-me vê-la como dantes, nas manhãs de Natal, abarrotada de embrulhos brancos, de gulodices artisticamente dispostas sobre papéis de cor frisados, de bonecas rosadas e loiras, de livros com encadernações rutilantes...
Sim, tudo isso ia longe e bem longe. Que gênio protetor se lembraria, agora que tudo me faltava, de me presentear com um pouco do supérfluo desses dias felizes? Ali fiquei, pensativa, já de chinelos calçados, com os sapatos na mão. Timidamente, quase envergonhada, aproximei-me da chaminé e pousei os sapatos na pedra da lareira. Era uma idéia louca, o desejo ridículo e ingênuo de experimentar pela última vez a impressão da infância, que nunca mais, nunca mais poderia repetir-se.
Ah! Que triste figura faziam os meus pobres sapatos sobre o mármore rachado! Não eram bonitos nem novos, pelo contrário. Tinham um ar tão triste, tão miserável, pareciam tão certos de que nessa noite nada cairia do céu... Podem crer, filhos, que fiquei a olhar para eles sem sombra de alegria, arrependida da minha criancice, e com o coração tão confrangido, que ia desatar a chorar.
De repente um estrondo terrível me fez saltar espavorida para o outro canto do quarto. Era uma trovoada, um ruído semelhante ao que faria um carro de pedra despejado de muito alto no sobrado. Pareceu-me que a casa se abria de alto a baixo. Uma nuvem de poeira acre encheu o quarto, que ficou de repente atulhado de caliça, de pedras enegrecidas, de tijolos partidos, de fuligem. Compreendi que a chaminé acabava de desabar. E já começava a recuperar o sangue-frio quando, ao aproximar-me de vela na mão, para avaliar a extensão do desastre, fiquei paralisada de terror. Dois pés, dois pés de homem, calçados de botas enlameadas, estavam suspensos dentro da chaminé e se agitavam, procurando desesperadamente um ponto de apoio.
Meu espanto foi tal, que não pude soltar um grito nem fazer um movimento. Fiquei parada, de pé por detrás de uma cadeira que instintivamente escolhera como escudo. Gelada de horror, vi os pés descerem pouco a pouco, tocarem a caliça amontoada na lareira, experimentarem a firmeza do solo e pousarem finalmente. Depois vi as pernas e as abas de uma sobrecasaca. Um homem todo curvado rastejou, recuando, até ao chão. Ergueu-se à minha frente, com as mãos esfoladas e a cara enegrecida. O primeiro movimento que fez foi limpar a testa com a manga esfarrapada. Eu, de cabelos em pé, olhava para aquela aparição assustadora. O homem sacudiu-se, esfregou os olhos ofuscados, viu-me, recuou um passo e juntou as mãos, como em prece:

— Por amor de Deus, salve-me a vida!

Eu não conseguia responder. O homem foi à janela, escutou os ruídos da rua, voltou-se para mim e balbuciou, ainda ofegante da queda:

— Minha senhora, a minha sorte está nas suas mãos... Sou perseguido, corro perigo...

Tornou a calar-se, de ouvido atento à rua.

— Mas responda! Diga-me uma palavra, por Deus! Quem habita esta palácio?

— Eu.

— Sozinha?

— Sim, sozinha.

Ele encarou-me, com expressão ansiosa.

— Oh! Minha senhora! Uma hora, uma hora de tréguas, mais nada! Deixe-me passar aqui uma hora. Isso basta para me salvar. Sou o conde de Cherizet, oficial do Imperador Napoleão. Conspirei... Pelo menos, sou suspeito... Sim, conspirei, confesso, conspirei para salvar Ney. Anteontem foram prender-me, e eu fugi... Tem a certeza de que não vive mais ninguém nesta casa?

— Mais ninguém.

— Há duas noites que ando pelas ruas. Esperava chegar esta noite a um abrigo seguro. Atravessei Paris. Na esquina da Rua Taranne, uma patrulha... Corri, mas fui seguido. Saltei um muro, agarrei-me a uma goteira, trepei a um telhado... A minha intenção era esconder-me, esperar que a ronda se afastasse. Mas fui visto. Descobri então uma chaminé, lembrei-me de me esconder lá dentro e deixei-me escorregar pelo cano, esperando tornar a subir facilmente. Tateando com os pés a parede interior, encontrei um relevo, uma saliência que me pareceu firme, e onde pensava poder conservar-me bastante tempo. Mas a chaminé deve ser de construção antiga. A saliência da argamassa esboroou-se com o meu peso, cedeu de repente, e caí.

