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Contos-->O FIM DE ARSÈNE GODART / João do Rio -- 18/11/2009 - 04:09 (CARLOS CUNHA / o poeta sem limites) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
















O poeta sem limites apresenta nos










“Melhores Contos da Literatura Universal”






O FIM DE ARSÈNE GODARD

Estava tudo combinado. Era impossível falhar. Quando a lancha partiu, sem rumor, explorando a treva do oceano encapelado, ficamos entretanto nervosos. Seriam muitos? Seria um só? Ah! se os bandidos fossem apanhados! Os nossos nervos, excedidos já por aqueles três meses de enjaulamento na baía, sob o canhoneio das fortalezas e as necessidades mais duras, começavam a dar aos pequenos fatos uma importância capital, uma importância desproporcional. Assim, ao recebermos a denúncia amiga de que um ou mais homens conseguiam, a nado, levar instruções aos legalistas, a explosão da nossa cólera foi tal que, vendo-a, ninguém deixaria de julgar as instruções causa única do nosso enervante estado.
Quase todos nós, paisanos levados àquela vida do vaso de guerra pelas circunstâncias e as perseguições tirânicas dos sequazes do marechal, estávamos encostados à amurada com os oficiais e o comandante, a ver se víamos o trabalho da lancha no negror da noite.
Oh! Era demais! Havia oito dias mastigávamos a meia ração de feijão preto sem toucinho. O patriotismo e a indignação pelos descalabros do governo caíam intimamente num relaxamento lamentável. O desejo único era deixar a baía, era acabar com aquilo, era tirar dos ombros aquela mão de ferro das situações insolúveis, em que se complicavam as traições dos ingleses, as intimativas americanas e a falência das nossas vitórias. Na treva da noite sem estrelas, todas as cóleras se fundiam naquele que os nossos iam apanhar, como se fosse ele a causa da quantidade de desastres havidos.
— Que castigo havemos de dar ao canalha? — indagou um médico, exemplo da bondade em terra.
— Passemo-lo pelas armas!
— Seria pouco para o infame. Só se o fizéssemos mira de um tiro-ao-alvo geral. Todos nós atiraríamos.
— Mas ele só sentiria uma vez. Qual será, Comandante, o castigo do patife?
O comandante era um cavalheiro elegante e fino. Voltou-se, a sorrir:
— Conforme. Na carta que mo denunciou, dizem-no estrangeiro. Se o for, será impossível justiçá-lo. Mas se for brasileiro, passamo-lo pelas armas.
Ah! Íamos ter uma noite interessante e divertida, afinal! O miserável veria com que se metera! No olhar de cada um de nós havia a expectativa. E no riso dos outros, como talvez no nosso, um repuxamento de lábios queria sorrir, e mostrava os dentes como um esgar de fera.
Esperamos assim até de madrugada. A fadiga prostrara alguns. Soprava um vento de chuva, violento e úmido. O comandante recolhera, a lancha não voltava. Já a inquietação sucedia à fúria, quando à amurada a lancha acostou. Todos nós corremos, numa ânsia má, numa ânsia de vingança, ávidos de ver em primeiro lugar o torpe, o infame que toda noite passava por nós, arriscando a vida para complicar e perder a nossa vida. O comandante deixou a cabine apressadamente, a oficialidade vinha de todos os pontos do vaso de guerra. Naquele surdo rumor de cólera, os companheiros de lancha içaram para o tombadilho, amarrado, manietado, como que dobrado em dois, um corpo nu, membrudo e forte.

— Muitos?

— Um só, Comandante. Ia com um saco cheio de cartas.

— E o saco?

— Aqui está.

— Desamarrem o homem.

Dois marinheiros curvaram-se; outro acendeu uma lanterna de furta-fogo, e assim conseguimos ver a cara do tipo, uma cara comum, de bigode castanho e olhos turvos. Logo que o soltaram, a voz um tanto inquieta, mas clara, exclamou:

— Monsieur le commandant, je suis français!

— Os legalistas são brasileiros. Ninguém aqui compreende línguas estrangeiras.

— Eu falo o português. Sou francês, senhores, peço explicar o fato.

— Você ainda quer explicação, hein? Que topete!

— Mas é um direito.

— Direitos para um sujeito pescado de madrugada!

— Eu exijo!...

