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Contos-->Eleições em Quibocó -- 17/12/1999 - 12:05 (Dioclécio Luz) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
ELEIÇÕES EM QUIBOCÓ

1, O PREFEITO

Olhou para o seu pé esquerdo e disse:
- Se não fosse o fedor você ganhava o prêmio Nobel de beleza.
Falou assim, sorrindo, com a boca cheia de mau-hálito, cú de gato, usando todos os seus dentes, como se fosse o homem mais feliz do mundo, sentado na cama, esperando que os sapatos se achegassem aos seus pés.
Seu nome? Eleubório. Homenagem ao pai, Eleusio e à mãe, Da. Esbórnia, que Deus os tenha em seus condomínios.
Agora Eleubório está ali, amanhecendo na casa de uma puta, moça de muitos dotes camarísticos, pouco se importando com a conversa alheia, a igrejística e a familiar, e mesmo a da rua. No fundo, no buraco de cisterna onde se esconde sua alma de bagre, dentro de sua cabeça de homem-macho, cabia-lhe bem esta fama, de sujeito ocupado em se ocupar da mulher de casa, esposa casada conforme as leis da sociedade local, estadual e nacional, e cuidar da outra, a amante, mulher de volume e muito peso, como convém a sujeito de poder, e ainda, vez ou outra, outra e outra, uma rapariga como aquela, de dotes razoáveis, de boceta quase fechada, recém-chegada que era ao ofício da putaria.
O prefeito era ele. Ele merecia. A ele cabia o poder e a fama. Todo mundo sabia:
- Em Quibocó só há uma lei, a minha - repetia Eleubório aos moucos, aos amigos e, principalmente, aos inimigos.
Ajeitou o bigodinho. Diante do espelho estufou o peito. Estava alegre por causa dos pelos cobrindo a boca, firmes e negros, muçum brilhoso. Era a sua epifania. Mas, nem tudo no mundo era perfeito, ele tristecia diariamente por lhe ser faltosa a gordura que faz ser o que são os homens de poder. Enchia o peito de ar, o batráquio, para esconder sua indignação diante da natureza, ela, imune aos churrascos, às macarronadas, aos banquetes, às comilanças, às cervejas, fazia-o ser magro, vergonhosamente despojado de densidade, ter peso específico tão irrisório. Eleubório era revoltado consigo, por ter um estômago perfeito, traidor, capaz de liberar rapidinho a comida, tornando-o cagador profissional, quanto mais botava por riba mais descia por baixo, nem demorando nas tripas para sua desgraça, que queria ter uma prisãozinha de ventrizinha, um enchimento, na falta de gordura que fosse de bosta, desde que não o fizesse ser o que era, magro, e, portanto, dito e sabido na cidade, fraco.
- Eh mundo de bosta... Pra que a gente tem que trabalhar, caralho?
Disse e jogou o dinheiro na cama onde dormia Shirley, agarrada nos seus sonhos de mulher-dama, pensando no dia em que ía ter dinheiro suficiente para pagar a um homem para trepar do jeitinho que ela queria. Dormia moça: a boca entreaberta, o corpo recolhido num desenho de feto, os cachos alourados cobrindo sua cara cor de bronze.
Eleubório abriu a porta e foi pro mundo.
Sentiu na cabeça o sol quente das dez horas e trinta e cinco minutos de Quibocó. “Vamos passar mais dois anos sem chuva neste deserto”, pensou agourento. “Não vai sobrar nem tripa de calango pra esse povo comer com areia e pau seco”.
Atravessou a principal avenida e parou na barbearia. Seu primo, Vegélio, passava a navalha na madeira leve, amaciando o fio.
- Você é o único homem que conheço que alisa cara de macho e ninguém diz que é perobo - disse para o outro.
Vegélio não respondeu. Pegou o pincel e espalhou a espuma amarela na cara marrom do primo. Olhou bem nos olhos de Eleubório. O prefeito disse, sorrindo:
- Você não tá pensando em me matar, tá?
- Eu? Que nada? Só ía dar um talhinho na goela, o bastante para ficar vazando até que morresse sozinho por aí. Por conta sua, compadre. Ou de Deus.
- Você até parece o primo Ermenildo, pistoleiro de agenda cheia - disse Eleubório. - Ele vive dizendo que não mata ninguém, só faz os furo, quem mata é Deus.
Quando o prefeito saiu da barbearia o sol estava mais quente ainda. Até as pedras rolavam de fininho, inclusive as mais graúdas, buscando a sombra das algarobas para fugir do inferno.
Sua natureza estranha, porém, fazia-o imune à fome solar. Mesmo empalitozado chegou seco e fresco ao trabalho.

2, A PREFEITURA

Ele gostava daquilo. Todos os dias lembra a primeira vez que cruzou aquela porta. Um primo lhe entregando o gabinete do prefeito, o rebanho lhe acompanhando, os puxa-sacos lustrando seu ego monárquico. Estava feliz com aquela folia. Só não lhe agradou saber que a oposição, sabedora do modo, digamos, indecente, como levara aquelas eleições, riscou nas paredes do prédio um poema do maldito Rilke:
Já justiça no mundo não há
Quem a justiça achar poderá?
Porque às leis da injustiça
Toda justiça é submissa.