Ficou alguns instantes calado, tentando dominar o nervosismo, sem deixar de fitar em mim os grandes olhos suplicantes e inquietos.

— Sou um homem de honra. O meu único crime é a fidelidade ao Imperador. Seja qual for o partido a que pertence, minha senhora...

Fiz um gesto, para indicar que isso pouco importava.

— Sim — repetiu, — é o meu único crime.

— Pode ficar.

Ele cambaleou, encostou-se à parede e murmurou em voz fraca:

— Muito obrigado!

De repente, dominando-se, deu alguns passos pelo quarto e soltou um suspiro:

— Não agüento mais.

Ofereci-lhe uma cadeira, onde se deixou cair.

— Uma gota d’água, por compaixão...

Trouxe-a, e ele passou um pano molhado pela testa, pela face e pelas mãos. Eu entretanto observava-o: era um homem dos seus trinta anos, de rosto enérgico e fino, mas pálido e triste. Ganhei coragem e dirigi-lhe a palavra:

— Tem fome?

Ele encolheu os ombros com desânimo:

— Há quarenta horas que não como nada. Estou caindo de fraqueza. Peço-lhe que me desculpe.

Saí do quarto. Tinha deixado na sala contígua, sem lhe tocar, a ceia que Tienette me servira. Trouxe a bandeja para o meu quarto, pousei-a sobre uma mesinha que aproximei do meu fugitivo, e estendi em frente dele um guardanapo branco. Havia pão, castanhas, ovos cozidos e uma garrafa de vinho velho que Tienette encontrara. O conde recuperara o sangue-frio. Acendi mais uma vela, e esse luxo desusado dava ao meu quarto um ar de festa. Na igreja vizinha, os sinos recomeçaram a repicar festivamente, espalhando na noite o som de bronze e de cristal, com uma solenidade alegre. O meu hóspede sobressaltou-se: todos os ruídos de fora o inquietavam.

— A missa do galo... — disse eu, para o tranqüilizar.

— Ah!

E como eu, com um gesto, o convidasse a começar a ceia, comentou sorrindo:

— Então convida-me para a consoada?

Na verdade, consoamos juntos. Eu perdera por completo o medo. Aquela aventura parecia-me agora a coisa mais simples deste mundo. Ao vê-lo comer com saudável apetite, também comecei a sentir fome... As emoções tinham-me desgastado, e como ele graciosamente me convidasse, sentei-me à sua frente. Ah! Meus filhos, que bela ceia! Conversamos, primeiro com certo constrangimento, de coisas vagas; mas pouco a pouco a conversa tomou um tom de meia confidência. As coisas mudaram muito de então para cá. Agora as pessoas e os costumes já não são os mesmos. À medida que falava e comia, o conde parecia outro; exprimia-se com grande distinção, num tom de voz respeitoso, moderado, quase terno... Não, não, coisas destas já não acontecem hoje...
E a avó, animando-se ao calor das suas recordações, tricotava rapidamente. O pensamento estava bem longe do trabalho vertiginoso das agulhas, um sorriso discreto pairava-lhe nos lábios finos.

— Eu tinha cá o meu plano. Quando o conde, bem reconfortado e refeito, manifestou intenção de se ir embora, eu lhe disse:

— Siga-me sem ruído.

Abri uma porta-janela, e saímos para a varanda, que corria ao longo de toda a fachada traseira do palácio. Na extremidade dessa varanda havia, como era freqüente nas casas antigas, uma escada de ferro em caracol, por onde se descia para o jardim. Levei-o por ali, atravessando o relvado úmido até uma pequena porta que dava acesso a um dédalo de ruelas estreitas. Corri os ferrolhos da porta, avancei alguns passos na rua muito escura e deserta, certifiquei-me de que ninguém estava à espreita nem havia emboscadas a temer, e voltei para junto do conde:

— Vamos! Então... até sempre.

Ele olhou para mim com ar surpreendido, e talvez um pouco triste:

— Até sempre?... — repetiu em tom interrogativo.

— Sim, até sempre. Entro amanhã para um convento.