— Você não exige nada. Nós é que fazemos de você o que quisermos. Levem esse homem para a sala de armas, a aguardar as minhas ordens.

Os marinheiros foram levando o homem aos trancos. Nós ficamos na expectativa, e o comandante fez conduzir o saco à sua cabine.

— Boa noite, meus senhores.

— E o castigo, Comandante?

— Ah! o castigo... já pensei. Apenas só lho direi amanhã. É preciso fazê-lo passar a noite fazendo palpites. Vocês não imaginam como é interessante passar a noite imaginando várias desgraças irremediáveis, todas elas perfeitamente possíveis, e que poderão se dar algumas horas depois. Até logo mais, meus amigos.

Recolhemo-nos. Que castigo imaginaria aquele homem refinado e distinto? Como estaria o outro, nu, na madrugada álgida, lá em cima? Dormia? Pensaria? Pensaria na morte, decerto, porque era impossível outro gênero de castigo...
Um marinheiro descia.

— Como vai o homem? — indagamos.

— Parece dormir.

Nós é que não dormimos. Ficamos no beliche, nervosos, à espera daquela morte, daquela cena atroz, fatal, dali a momentos. Que se daria, céus clementes?
No dia seguinte, às oito da manhã, fomos convidados a ir à sala de armas. O homem nu lá estava, carrancudo, com o olhar turvo, mordendo o bigode. Quando o comandante chegou, houve um arrepio geral, um arrepio de medo. O comandante, porém, estava amável e sentara-se.

— Como se chama?

— Arsène Godard.

— Ah! muito bem.

— Eu desejava explicar...

— Oh! inteiramente inútil. Venho dizer-lhe o que resolvi a respeito, Sr. Arsène Godard. O senhor vai viver conosco até o fim da nossa ação. Vê-se que o senhor é um homem corajoso, forte. Excelente companheiro! Vou mandar-lhe uma roupa. Terá um beliche seu. O navio é inteiramente seu. Apenas, como o senhor nada bem e pode não gostar da nossa companhia, será acompanhado sempre. Não desejamos que nos abandone.
O francês olhava, tentando descobrir a insídia, procurando saber que castigo horrendo aquele vencedor arquitetava entre frases de mel.

— Mas, senhor Comandante, devo dizer...

— Eu é que devo dizer que jantará à nossa mesa. Ah! nós não passamos a caviar, como os patriotas da cidade. Mas, enfim, come-se. Vai ver. Não imagina o prazer que nos dá a sua companhia. Está entendido, então? Bem. Até o almoço. Guardião, uma roupa ao Sr. Godard.

Era de tal modo grave a atitude do comandante, que nenhum de nós se atreveu a interrogá-lo. Também a explicação veio minutos depois, terminante e terrível. O tenente João chamou-nos de parte, e em voz seca deu a ordem superior:

— O Sr. Comandante proíbe que se converse ou se responda ao preso. O Sr. Comandante considera uma deslealdade à causa e à sua pessoa dizer uma palavra ao Sr. Godard, até segunda ordem.

Era o suplício do silêncio! Era o castigo! Alguns o acharam fraco: eram os ingênuos. Outros sorriram, imaginando as resultantes daquele esporte, a perseguição do silêncio ao pobre sujeito. Como tomaria ele a vingança?
À hora do almoço, Godard apareceu, seguido de um marinheiro. Pediu licença, sentou-se. Ninguém olhava para ele. Ao primeiro prato atirou-se com uma fome indizível, verificando se lhe prestávamos atenção. Afinal, não se conteve:

— Sr. Comandante, não sei como agradecer...

O comandante continuou a falar com o tenente João. Godard quis insistir, atrapalhou-se, voltou-se para o vizinho da direita:

— Eu devia dizer ao comandante...

O vizinho da direita dirigiu a palavra ao companheiro ao lado. Godard atirou-se para a frente:

— Sim, a generosidade dos senhores...
Os convivas do outro lado nem voltaram o rosto. Godard cruzou o talher e esperou até o fim do almoço. Quando o comandante ergueu-se, foi até ele:

— Devo agradecer a sua bondade...

O comandante nem voltou o rosto. Era cômico, se não fosse atroz. Teria coragem o homem para resistir a essa humilhação sem palavras?
Godard passou o dia passeando no convés. Ao jantar, a cena renovou-se. À tarde começou o clássico bombardeio de terra para os navios, dos navios para terra. Era todo o dia aquela ceifa de vidas, inútil e dispendiosa. Godard parava junto de nós.