Diabo de tinta subversiva. Ficou lá o poema, radiativo, brilhando no escuro, duro, imune aos querosenes, thinners, águas e sabões existentes.
Até que desistiram. Mas Eleubório, não. O primeiro ato do novo administrador foi aprovar recursos para pintura completa da prefeitura. Oficialmente, na empreitada foram derramados 490 mil galões de tinta, 580 latões de querosene, 2 mil pincéis. Foram contratados 850 homens para o serviço. A oposição mostrou que com esse material dava para pintar metade do planeta terra. A oposição também estranhou que as sobras de tinta, querosene e pincel tenham ido para as obras assistenciais da mulher de Eleubório, Orélia. Ainda questionou sobre a legalidade desses homens contratados pela prefeitura trabalharem na construção de um novo armazém para o prefeito. E só na semana seguinte descobriram que a loja de material de construção que venceu a concorrência para venda dessa tralha pinturista era dele, Eleubório.
Foi o seu primeiro processo. Mas, feito da couraça que reveste os deuses, e trazendo no sangue o DNA que sua família desenvolveu na região, tão firme e imune ao tempo quanto a serra que protege Quibocó dos furacões, Eleubório não levou aquele processo a sério. E nem os outros muitos que se sucederam. Afinal, desde o início dos tempos, desde quando o primeiro lagarto abestalhado trocou o mar pela terra, a justiça sempre esteve do lado de sua família. Crente na tradição, manteve o método que herdou de sua gente boa, especial.
Em quatro anos de mandato seu patrimônio aumentou duzentas vezes.
Eleubório gostava de saborear estas lembranças. Ao entrar na prefeitura neste final de mandato, sentiu que aquilo tudo era seu e dos seus: dos muitos parentes empregados - tantos que se metades deles trabalhassem, seria bastante para fazer a prefeitura funcionar.
Sorriu ao entrar na sua casa, a prefeitura.
Viu a nova secretária, novinha, carne tenra, e ficou tentado, na dúvida se era pra comer hoje ou depois de amanhã. Não admitia frescura. Se não presta para comer de que serventia tem uma secretária, então? Ía para rua se se mostrasse moderna, arredia. Exonerada - que não queria mulher incompetente lhe servindo. Mas hoje não ía ser possível:
- Caralho! - disse baixinho, ao espalhar sua bunda na cadeira - Hoje tem a bosta do comício.
Só faltavam cinco dias para as eleições em Quibocó. Sua intenção era eleger o secretário de Finanças, Abalvino, conhecido na cidade por ter um cérebro menor que o da pulga mais burra encontrada no planeta. O professor de biologia do colégio, inimigo escarrado do prefeito, afirmou certa vez que Abalvino era um fenômeno da natureza, talvez o elo perdido entre o homem e o fungo. “Se fosse levantada sua árvore genealógica se comprovaria que ele é de fato bisneto de um angico; ele está mais para abacate que para gente”, disse o cachorro do professor. “Chama-lo de ameba já é um grande elogio”.
Mas, e para que Eleubório e sua alcatéia precisaria de gente com cérebro controlando as finanças do município?
Entrou seu chefe de gabinete, Galdino. Não tinha passado dos trinta mas se o cristão disser que tem cinquenta anos não é mentiroso não.
- E então? - perguntou Eleubório, espiando no seu jeito de caminhar, arrastando os pés, curvado, com os olhos esticados, apalpando cada coisa, pegando sem pegar, grudando. Eleubório achava que qualquer dia desses ele sairia dali comendo as folhas da samambaia, assumindo seus dotes de lagarta. E uma lagarta parnasiana-burocrata:
- O juiz meretíssimo está aí fora. Quer falar com vosmissê - disse Galdino. - Desde cedíssimo.
- Tá bem, manda entrar esse bosta.
Quando o vento soprava mais forte em Quibocó dava para ver o juiz cercado de nuvens lá em cima. Tão magro, o coitado, que era inútil andar com os bolsos cheios de pedra: o vento jogava ele para cima de todo jeito. Subia num vupt!, e descia suave, com a cara cheirando a céu e maresia, a roupa suja de areia e um cardume de carangueijos que faziam morada em seus cabelos compridos. Daí muita gente achar que o céu era um mar e lá existia tudo isso que, contam, existe nos oceanos.
- Doutor Ermírio Roberto, seja bem vindo a essa bodega, onde mijo de lagartixa se mistura com processos, projetos de pontes e iluminárias alimentam os ratos da nossa cidade, onde as reinvindicações da população são zelosamente guardadas com as sobras da nossa cantina no albergue mais confortável das nossas mais amadas baratas.
- Você anda muito sincero, Eleubório, isso não é bom. Espero que esse hábito não ultrapasse as fronteiras deste nosso recinto. E que nossos inimigos na casa legisferante não venham a saber de discurso similar.
Eleubório apontou a cadeira à sua frente. Olhou para magreza do outro e se sentiu ótimamente bem. Havia ali alguém mais frágil que ele. Talvez Quibocó fosse o único lugar do mundo em que o poder não era adiposo. A taxa de colesterol era baixa. E o juiz, com seu aspecto de gafanhoto domesticado, dava-lhe este prazer.
- Apareça mais vezes aqui, meretíssimo. É sempre bom lhe ver - deixou escapar Eleubório.
- Venho a trabalho. À labuta, senhor prefeito. À labuta!
- E vivam as putas! - acrescentou Eleubório. - O que temos, porra?
Enquanto o juiz abria sua pasta, o prefeito lembrou a conversa tida e havida ali há quase um ano. Na época as disputas entre as duas facções políticas tinham se tornando guerra onde valia bala e facão. Os mortos, encaminhados sem pompa, matados por dentro e por fora, a maioria com as tripas largadas nas ruas, já contavam mais de 30 em menos de dois meses de disputa eleitoral.
- Precisamos fazer alguma coisa ou não vai ter quem vote nas eleições - disse ao juiz na época. - Pelas minhas contas, até chegar o dia, nessa porra dessa cidade, a gente mata 300 cornos, e eles matam 150 da nossa tropa. Ou seja, vai faltar quorun. Você que é juiz, pago para juizar, encontre uma solução que resolva o problema, porra!
Dois dias depois, e dois mortos e dez feridos, Ermírio voltou. Abriu a pasta e mostrou o mapa da cidade: a avenida principal, os dois mercados atulhados de tralhas e vozes, o matadouro de onde o sangue escorre numa hemorragia que não se acaba, o campo de futebol onde o Palmeiras e o Corinthias local costumam se digladiar na busca de uma bola aparentemente metafísica. A igreja, dominando a praça; o carro do prefeito, importado, humilhando as gentes comuns e as autoridades outras... Um carro no mapa da cidade? Sim, seu opala, vermelho, brilhoso, sem uma ruga sequer, um arranhãozinho besta, onde nenhum passarinho jamais cagou para não correr o risco de morrer baleado pelo capanga de Eleubório, pago pela Prefeitura para cuidar do bicho, é o único carro no mundo que faz parte de um mapa, conforme decreto de autoria sua excelência, o prefeito, Eleubório.
O juiz retornou com a solução:
- Habemus pacem! Eis a escapatória: dividir a cidade em espaços de atividade política. Cada qual atua em seu campo. E assim as refregas não acontecem mais.
- Que porra é refrega, caralho? - indagou Eleubório.
- Do lado de cá, a praça e a avenida, ficam com nossa gente. Também o espaço atrás da cadeia e a área em frente ao futebol.
- E esses picados marcados de vermelho... - interrompeu Eleubório.
- Aí está liberado para os adversários políticos.
Eleubório sorriu. Cumprimentou o juiz pela nobre decisão. Só osso, só quitina - não o imaginava capaz de pensar. Acredita Eleubório que a inteligência brota da gordura. Está bem que ele, com seu bigode e seus antecendentes ilustres, seja uma exceção, mas duas assim, na mesma cidade, é um desaforo ecológico, ou fisiológico, como queiram.
Aquele era um problema resolvido. Acabaram as brigas.
Isto aconteceu no ano passado. Agora o juiz vinha com outro problema. Os adversários querem acabar com as sacanagens políticas que, todo mundo sabe, representam uma tradição para o partido e para aquela região em especial.
Explicava Ermírio Roberto:
- Eles não querem que os Pereira votem. O mesmo igualmente Dona Zefilda e seus filhos, todos eles, nenhum deles. Ainda os Maciel que moravam na subida da ladeira de Santo Antonio. E nem mesmo a curriola de avôs e bisavôs de Elfídio Barreto.
- Isso é uma galinhada! - esbravejou Eleubório.
- E baseado em que esses pebas querem proibir esse povo de votar! Por acaso eles são Deus? - pergunta, também indignado, o amebíase, candidato a prefeito.
- Porque é defunto, seu Abalvino. Porque essa gente tudo já morreu, virou comida de minhoca, pó que alimenta a jaqueira do cemitério - cospe Eleubório.
- Sim, mas mesmo morto eles sempre votaram. Parente pode votar pelo ausente, é o que sempre digo. O fato de não existir jurisprudência não caracteriza o dolo - justifica o juiz.
Todos olham para ele. No fundo ninguém acredita naquela conversa. Mas foi o que sobrou.
O juiz, doutor Ermírio Roberto, todavia, tem problema maior que esse: querem impedir a Prefeitura de colaborar com o candidato da situação.
- A questão é que a lei não permite que a Prefeitura produza nem guarde chapa de candidato em suas instalações - disse o juiz. - Alguém vazou estas informações para os nosso inimigos e eles, estou sabendo, vêm me procurar para que eu faça cumprir a lei.
Eleubório não era sujeito de meias palavras, meias verdades, meia conversa. Era inteiro: um homem de mentira. Sabidamente um canalha, um patife, um crápula. Mas, inteiro. Nele não existiam duas partes. Era só uma. Na cidade não existiam duas versões, era só a dele que valia. Por isso, tudo aquilo que o juiz falava soava-lhe como estrombótico, estropótico, estapúrdio, onomomástico, escroto.
- Só tem uma solução - acrescentou o homenzinho de preto, magro, com a roupa fedendo a naftalina importada - primeiro, criar notas frias que justifiquem o gasto com a gráfica, segundo, quanto ao material impresso, tirar daqui o mais rapidamente possível.
Os reformistas queriam mudar o mundo. Era uma coisa que Eleubório não admitia. Ele não aceitava que mexessem uma pedra da configuração cósmica-política-social legada por seus avós. Tava lá no colégio, o nome de seu avô paterno, Osmualdo Libério; o mercado público foi batizado para homenagear seu avô materno; sua extinta avó Clotilde Amarélia era conhecida como rua principal da cidade; cada inseto, passarinho, porco e bode que comia na praça rendia homenagens ao seu finado tio-avô, Anfíbio Eleutério. O mundo era muito bom assim. Para que esse vexame em alterar? Por que essa vingança contra Deus?
Irado cuspiu na cara do amigo juiz:
- Solução de merda está me trazendo vossa meretríssima.
- Não é meretrísssima, é meretíssima...
- O caralho! - rosnou o prefeito. - Não vou fazer nada disso. No máximo vou juntar tudo numa sala do almoxarifado, onde guardo as traças e percevejos de nossa augusta casa Executiva. E pode ir que já basta de trabalhar por hoje.
Eleubório deu as costas para o juiz. Abriu a revista onde fartos seios e ancas tão grandes quanto jacas, estavam ali, com seus perfumes e seus sabores: doces sorvetes, doces mangas rosa. E mais não falou até que a porta se fechasse e a autoridade judiciária, com seu odor cretáceo, e depois seu pensar quinhentista, estivesse bem longe dali, ruminando desgraças, azares, dificuldades, trambolhos, a puta que o pariu.