O conde inclinou-se profundamente. E como eu estendia a mão para lhe indicar o caminho, depôs nela um beijo tão respeitoso, tão discreto, mas ao mesmo tempo tão terno e comovido, que também eu me senti um pouco perturbada. Depois, afastou-se bruscamente. Ouvi o ruído dos passos perder-se na noite, e fiquei mais um momento à escuta. Por fim fechei a porta, atravessei o jardim e voltei para o meu quarto, onde não preguei olho durante toda a noite.
No dia seguinte, antes de nascer o sol, Tienette entrou no meu quarto, como habitualmente fazia, para acender o lume e me ajudar nos preparativos, desta vez para a partida. Eu ficara de estar na Visitação à hora da missa solene. Enrolava-me na roupa, fingindo dormir, quando ouvi a boa mulher soltar um grande grito:

— Senhor Jesus, meu Deus! Que terremoto foi este? Oh, menina, olhe para os pedregulhos que lhe despejaram no quarto! Credo! Mas isto teria caído do céu? Olha que desastre este!... Mas com certeza esta tralha toda não teria caído sem a menina ouvir...

Compreendi que era indispensável dar uma explicação, dizer qualquer coisa, e balbuciei, como se ainda estivesse meio dormindo:

— Ouvi, claro que ouvi... Mas não fez grande barulho... Deve ter sido o vento, a chaminé rachada...

Tienette, sem ligar grande importância às minhas explicações, continuava a lamentar-se da poeira e da fuligem do chão, da impossibilidade de acender o lume, das casas velhas que as pessoas teimam em habitar até ao dia em que lhes caem em cima... Enquanto resmungava, pegara numa vassoura e tentava empurrar o entulho para dentro da lareira.

— Ih! Senhora! É caliça e fuligem que nunca mais acaba! Olha!

E os sapatos da menina ficaram debaixo desta porcaria toda! Mas quem é que se lembraria de ali pôr os sapatos!
Não tive remédio senão responder:

— Sim, sim, já sei... Foi de propósito.

— Ficaram bonitos! Nem se podem calçar... um está cheio de fuligem... e o outro, todo partido, debaixo de uma pedra. Mas que pedra! O que é isto? Como isto é pesado! Como pesa!...

Da cama eu a observava pelo canto do olho, e a vi tentar, sem resultado, levantar um bloco poeirento, coberto de fuligem. Tienette estava pasmada:

— Mas o que vem a ser isto?

— O quê, Tienette?

— Pesa demais! É chumbo, ia jurar que é chumbo ou ferro... Um cofre, parece... E em cima dos sapatos da menina, que um até ficou esborrachado!

Intrigada, enfiei um penteador e fui ver. Com efeito, era um cofre que Tienette limpava com o avental, um cofre caído da chaminé juntamente com a caliça. Devia estar metido no relevo da parede que cedera com o peso do conde, e ao desprender-se provocara a sua queda. Tienette, esfregando o cofre, extasiava-se:

— Está vendo? Isto foi ali metido no tempo da Revolução... As casas velhas estão cheias de tesouros escondidos... Ó menina, e se for ouro?

Os nossos esforços reunidos mal conseguiam deslocar o cofre do lugar onde estava. Eu não conseguia compreender como é que uma caixa tão pequena podia pesar tanto. E depois, como havíamos de a abrir? Não tinha chave. A fechadura estava obstruída com caliça seca, mas os eixos das dobradiças estavam enferrujados. Conseguimos rebentar primeiro um, depois o outro. Gastamos naquilo uma hora de esforços. Finalmente o cofre abriu-se: estava cheio de rolos de luíses de ouro, muito bem alinhados. Fiquei olhando estupefata para aquele montão de moedas com a efígie dos dois últimos reis. Tienette, fora de si, contava e recontava, soltando exclamações:

— Foi o pai da menina. Foi ele quem escondeu ali esta fortuna!

E continuava a contar, frenética, de olhos em brasa, até que se perdeu nas contas e recomeçou a contar. Para encurtar razões, meus meninos: o cofre continha cento e cinqüenta rolos de cem luíses de ouro: trezentos mil francos. Ali fiquei, ajoelhada no chão ao pé da Tienette, de braços caídos, aparvalhada, quase envergonhada de ver tanto ouro. Fiquei assim até que os sinos, alegres, badalaram de novo, anunciando a missa. Fui assaltada por uma súbita emoção. Os nervos tensos afrouxaram, e chorei, chorei sem poder parar. Tienette, a meu lado, soluçava também, repetindo:

— Ai, menina! O Menino Jesus, foi o Menino Jesus, com certeza!...