— Eu sei atirar muito bem.

Nem uma palavra. Não o ouvíamos. Ninguém o percebia. À noite, reunidos para tomar o mate, Godard de novo surgiu, acompanhado do marinheiro.

— Não quero, Sr. Comandante, deixar passar o dia sem agradecer a bondade geral. Não me falam. É justo o ressentimento. Mas eu não sou adversário, sou um ganhador que, como os condottieri, mercadeja o seu valor. Com os revoltosos — permitam a palavra — não posso mercadejar, porque pouparam a minha vida, sustentada à custa de muito risco. Estou, pois, às ordens...

Mas a pouco e pouco os oficiais tinham saído, e Godard estava só, diante do marinheiro mudo e sério.
No dia seguinte o nosso preso apareceu ao almoço, sombrio, cumprimentou sem ser correspondido, abancou noutro lugar, mastigou sem dizer palavra, ergueu-se, agradeceu, insistiu:

— Se o Sr. Comandante me desse licença para expor um plano de ataque, conhecendo eu como conheço as posições inimigas... Perdão! É traição. Vejo que não sou ouvido... Agradeço, entretanto.

Oh! era evidente que Arsène Godard, tipo voluntarioso, fazia um esforço sobre-humano para conter a cólera, para não desesperar daquela horrível situação que o fazia viver no navio como se estivesse só, inteira e definitivamente só. Os olhos ardiam de cólera, os beiços estavam brancos e as mãos tremiam, tinham um tremor de fúria. Talvez ainda se julgasse capaz de vencer o castigo, porque à noite foi ao comandante, e de novo insistiu sobre os seus planos.
Ao cabo de quatro dias, entretanto, durante o almoço, Godard ergueu-se:

— Digam: é para sempre o silêncio? Ninguém me fala? Mas eu sou um idiota, um animal, um leproso? Que sou eu? Não respondem? Matem-me! É infame, afinal. Os infames sois vós. Retiro-me. Não como mais. Não fujo, é verdade, mas morro de fome. Adeus, senhores.

Saiu a bater com os pés, para a sua cabine. Nós continuamos a conversar das coisas que nos interessavam. Só o marinheiro acompanhou-o, como a própria sombra muda.
E foi então a luta mais curiosa e mais atroz, o esporte mais doloroso e mais inquietante que jamais víramos, entre a palavra e o silêncio.
Cada um de nós, com o instinto animal de vencer, não respondia só para obedecer ao comandante. Não respondia, porque responder seria a vitória do pobre diabo. Cada figura de bordo era um componente daquela máquina de separação, daquela máquina que o tenente João chamava o pneumático da vontade, a rarefação do homem, porque a palavra é a vida, e falar, trocar palavras, é sentir-se viver. Godard sentia bem que nós o murávamos no silêncio, que nós cada dia erguíamos mais alto aquele muro de mudez que suas palavras não podiam, não conseguiriam quebrar. Resistiu dois dias, no camarote, à fome. Depois veio à mesa, feroz e sombrio como um jaguar, e nessa atitude conservou-se dez dias, dizendo apenas “obrigado” e “bom dia”. Ficava à porta do camarim, bufando e fumando. Se alguém passava por acaso, erguia-se, tinha um rictus irônico:

— Obrigado!

Ao cabo desse tempo veio-lhe o relaxamento dos nervos, o acicate da vontade mordeu-o mais forte. Era preciso obter uma resposta, sentir que não estava morto. Inventou estratagemas. Acompanhava uma pessoa até saber-lhe o nome, e de repente dizia-lhe nas costas, disfarçando a voz:

— Ó José!

Esperava em lugares solitários alguém, pedia fósforos, encartava nas palestras acaloradas uma frase dessas que exigem réplica, discussão; espreitava o abandono dos marinheiros, para obter uma palavra, uma apenas. Nós estávamos, porém, numa situação por demais irritante, com os tiroteios, a falta de víveres e a certeza de um fim próximo, para consentir em perder. Ademais, se ele sofresse resignadamente, talvez algum sentimental abalado respondesse. Mas Godard era um voluntarioso, a resignação não o compreendia. Cada dia passado era para seus nervos mais um motivo de fúria, de raiva contida. De modo que, no vaso de guerra em plena revolta, havia apenas o diabólico esporte de um homem contra trezentos, querendo falar, querendo viver, querendo rebentar o sudário de silêncio com que o enterravam moralmente, sem o conseguir.
Dos meios sutis, Godard caiu nos meios baixos. Ia ao comandante:

— A imoralidade do seu navio é assombrosa. Acautele-se contra o imediato, que o venderá na primeira ocasião!