3, O DELEGADO

Ofrênio, o delegado, sujeito de muita galhosidade, só viu Ariosmar e depois seus irmãos quando ele mesmo bateu na porta da delegacia e, fumando seu cigarrinho de fumo fulero, com a cara amarela que carregava em riba do pescoço há mais de 30 anos onde brilhavam dois olhos no meio da noite, ele mesmo, anunciou:
- Você tem um minuto marcado no seu relógio para soltar meu primo que taí, cozinhando no meio dos seus vagabundos.
Disse e continuou lá. Parado. Olhando pro delegado.
Ofrênio não era homem de ter medo. Gostava de fazer luto nos outros. Era fortaleza segura, garantida por uma carabina boa e meia dúzia de capangas, assassinos de pouco valor, gente que fazia serviço barato, mas ali eram respeitados como soldados, com direito a puta e salário.
Os irmãos apareceram lá trás. Distância de um peido. Os cinco tais. Todos pareciam tão pacatos, tão evangélicos. Quietos ali. Até Ofrênio chegou a pensar em brincadeirinha deles. Essa gente não era tão braba assim, ora, porra. Um berro e disparavam pelo meio da cidade, regurgitando suas poucas arengas.
Mas tinha lá o menor deles. O mais novinho. Ponta de rama. levantou mão e mostrou um galão. Que porra era aquilo? O menino-rapaz mostrou para o delegado que o galão estava vazio.
- Gasolina, caralho! - berrou Ofrênio, arrebitando o nariz, diante da mesma cara de anjo de Ariosmar.
Mas chovia. Chovia? Não era tempo de chuva. Então?... E aquele gotejar cardíaco, caindo de cima das telhas, ali, pingando ao seu ladinho, e ele com os pés metido na tal água da chuva. Chuva?
- Gasolina, caralho! - repetiu, tentando sair da poça onde se amontoava o inflamável.
Viu os outros galões amontoados junto dos irmãos de Ariosmar. E o reflexo dos vagalumes, e das luzes, e dos faróis na rua, e do campo de futebol aceso lá no fim da avenida, mostrando que tudo em volta estava coberto pela gasolina. Até o teto da delegacia.
E na sua frente Ariosmar, com o cigarro no bico.
Jogou o cigarro no seco. Pegou outro no bolso. E perguntou, ciente, angelical:
- Tem fogo, seu filho de rapariga?
Ofrênio não era homem de ouvir desaforo. Seu lugar tava reservado no inferno há muito tempo, com direito a cargo público e posição. O Cão que se cuidasse para não perder o mando. Ofrênio tinha talento. A cadeia lá atrás era ocupada por pulgas e carapatos. Era seu jeito de trabalhar. Na sua opinião de educador, ladrão bom é ladrão morto. Não gostava de sustentar bandido atrás das grades. Ou dava um sumidouro no sujeito ou rebentava de porrada o bastante para que ele morresse sozinho.
O rio Tietê, que passava fundo e largo naquelas bandas conhecia seu método de ação. Vinha Ofrênio com o ladrão e ocupava a ponte. O sujeito, trazia uma pedra amarrada no pescoço. O delegado ainda falava:
- Vou lhe dar uma chance, seu filho da puta. Sabe rezar?
- Sei.
- Pois, reze a melhor reza que conhece. Se ela for boa a gente joga você no rio e a reza faz a pedra boiar. Se ela não for boa você desce pra fazer companhia aos outros que estão lá embaixo, contando os peixes e falando da vida alheia.
Então jogava o sujeito da ponte com a pedra amarrada no pescoço.
Nem esperava o resultado.
- Vamos embora, cambada de corno. Vi pela cara dele que esse não era homem conhecedor de reza forte. Essa pedra não vai boiar. Perda de tempo a gente ficar aqui.
E saíam todos rindo, mangando do acontecido.
Agora aquele ali, metido a besta, a boca mordendo o cigarrinho de cheiro de bode, tranquilinho como se estivesse deitado numa varanda, na beira da praia, privilegiando-se do vento e da maresia aliadora, os olhinhos dizendo vem cá minha nega... Na mão o isqueiro de metale, não quer acender.
Ofrênio é macho mas não é radical.
Amofinou:
- Espere. Calma. Não acende essa porra. A gente solta o homem.
Grita para o outro lá dentro:
- Elpídio! Abre a porteira do tal que foi preso hoje. Deixa o homem sair.
O outro, Elpídio, ele mesmo, inocente do sucedido cá fora, metido na televisão, matador de uns vinte naquelas bandas, duvidou da ordem.
- Mais assim, seu chefe, no mole, não vamo nem dar uns tabefe nele, quebrar umas costelinha, chutar os ovos do corno?... Seu chefe, vão acabar dizendo aí fora que a gente é mole.
Ariosmar só ouvindo. Ficando sério. O sorriso escorreu da boca e caiu no chão molhado. O isqueiro resolveu acender. Justo agora.
- Porra! - berrou o delegado. - Eu disse agora, caralho! Abra essa porta e manda o homem para cá, porra! Já!
Ouviu-se uns passos lá dentro. Um barulho de chaves, um murmúrio de ratos correndo - coitados, espantados do sono - a porta se abrindo.
E loguinho o outro estava lá. Inteirinho. Nem uma dobra na cara, nem braço quebrado, nem sangue escorrendo. Aquilo era milagre genuíno. Daquela cadeia, todo mundo sabia, não se saía inteiro.
- Voces demoraram - falou o ex-prisioneiro, espiando a cara branca do delegado.
- É a chuva, primo - disse Ariosmar.
- Oi, choveu?...
- Num tá vendo?... Hoje deu pra chover gasolina... Melhor a gente ir pra casa logo antes que essa bosta pegue fogo.
Sairam caminhando, devagar, conversando...
- Primo, já lhe disse, fumar faz mal a saúde.
- É, eu vou parar com essa bosta - disse Ariosmar. Depois, displicente, como se ainda estivesse estirado na rede, na beira-mar, contando os vagalumes, ouvindo o cantar do grilo, assim, baiano, jogou o cigarro no chão. Mas ele só caiu na poça e se apagou.
O delegado entrou zangado. Zangado? Zangado uma porra. Entrou brabo na delegacia, mordido do Cão. Chutou a mesa onde juntava papéis, rosnou feito onça, e foi atender o telefone, que berrava lá do seu canto, nervosinho, todo histérico.
- Que é, porra? - disse Ofrênio, brabo, espumando pelas ventas, cheirando a enxofre, hidrófobo.
Do outro lado era o prefeito.
- É assim que atende telefone, seu merda? Venha logo na prefeitura. Tem assunto para você.
Chamou o ajudante e saiu disparado no rumo da Prefeitura.