E nunca, enquanto viveu, foi possível dissuadir a velha criada de que nessa noite o Menino Jesus tinha vindo trazer-me um dote, evitando assim que eu fosse para o convento. Na realidade, passei apenas um mês, por deferência, na Visitação.
A nova do “milagre” espalhara-se. A senhora duquesa de Angoulême quis ouvi-la da minha boca. Fi-lo, é claro, sem dizer nada sobre o proscrito, herói da aventura. Na minha narrativa, a queda do cofre não tinha outro motivo senão a ruína da chaminé. A triste e boa princesa quis que eu entrasse para a sua casa, e fui viver junto dela nas Tulherias.
Passara um ano. Estava-se de novo na véspera de Natal. Em obediência à etiqueta da corte, nessa noite de 24 de dezembro de 1816 tínhamos de acompanhar a duquesa aos aposentos de seu tio, o rei Luís XVIII. Passamos ali o serão. Sua Majestade, que adorava histórias, e que estivera muito animado, contando algumas aos seus familiares, voltou-se de repente para mim, e disse, levemente irônico:

— E a menina? Disseram-me que lhe caiu uma fortuna do céu, dentro dos sapatos... Bem, estamos no dia próprio. Conte-nos isso.

Eu fiquei muito intimidada, mas como era uma ordem do rei, que remédio senão obedecer... Comecei a falar, sem saber bem o que dizia. Nunca, até então, me referira ao conde de Cherizet; mas nessa altura, perturbada demais para inventar, contei a história tal como se passara. E afinal, que perigo havia nisso? Passado um ano, as paixões políticas tinham serenado. Não se falava já de perseguições nem de represálias. No entanto, por prudência, limitei-me a aludir a um desconhecido, de quem ignorava o nome e a situação social. Todos os olhos estavam fitos em mim. Senti-me corar, atrapalhei-me, balbuciei. O rei, malicioso, interrompia-me a cada hesitação, crivava-me de perguntas...

— E esse belo desconhecido — interrogou, piscando o olho quando me calei — não disse o nome? Nunca mais ninguém o viu, tem a certeza? Talvez fosse algum ladrão...

Picada no meu orgulho, resolvi dizer tudo:

— Não, nunca mais ninguém o viu — respondi, fazendo uma reverência — mas não era um ladrão. Era o conde de Cherizet.

— O conde de Cherizet? — e ficou pensativo, de sobrolho franzido.

Durante todo o serão, mostrou-se preocupado. Alheou-se da conversa geral e falou muito tempo em voz baixa com o duque Decazes, que era nessa altura o ministro da Polícia. Parecia exigir do ministro uma decisão, que este se mostrava renitente em tomar.
No dia seguinte, às dez horas, quando a corte entrou nos aposentos do rei para o acompanhar à capela onde ia cantar-se a missa solene do Natal, o gabinete de Sua Majestade estava cheio, como era usual nos dias de festa. Luís XVIII beijou a sobrinha na testa e ofereceu-lhe como prenda de Natal uma cruz de brilhantes, que pertencera à rainha Maria Antonieta. Às damas, distribuiu pequenas lembranças. E já os oficiais ocupavam os seus lugares para o cortejo através das galerias, quando o rei fez um sinal com a mão.

— Esperem — ordenou.

Senti seus olhos fitos em mim.

— Senhores — disse o rei aos fidalgos que se comprimiam à sua volta — afastem-se um pouco, para essa menina poder ver o que desta vez lhe cai do céu, como prenda de Natal.
Os cortesãos obedeceram. Ergui os olhos e vi à minha frente... vi... Oh! daquela vez, apesar da solenidade do momento, não pude conter uma exclamação:

— O conde!... O conde de Cherizet!

— Sim, minha menina — disse o rei sorrindo. — O conde de Cherizet, que foi preso há um ano, ao sair do seu palácio, e esteve até ontem no segredo da cadeia da Abadia. O Menino Jesus lá foi buscá-lo esta noite, para o deixar cair na minha chaminé. E trouxe na algibeira a promoção dele a coronel da minha guarda — e estendeu a mão ao conde, que a tomou e beijou, muito comovido.

Com as lágrimas nos olhos, a condessa de Cherizet acabou aqui o seu conto. Abraçou os netos, que escutavam de boca aberta a linda história, e fechando os olhos para concentrar em si a visão maravilhosa do passado, concluiu:

— Era o vosso avô, meus meninos.




Autor: G. Lenôtre
Produção Visual: Carlos Cunha





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