E inventava intrigas entre os paisanos e os oficiais, arrastava reticências, esperava a pergunta... Nós nem sorríamos. Um silêncio absoluto — um verdadeiro silêncio que ia até aos gestos, como se diante dele estivéssemos diante de um objeto indiferente e inanimado — acolhia a infantilidade desesperada.
Da intriga, Arsène Godard caiu na humilhação. Para chegar a esse excesso, era preciso sofrer dilaceradamente, e Godard sofria. Tinha as pálpebras arroxeadas, o semblante lívido, o olhar apuado pela preocupação constante, o gesto vago.
Uma noite, de repente, depois de uma bala ter rebentado no convés, lacerando as pernas de três inferiores e espadanando sangue até na amurada, enquanto febrilmente todos nós tratávamos de remediar o mal, caiu de joelhos aos pés do comandante.

— Deixe-me prestar auxílios também! Fale-me! Fale-me! Pela sua honra, pela sua farda! Diga sim! Diga não! Diga qualquer coisa!

O comandante passou-lhe por cima. Godard continuou de rojo, pedindo, pedindo sem ver a quem, pedindo a quem passava, indistintamente. Nenhum de nós, cheios de preocupações, pensava em ter pena. O bandido era o inimigo, e cada vez que uma bala trazia o desastre, a cólera aumentava contra a sua figura lívida de traidor desesperado.

— Pelo amor de Deus! Uma palavra só, uma palavrinha! — chorava ele, com a face no chão, ridículo e macabro ao mesmo tempo.

A crise acentuou-se. Godard resolveu conquistar os guardas com as lágrimas. Cada marinheiro que lhe postavam como sombra tinha-o logo de joelhos, procurando beijar-lhe a mão, fazer-lhe promessas, a pedir, a chorar. O comandante repetiu as ordens severas. Arsène Godard ficou sem respostas, e da humilhação passou à cólera.

— Não quero este! Não quero este! Já disse! — bradava quando mudavam os guardas — São uns indignos, uns covardes! Não me satisfazem? Que sou eu? Eu não estou morto, ouviram? Falo, falo, falo. Que importa que não me respondam? Falo, estou falando! Covardes!

Mas a cólera, como as lágrimas, batia de encontro ao ilimitado e asfixiante silêncio. Não o ouvíamos, não o sentíamos. Godard voltou à vida do beliche, a dizer “obrigado”, ironicamente, quando por acaso alguém passava pela porta. Já se haviam passado dois meses — sessenta dias e sessenta noites. Tudo anunciava o fim da nossa aventura, e cada vez mais o nosso ódio se acentuava contra aquele objeto solto a bordo, o mercenário, o traidor. Os acontecimentos, os desastres desenrolam-se com o cortejo de mortes, de humilhações, e diante de nós, com as idéias empaladas num silêncio desesperador, o animal sofria a nossa vingança por todos a quem nos era impossível estraçalhar, matar, vencer.
Uma tarde, o marinheiro que deixara a guarda foi dizer ao comandante que Arsène Godard parecia febril e falava coisas sem nexo no beliche.

— Deixe-o como está.

— É verdade, Comandante. Se acabássemos com essa boca a mais...

— Oh! é preciso que ele pague a dedicação aos outros. Se fosse um resignado, há muito estaria morto, mas exatamente porque ele se enfurece, havemos de o trancar cada vez mais no castigo. Está desesperado.

Com efeito, Godard desesperava. No camarote, deitado de barriga para o ar, a barba crescida, o cabelo pelas orelhas, falava alto para se ensurdecer, para enganar os ouvidos, para iludir os próprios sentidos. Era trágico, mudando de voz, imitando vozes de mulheres, vozes de bichos.

— Oh! oh! Madame engana-se! Qual, é impossível que o Sr. Arsène agüentasse tamanha crueldade. Setenta dias, minha senhora! Eram uns castrados. Oh! perdão! Um patife! Ah! ah! Cocoricó! Boum! Vamos cantar um dueto? Valeu. Yes! Essa miss é deliciosa...