4, O PADRE

O delegado, ele cá fora tão leonino, tão bubalino, tão canino, entrou pisando leve, mais parecia candidato a miss. Topou, do lado de fora do gabinete do prefeito, com os adversários políticos. A secretária mandou que entrasse.
O magricela do prefeito discutia com Abalvino, o candidato.
- Mas é preciso fazer alguma coisa. Não podemos deixar que esses filhos das putas façam cumprir a lei só porque a lei existe, ora. E daí?... Você é o candidato Abalvino, pensa numa solução.
Não era o seu forte:
- Eu não gosto de pensar. Acho que é falta de prática. E estou velho para aprender - disse.
Depois acrescentou, achando-se um sábio:
- Eu sou homem de ação. E não de filosofia.
- Ação? Muito bem, então aja, porra! - disse Eleubório.
O juiz, Ermírio Roberto, estava ali. Ouvindo tudo aquilo, na sua leveza de homem nascido sem ossos e muito pouca carne. O coração, no entanto, estava apertado. Só não tinha um enfarte, uma enfisema pulmonar, um miasma, sei lá porra, porque era muito magro para essas coisas. Tinha alertado ao prefeito e seus cúmplices para que não fizessem da prefeitura depósito de material de propaganda do candidato. Fizeram jeito de muro. Os adversários souberam e agora estavam ali, na porta, com uma ordem judicial para vasculhar a prefeitura.
O chefe de gabinete entrou esbaforido.
- Doutor Eleubório, se me permites Vossa Excelência, mas os outros lá fora estão dizendo que se o juiz não acatar a ordem que veio da capital eles interfonam com a imprensa. Não quero me vanglorizar não mas o índice meteorológico prevê terremoto caso não adotemos uma solucionativa com urgência.
- O que você acha disso, padre Leonardo?
O representante de Deus na terra tomou um susto. Queria ficar lá no seu cantinho, quietinho, encolhido, cuidando das suas unhas e de sua alma pecadora. Por que o chamaram ali? Só por ser cúmplice do prefeito? Mas outros também são. Cadê o dono do supermercado, os outros fazendeiros, o delegado? Não o delegado estava ali... Mas... Seu negócio era cuidar de ovelhas, e não desse gado ruim, brabo, que se espalhava por tudo quanto é canto, não respeitando cercado nem comando.
Padre Leonardo tinha fama de homem de opinião: estava sempre do lado do poder. Quanto ao sexo, fazia um esforço para não se tornar veado. Por isso vivia pecando do outro lado - era quase um tarado. Na falta de mulher atacava os bichos: cabra, mula, égua, vaca. Numa certa época teve predileção pelos galináceos.
O delegado se lembra. Não foi um caso difícil de resolver.
A mulher denunciou: suas galinhas vinham sendo estupradas. “Há um tarado de galinhas nesta cidade”, disse Dona Marciana, que tem 53 anos, é viúva, mãe de cinco filhos, dona-de-casa, residente na rua General Severiano Augusto, número 35.
Acompanhado de mais dois policiais, Ofrênio esteve no local e confirmou o fato: três galinhas apresentavam sinais de que haviam sido submetidas à violência sexual. Uma pretinha, que Dona Marciana chama de Laura; uma branquinha, batizada por Maria Lúcia; e outra do pescoço pelado, conhecida por Maria Helena. Tinham nome de gente as tais, coitadinhas.
- Temos que mandá-las para exame no IML - disse um dos policiais, acostumado a assistir os jornais na televisão.
- O principal suspeito é o galo - foi logo avisando o outro policial. - Onde se encontra o elemento?
- Marcos Augusto é inocente, eu garanto - disse Dona Marciana. - Ele sempre foi carinhoso com as meninas. Jamais faria uma coisas dessas. Nem teria motivo.
- Tem razão, minha senhora - observou o delegado. - O suspeito é um homem sim. Percebe-se pelo, digamos, pelo exagerado diâmetro do orifício na vítima. E também pela peça usada para cometer o crime. Eis a pedra em que ele se sentava para abusar sexualmente das penosas.
Ao lado encontrou as marcas dos sapatos de um homem.
Presumiu: à noite ele tirava as galinhas do sono para forçá-las ao ato. O delegado, mesmo com o pouco cérebro de que dispunha, descobriu rapidinho a verdade. Por que? Porque no passado também ele tinha essa prática, digamos, cultural. Sempre há riscos de acidentes, quando se namora uma égua por exemplo, ou uma vaca, uma jega, mas fora isso, é até aconselhado, dizem, pela Organização Mundial de Saúde. O delegado não via problemática na cultura - ele, que também seguiu a tradição, namorando com as cabras que criavam, a vaca jersey do vizinho, a égua do finado Osmervino. Ah, porra, aí foi paixão porque a danada da égua já lhe procurava na rua, conhecendo seu cheiro, se oferecendo-se, eqüina, escandalosa. Depois de velho no entanto, o delegado, feito quase todo mundo, foi apreciar as peles, bocetas e peitos de mulher de verdade, que são bem mais gostosas que as tetas bovinas ou a pele das caprinas.
Sentou-se na pedra. Vasculhou na sua memória quem ainda mantinha o costume depois de maduro. Apareceram três nomes. Só três. Pensou quem seria capaz de forçar uma galinha à fornicar. Olhou por cima do cercado baixinho e viu a igreja, branquinha, brilhando naquela manhã tão bonita.
No dia seguinte, no confessionário, onde baratas e ratazanas passavam o dia discutindo novela e futebol, o delegado se sentou, ocultista, aguardando o padre Leonardo. Não demorou muito, só o tempo de um boi caminhar três metros, ouviu pelo ranger da madeira que o outro estava lá, na escuta.
- Padre eu estou para pecar - disse, sonso, angélico.
- Como assim, filho?
- Descobri um criminoso e penso em divulgar seu nome. É bom que a cidade saiba com que está convivendo, não acha padre?
- É justo, meu filho. Para que possamos separar o joio do trigo. Mas, é algum crime terrível? Caso de assassinato,
- Não padre. trata-se de abuso sexual. Algum pervertido anda comendo as galinhas de Dona Marciana.
- Ah... É um ladrão de galinhas?... - gaguejou o padre, eclesiásticamente.
- Não. Ele não rouba, come lá mesmo.
- Mas... - gaguejou quem não era gago - Mas... Comer galinha é... É... proibido?...
- Pelo cú é, seu padre. Ainda mais sendo dos outros. Cú dos outros, ou das outras, tem dono.
- E... Quem é o criminoso?...
- Você!
- ...
- Mas, claro... Posso arranjar outro bandido como culpado... Talvez Zé de Preta, que é um vagabundo, além do mais é negro. O senhor sabe, negro gosta de fazer isso...
- É verdade.
- O problema não sou eu. Trabalho pela pátria, padre. Sou um nacionalista, um humilde servidor público. Já os outros meganhas, não. Vivem do dinheiro... Só trabalham se tiver dinheiro. São uns mercenários. Precisam de dinheiro para falar; querem dinheiro para se calar...
- Quanto?
Isso aconteceu no ano passado. Fizeram o acordo sem brigas. Nas pazes divinas.
Era sabido que esse padre estava do lado certo. O lado do poder. Dizia para todos que era um homem apolítico. Ninguém acreditava. Cada vez que a família do prefeito ía à igreja pagar seus muitos pecados, aproximar-se de Deus, padre Leonardo citava o trecho bíblico que os donos de Quibocó gostavam tanto, Romanos 13:
“Todo homem se submeta às autoridades constituídas, pois não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram estabelecidas por Deus. De modo que aquele que se revolta contra autoridade opõe-se à ordem estabelecida por Deus”.
Não existiam brigas entre ele e o prefeito, o delegado, e satanás - se é que o diabo existe... No máximo algumas discórdias. Mas era sempre possível um acordo. “Quando a gente quer ganhar deve tratar bem o adversário”, era sua sapiência matinal, repetida após cada rezume.
Agora, ali, um olhando para outro, prefeito, candidato a prefeito, o delegado, toda essa gente, sabia, eram amigos. De certo modo foram eles que inventaram o veneno da cobra. Havia uma solidariedade entre os da espécie.
Eleubório insistiu:
- E então, como vamos sair dessa?
Padre Leonardo olhou para Eleubório e escamoteou:
- Não sei não.
O outro cuspiu no chão. Olhou zangado pela janela aberta. Seu ódio era tão grande que afastou as nuvens que se amontoavam sobre a praça, aprontando as chuvas esperadas ali há mais de meses.
- Isso aqui é um laboratório de análise de fezes. Tô cercado de merdas.
Cuspiu mais uma vez.
- Tá bem - disse o prefeito, olhando para o delegado - manda esses merdas entrarem.