Os marinheiros incultos estavam receosos de que a razão de Godard tivesse afinal sido estrangulada pelo círculo do silêncio. Olhavam-no receosos. E Godard então pulava da cama, em ceroulas, desguedelhado:

— Não me falam, não é? Decidido! Afinal eu os desprezo, covardes, vencidos. Mas também não preciso. Estou conversando, estou ouvindo vozes responderem as minhas perguntas. Ah! Ah! O homem inteligente escapa aos maiores tormentos dos patetas!
Ao cabo do sexagésimo-nono dia, porém, Godard foi à mesa silencioso e sério, pediu um cigarro, passeou pelo tombadilho, dormiu direito, e logo pela manhã seguinte, deitado, chamou o guarda.

— Dá-me um fósforo.

O guarda aproximou-se, estendendo a caixa. Então o preso deu um salto da cama, arrancando ao marinheiro a arma num súbito ataque, bateu a porta rápido e, segurando-o pelo gasnete:

— Vais responder, agora. Anda, depressa! Responde! Faze sinal que sim. Faze sinal ou morres!

Uma luta travou-se. O marinheiro era um caboclo enorme. Prendera a mão que apontara o revólver, e com a outra arrumara um soco à cara do preso. Mas Godard sentia decuplicadas as forças. Com a mão livre, atirou-se ao sabre do marinheiro. O outro desviou. Caíram ambos, tropeçando num jarro. Godard parecia um florete, o marinheiro era uma torre. O fragor de luta chegou até nós. Corremos à cabine. A voz de Godard bradava:

— Fala, responde, dize qualquer coisa! Cachorro! Cachorro! Responde-me!

E móveis caíam, os corpos rolavam.

— É o Godard! Precisamos abrir.

— Está trancado.

— Abre-se a machado.

— Eu abro se me falarem — berrava de dentro Godard — eu abro se me falarem! Digam: Godard, abre! Mostrem que não estou morto, que eu vivo, que eu sou Godard!

Ah! bandido! que pensava ele, o infame? Os machados caíram na porta violentamente, fazendo saltar a fechadura, e por diante de nós ele saltou, brandindo o sabre, nu, com a cara em sangue, os cabelos empastados. Nem prestamos atenção ao marinheiro. Corremos ao encalço do bandido, para evitar que se atirasse ao mar. E foi uma caçada infernal a bordo. Era preciso apanhá-lo vivo, vivozinho, inteiro, para sujeitá-lo ao regime desesperador, de novo, eternamente. Godard, brandindo o sabre, encostara-se a um canto do salão de jantar.

— É preciso acabar! É preciso acabar! Canalhas! Vocês vão falar-me! Só uma vez! Digam: Godard, entregue-se! — e eu me entrego. Só uma vez, ou então eu me escapo, eu escapo, estou salvo... Assassinos! Vamos a ver quem é mais forte! Quem se aproximar, morre ou mata-me! A vitória é minha! Escapo!

Todos nós, mordendo os lábios para não deixar escapar uma praga, uma invectiva, paramos, com o desejo desvairado de matá-lo. E foi um instante apenas. A tromba precipitou-se para o sabre. Godard manejou-o, mas sentiu-se preso pelas pernas e emborcou, enquanto cem braços estendiam-se, arrancavam-lhe a arma, esmurravam-no, surda, silenciosamente. O desgraçado teve um grito.

— Outra vez! Para toda a vida! Oh! não! não! não!

Com o pasmo de todos nós, como se aquele muro de silêncio fosse pior do que a própria morte, desvairadamente, atirou-se ao sabre de outro marinheiro, arrancou-o, revirou-o, volteou-o no ar e, no círculo aberto por aquela inesperada sortida, bateu-o em cheio no pescoço.
Um jato de sangue golpeou no ar sombrio. A cabeça curvou, de olhos arregalados. Toda a guarnição parou. O corpo pendeu. Estava morto. Um ódio violento, um ódio desesperado, fez-nos ainda segurar o cadáver, a ver se ainda vivia.
O torpe fugira à sentença, escapara das nossas mãos, deixara-nos impotentes para continuar a apertá-lo infinitamente, naquele sudário de silêncio que fora o nosso mais feroz, mais tremendo, mais dilacerante castigo.




Autor: João do Rio
Produção Visual: Carlos Cunha








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