5, A OPOSIÇÃO

Eram só três. Um casal, Jesuíno e Vanalva, e mais um contra, Agápito.
O padre Leonardo olhou para os dois e virou a cara. Conhecia aquela corja - viviam provocando brigas na cidade. Lembrou que uma vez Vanalva foi lhe procurar. Era de noite, a noite estava assim, explodida de estrelas, e a lua fazia pantim antes de invadir o negrume do teto. Vanalva veio com aquela conversa besta. Coisa mais cheia de imoralidades. A danada queria rezar uma missa para as raparigas.
- Mas de jeito nenhum! - arrebentou padre Leonardo. - Uma missa para as putas? Aqui?! De forma alguma.
Vanalva se calou, só reparando na balbúrdia que fazia o tal. Dentro da batina tinha um homem se esbravejando. Suava dentro do seu sotaque italiano. “O sotaque deve cansar o sujeito, essa fala emborcada, cheia de macarrão, deve mexer com as fezes que residem na cabeça desse enrolador”, pensou Vanalva, espetando sua avaliação diante do escândalo do padre.
- Tem mais uma coisa, querida: não fica bem para uma moça distinta como você freqüentar os cabarés da cidade.
- Mas quem disse que eu sou distinta, seu vigário? - debochou a outra.
Leonardo, que é branco, branquinho, todo ele feito da alvura divina, da mesma cor dos anjos, da pele macia de Jesus, da raça boa que existe na terra, da cor do açúcar de se fazer bolo de noiva, de tudo que presta sobre o planeta, ele, então ficou vermelho. Devolveu o tiro: pá!
- Talvez você não se considere como tal. Mas sua mãe, Dona Quitéria, e seu pai, Seu Hermenegildo, têm-na por pessoa distinta, sim. E o povo tem comentado que você vive demais no meio das prostitutas. Eles já estão falando que você vai acabar sendo igual uma delas. E você sabe, não é?, aqui quando se fala uma coisa, ou a pessoa foi, é, ou será.
Vanalva, nascida ali, mulher que conhecia tudo quanto era lagartixa do lugar, as pedras, as gentes, também cada pássaro que fazia morada naquela praça, e também os rios, e as plantas, o vento frio e o quente, Vanalva, não perdeu o ritmo. Seu destino era estar ali. Defensora dos direitos de todos, incluía as raparigas, as putas, não se estremecia diante de um padre. Um padre de fala escominchada, como se dentro dele existisse um formigueiro.
Olhou para o tal embaixador do Todo-poderoso e disse, mastigando cada palavra:
- Se é verdade isso, acho bom o senhor prelado tomar cuidado. Andam falando por aí que vossa eminência é veado. Sei que é boato. Mas, como o senhor mesmo disse, quando falam uma coisa, a pessoa é, foi, ou será...
A missa acabou acontecendo. Foi o maior rebucetê na cidade. Todas as putas estiveram lá. Algumas, mais afoitas, foram com a roupa de trabalho, revelando seus decotes, suas doçuras, suas coxas macias, suas barriguinhas, deliciosas, suas boquinhas melosas, as mais novas com seus peitinhos de manga rosa e as velhas com as muxibas gastas, comidas pelo tempo e pela fome dos fregueses, todas com suas dengosidades, rebolados, as bundas, sim, as miúdas e as maiores, todas conhecidas dos homens, que, ficaram em casa, amarrados pelas matronas de Quibocó, assistindo televisão, resmungando do tempo, da novela, dos filhos, do cachorro, da chuva que não vem, do barulho na pia,... Por dentro e por fora: jiló, para aguentar o papel de moralistas, eles, que tantas e tantas e tantas vezes foram até elas, e conheceram seus ardores, as xerecas macias, e tomaram três banhos quando chegaram em casa, não para se livrar da mácula de trair a mulher, mas para tirar o bom cheiro de mulher de puteiro, suas quenturas, seus saberes, os perfumes de mulher da vida, de bem com a vida, de fazer felizes os homens dali.
O padre, comedor de galinha alheia, teve que comer aquele sapo. No sermão ainda apelou para necessidade de se conquistar a salvação através do espírito e não da carne. Disse da importância das pessoas obedecerem aos dez mandamentos. Finalmente, já assediado pelo calor dos decotes, pelos lábios carnudos, pela lembrança do ofício daquelas meninas, pensando na punheta que ía bater mais tarde, Leonardo disse, primeiro, amém, depois, passe bem.
Correu para sacristia fugindo delas e de si. Sentou-se num banquinho limpando o suor da cara, e tentando segurar o calor que vinha de dentro e acendia as partes santas entre suas virilhas.
Agora, naquela Prefeitura calourenta, o padre tinha que agüentar a responsável pelo acinte: Vanalva. E seu marido, Jesuíno. Foi se esconder na janela, espiando a cidade suja, os esgotos correndo nas ruas e desaguando no rio onde todo mundo se banhava. Lá caía o fluido dos miquitórios, os públicos e os privados, armazém de bosta virou o rio belo, latrina de todos, e de lá se puxa a água que serve ao povo, com seu cheiro de cocô e agrotóxico. Era um rio sem poesia. Tão sujo que nem a lua mais se refletia nele. “O rio ficou igual a gente que mora nas beiradas dele”, blasfemou Ovídio, tido como louco por ali, num assombro de juízo. Cuspiu de lado espantando o pensamento maldito. Não ía este pensar obsceno se querer se grudar nele, feito uma consciência...
Jesuíno tem cara de lobisomem. Sabe como é lobisomem: a cara barbuda, branca, os olhos azuis que brilham no escuro feito fossem radiativos - e é. Não brinque com ele, que pode perder a mão se for ladrão, o pé se for bandido. Se o cabra não presta que se cuide, pode virar líquido. A alcatéia do prefeito, em comparação, é isso: espremendo, botando num vidro e depois pulverizando na roça, funciona melhor que o tamaron, folidol, dithane - é veneno dos bons.
Jesuíno, filho de onça pintada com cascavel, não era de muita conversa. Trazia um aparato policial federal que estava lá fora. Na tocaia.
- Onde está o material de propaganda eleitoral que a Prefeitura produziu?
Eleubório, encarado assim, ciente de que sua proteção policial se resumia a um delegado meganha que só brigava com ladrão merréi da região, amofinou. Tentou segurar a lona do circo que ameaçava desabar:
- Não sei do que o senhor está falando...
O visitante meteu a mão no bolso e tirou dois panfletos. No colorido se vê a arrogância de Eleubório ladeando seu candidato, Abalvino - o cabra está azulado, e não é por falha de impressão. Mistério que não se solucionou até hoje: porque este homem tem a pele azul? O professor de biologia do colégio mantém sua tese: parentesco com a ameba. “Este é um homem de genes limitados”, avaliza.
O outro era uma cédula de votação. Igual, cuspida e escarrada, a cédula que seria usada no dia da eleição. A turma do prefeito iria entregar aos eleitores, já marcadas com os nomes dos seus candidatos. O eleitor, curralado, seria instruído a guardar a que recebesse lá, na boca da urna, e depositar na cumbuca essa outra, já prontinha, arrumadinha, sacaneadazinha.
Jesuíno prosseguiu:
- Descobrimos na capital a gráfica que rodou esse material. Foi paga pela Prefeitura. Temos até a cópia da nota fiscal. Agora só falta os panfletos... Viemos buscá-los.
O prefeito remoeu seus poderes. Podia contar com quem ali? Tudo uns bostas. Nem mesmo o juiz, com seus poderes jurídicos segurava aquela porra. Nem mesmo o delegado, homem de picar cobra e comer com farofa. Ali era tudo frouxo. Arriscar um escarcéu? De jeito nenhum. Tinha lembrança de outros insucessos... Mesmo assim, escamoteou...
- Vocês podem olhar onde quiserem. E vão descobrir que não tem o que se descobrir.
Jesuíno olhou para Vanalva. E, sem se falar, os dois disseram: “está bem, se esse corno quer assim, vai ser assim...” Deram um berro pela janela e loguinho dois policiais estavam juntos deles.
- Se nos permite, nesta caça vamos acompanhados
Naquela sala tinha um armário, um bicho de madeira antiga, tão velha que nem os cupins tinham mais gosto em digerir aquilo. Foram ver lá. Abriram. Papéis. Não eram os que buscavam. No outro armário, além de papéis encontraram garrafas de cerveja, uma coruja empalhada, duas pizzas abandonadas da festa de inauguração das prefeitura há mais de 3 mil anos, um rebanho de baratas, gordas e formais, conversando besteira, falando da vida alheia, da alta sociedade, jogando cartas, imunes ao tempo e aos homens.
O prefeito sorriu. Sorriu com sua magreza. O bigodinho brilhando.
Seguiram para a outra sala. Eleubório, Abalvino, o juiz, o delegado... Uma procissão. Vanalva reparou que aí o povo trabalhava normalmente. Jeuíno ainda foi espiar no armário... Ela desconfiada... Enquanto seu companheiro e os policiais mexiam nos armários, fuçavam nas gavetas, espiavam nos nichos dali, ela pensava...
Passaram para outra sala... E Vanalva pensou: “não é aqui...” O prefeito, que tudo olhava, temendo o pensar daquela mulher. Não dava nem para saborear a perdição dos seus inimigos, daqueles baitolas invasores do seu principado.
Na terceira e última sala Vanalva sentiu que havia algo de estranho. O lugar estava muito arrumado, limpo, sem o fedor dos ratos e o cheiro pesado do bolor que exala do suvaco dos papéis quando eles se banham na umidade e depois ficam expostos ao tempo. Ali mais parecia lugar decente. Cada coisa no seu lugar, cada gente na sua lida limpa, toda escrivaninha arrumada. E havia uma porta. Uma porta? Sim, mas era da cor da parede. Pintada recentemente. Encostada a ela tinha uma escrivaninha...
- O que há aqui atrás? - Perguntou Vanalva ao prefeito.
A parede era amarela, meio creme de baunilha, brilhosa. Eleubório ficou igualzinho a ela. Todo mundo parou, no silêncio, ali, grosso, gelado e verde feito um sorvete de abacate.
- Atrás de onde? - Perguntou, descrente do que dizia.
Jesuíno sorriu. Parecia que tinham encontrado um dinossauro, vivo, junto de uma criação de galinhas.
- Ah,... Atrás não é nada... - sofria o prefeito. - Um depósito de tralhas... Coisas inúteis.. Só um buraco inútil.
- Só tem um jeito da gente saber o que tem atrás dessa porta - disse Jesuíno, insensível ao padecer de Eleubório. - Vamos abri-la.
E tratou de afastar a escrivaninha que tapava a entrada.
- Me dê a chave, seu prefeito - pediu Vanalva.
- Ah, a chave não tem - disse Eleubório, já expelindo a raiva natural que lhe enche as tripas e as veias, desde que veio ao mundo para ser o que é, um belíssimo exemplo de ladrão e canalha para o universo.
- Bem, se não tem chave, inventemos outra coisa - diz Jesuíno.
E com um chute na barriga da porta faz com que ela se abrisse despudoradamente.
Lá dentro, o que se esperava, o Apocalipse de Eleubório, a prova de que andava sacaneando: cédulas, igualzinhas as que seriam usadas nas eleições. Evidências visíveis. O delegado nem estava mais ali, se esconde-se, sumiu - neste dia não foi visto nem nos puteiros, onde todas as noites, na saída do trabalho, fazia parada antes de voltar para sua mulher, distinta dama, famosa por suas ações filantrópicas. O juiz também se escafedeu - dizem que o magro ocultou-se, blasfemo, nas grotas dos ratos que viviam ali, serenos, senis. Foisembora uma semana, ou pouco menos, o tempo de um boi dar a voltinteira num pasto de meio hectare, mais o tempo de uma mosca subir e descer três vezes sobre um prato de comida num boteco de beira de estrada, até que o juiz fosse visto novamente.
Da corja municipal ficou somente Eleubório, seu candidato, Abalvino, azul celeste, inocente diante da ruma de papel apontando o crime cometido. “Mais alguns milhares de anos e seres como Abalvino evoluem até o máximo de organização para espécie, um fungo” - comentou certa vez o professor de biologia do colégio.
- Seu prefeito, V. Excelência entrou numa fria... - observou Vanalva.
E a Prefeitura de Quibocó, pela primeira vez em sua história foi lacrada, conforme decisão do juiz eleitoral do estado.

6, AS ELEIÇÕES

Nas eleições em Quibocó os defuntos votaram. Ôxe, se sempre foi assim. Também se obrigou peão, vaqueiro, servidor público, mestre de obras, pedreiro, agricultor, a votar como determinou seu patrão.
O prefeito, como se sabe, utilizando seus conhecidos na capital, livrou-se da pena por fraudar cédulas de votação. Perdido nas instâncias estaduais, o caso foi à Brasília, onde o Supremo Tribunal Federal, ladino, olhos de raposa, percebeu que outra pessoa, e não o eminente prefeito, havia feito a maracutaia. Eleubório, foi considerado honrado, limpo, um homem sério.
O único incidente citado nos autos policiais do Segundo Distrito, refere-se a discussão tida e havida com a participação de Jesuíno e Vanalva. Os dois estavam fiscalizando o infiscalizável e descobriram um cabo eleitoral do prefeito obrigando o cidadão a votar em Abalvino.
- Não senhor! - Gritou Vanalva. - Ele vai votar em quem quiser.
- Nada disso, madama, esse cabra tem que votar em quem o patrão determinar, tá compreendendo? - disse o tal, que era bem mais profissional pistoleiro que cabo eleitoral.
- Já disse que não vai acontecer - segurou Vanalva.
- Pois então vai ter confusão, tá compreendendo? - alertou o sujeito, puxando um revólver, que, dizem as testemunhas mais medrosas, tinha metro e meio de língua. - Se ele não topar eu dou um tiro nele, tá compreendendo? Um tiro na testa, entre as sobrancelhas, tá compreendendo?
O povo lá, votantes e mesários, quando viram o trabuco do homem, arremedaram para a rua. Desapareceram. Quase todos. Ali ficou Vanalva. E Jesuíno no meio, tentando segurar as duas onças. O sujeito, o mote da confusão, estava lá no meiinho disso tudo. Era todo mundo girando. Uma dança? E quase se agarrando. Um xamego, visse. O bandido aqui, mais junto de Vanalva, e depois Jesuíno, e o eleitor querendo correr e não podendo, e o outro, de lado, preparando a mira.
- Se não vota no determinado, ele morre, tá compreendendo? Atiro nele.
- Ah, é? Pois atira! - dizia Vanalva. - Vai, atira que eu quero ver. Atira se for homem. Tu não é homem mesmo.
O homem do revólver se arrumando, se aprumando, se ajeitando para dar o tiro. O sujeito, o eleitor, se escondendo atrás do nada. Vanalva querendo agarrar o pistoleiro e ele se esquivando, ajeitando o tiro. Jesuíno ali, o rume-rume, não sabendo se segurava a mulher, o bandido, ou eleitor. Na dúvida, deu um salto e antes que o bandido pudesse dizer ai, ui, arre!, caramba, puta-que-o-pariu, Jesuíno estava ali, de cara na cara dele, espiando nos seus olhos, matando o homem de susto, vendo o inexplicável - de que mundo terá brotado tal lobisomem - se perguntando que fazia ali aquela assombração que ainda há pouco se se misturava com a mulher e o outro, distante. Só pensou isso. Isto é, não pensou porra nenhuma. Não deu tempo. Quando ele olhou para si estava voando de costas, derrubado pelo murro de Jesuíno. E ponto final. Porque, ao que se sabe, diz a lenda, esse aí virou crente no dia seguinte, convertido, falam, em virtude de ter perdido o cérebro; “foi um choque anafilático provocado por um murro divino”, explica hoje o pastor na igreja. O importante é que o antigo pistoleiro viveu feliz até os últimos dias, pregando o Evangelho, criticando a violência da cidade, e, finalmente, se unindo ao padre numa campanha de defesa da tradição, família e propriedade. O que não faz um murro terapêutico?...
Teve outro murro nessa história.
Foi no comício da situação.
Da capital vieram os companheiros de partido do prefeito. Veio o vice-governador, Mardoqueu Maziel, e um deputado federal, Sonsinho Carvalho. Tinham nome de gente mas eram sim gabirus de primeira cepa. Gente que inventou o peido do Cão.
Mardoqueu é feito da massa fina do pão francês. Branco e espigado feito uma baguete. A imprensa apelidava-o de Poste. Mas os amigos - e na política que freqüenta amigo e inimigo é a mesma coisa - chamam-no de Doutor Bosta. Por quê? Ora, porque sempre está em cima, boiando, ao lado do poder. Fede. Mas isso é outra história. Nada que um desodorante bastão não oculte. Se fez na política colaborando com tudo quanto foi governo que passou pelo país: se tem Governo ele é a favor.
O outro pústula, o deputado federal Sonsinho Carvalho, tem a pele escura, os cabelos enroladinhos. Negro. Mas se diz, ele, “queimado de sol”, negro jamais. Moreno. Moreno escuro. “Um deputado que preste não pode ser negro”, explicava aos amigos na sua sobriedade de jaca. “No máximo sou um negro de alma branca”, acrescentava, despudorado, mostrando os dentes brancos onde, ao que parece, guarda essa sua alma clara. Sonsinho se fez deputado desde os tempos em que não existia o mar. Sempre foi e será deputado. Elegendo-se com a distribuição de buchadas de bode, alpercatas, cesta de comida para os miseráveis, promessas de emprego.
Os dois saíram abraçados do carro procurando o comício. Um servindo de estaca para o outro, bambuzados, bêbados.
- Onde é que é a porra do comício? - todo mundo ouviu Mardoqueu perguntar, líquido, alcoólico, em frente à praça, onde se ajuntava o povo.
Era lá mesmo. Talvez ajudados pelos guardas, ou pelo demônio, o vice-governador e o deputado federal, subiram no palanque.
Era Abalvino que falava. Falava? Não. Expelia algo pela boca, um dialeto extraterrestre ou egípcio...
As autoridades reconheceram os visitantes ilustres. E loguinho tomaram o microfone do fungo-homem Abalvino.
O locutor era o chefe de gabinete de Eleubório:
- Eis que nos vemos aqui diante da presença ilustrérrima de duas dignas personas, representantes da nossa ousada política brasileira nacionalista e pós-liberalista...
E por aí seguiu, desenhando, empáfio, o retrato dos ilustres convidados: os dois crápulas - um estadual e outro federal.
Mas ali não havia distinção. Todo bêbado é igual, como reza a Epistola de São Mateus; Cú de bebo não tem dono, como estabelece o Pentateuco em seu Livro quinto, conforme o versículo dois, nas palavras de Simão, o besta. Em resumo: autoridades ou não, os dois não sabiam o que usavam primeiro se a língua ou as pernas.
E Eleubório ao lado, dentro dos seus olhos finos, arregalando os olhos, porque, esperto, sabia que aquela festa não ía dar certo. Já de olho no caminho de saída.
O locutor fez a besteira de anunciar a presença do vice-governador na cidade. Pior, entregou para Mardoqueu o microfone.
O vice-governador normalmente não é de falar. Faz tudo nos cantos, nas esquinas, nos gabinetes. A cerveja, que normalmente ele não bebe, misturada com uma cachaça de beira de estrada, foram os responsáveis pelo estrago. O homem estava um bagaço.
- Porra! - ele disse, se ajeitando dentro do paletó suado. Uma palavra histórica. Foi a primeira proferida pela maior autoridade que já passou por Quibocó.
A segunda foi: caralho.
Finalmente conseguiu alinhar uma frase. Infelizmente:
- Eu vim pedir os votos de vocês, seus merdas, para o meu candidato, um bostinha, porque vocês também são uns merdas, e merecem ele.
Lá debaixo alguém devolveu:
- Merda é a puta-que-pariu, seu corno!
Normalmente Mardoqueu não briga em público, não discute, não polemiza. Quando alguém lhe perturba, aciona seus parceiros no poder, e o tal, não sendo do mesmo nível, leva um tiro ou uma facada política, e morre ou cai de quatro.
Mas hoje ele resolveu abrir as portas dos demônios que sempre carregou consigo.
Quando o outro berrou lá de baixo, um baixinho magrelo com jeito de quem come carne de bode uma vez por semana, o vice-governador não se avaliou, e saiu em disparada, descendo do palanque para topar com o atrevido.
Segundo as testemunhas, no rol do qual se inclui Seu Leonardo, diretor do Palmeiras Futebol Clube local, Zé Buzina, dono da melhor oficina mecânica da cidade, doutor Roberto Galleti, médico do posto de saúde e atleta nas horas vagas, capaz de fazer trezentos metros em quinze segundos, toda essa gente percebeu que Mardoqueu ía proferindo a frase célebre, a mesma que Jesus usou quando foi questionado por Pilatos: “você sabe com quem está falando?...”
Não deu tempo. O murro veio de baixo, reto, acertou-lhe a cara antes que o vice-governador tomasse pé do mundo. Devido à sua altura demorou para sair da vertical para horizontal. Mas, um segundo antes de perder a visão deste planeta, mesmo que fosse daquele jeito, cheia de luzes extraterrestres e seres gosmentos, Mardoqueu ainda pensou que tinha errado o caminho, ao invés de descer para a platéia embaixo do palanque, foi dar num curral, e aí uma mula esganiçada acertava-lhe um coice estratosférico.
Depois disso houve tiros, correrias, mulher gritando, cachorro latindo, o poder local se escondendo debaixo das mesas de cachorro quente, até que o comício acabou se acabando.


7, O FIM

Em Quibocó o calor chega todos os dias. No verão, dizem, Deus entrega o lugar ao diabo e sua trupe conservadora. Mas o Cão, que não é besta, só vai lá, assina o contrato, e rapidinho abandona o lugar à sua sina de fogueira. Dizem que num desses verões mais quentes, fez tanto, mais tanto calor, que as pedras se derreteram no meio das ruas e as galinhas botaram ovo cozido.
Fuxico.
Exagero.
Eleubório tinha bom senso e pele de camaleão para ver que não era tão quente assim.
Jogou o dinheiro para Shirley, profissional das camas e dos aconchegos, e se meteu na rua onde o povo resmungava do calor.
Olhou para a os bodes comendo capim na praça, e as vacas e os porcos, deitados na lama. Aquela pintura era do tempo da Renascença. Olhou com compaixão, com tristeza, benevolente.
- Tudo isso vai acabar - falou, mastigando cada palavra, temendo que o vaticínio viesse antes do previsto. - Um dia aqui explodirá uma bomba atômica.
As pessoas evitavam encontrá-lo. Achou que caminhava por uma cidade vazia, largada à sua má sorte. Os antigos amigos ocultavam-se, acrobatas, atrás de bancos de praça, árvores, cavalos e carroças, postes...
Entrou na barbearia do primo. Vegélio afiava a navalha na madeira.
- Se eu não fosse tão bonito e gostoso mandava me matar - disse Eleubório, ajeitando seu bigodinho fino e sua magreza diante do espelho. - O mundo deveria saber como eu sou importante para ele. Bem que eu merecia uma estátua nessa cidade.
- Como a tia Zéldia, e tio Ormundo, e tia Orélia...
- É. Bem que mereço, primo.
O barbeiro espalhou a espuma amarela em seu rosto. Não se falaram por um minuto. Dois. Três. Com a navalha Vegélio foi cortando os pelos do magro, e o silêncio duro, rasquento que ameaçava baixar ali.
- E então, primo, eles já tão mandando em tudo, né?
Eleubório se mexeu na cadeira. Foi uma formiga entrando pelo rabo. E mordendo seu fiofó.
- É - disse baixinho. Mas todo mundo na cidade ouviu porque foi dito com a raiva com que se geram os demônios.
E veio novamente o silêncio. Vegélio ficava incomodado com aquilo. Falou besteira:
- Eles pegaram a Prefeitura mas não a nossa alma, primo.
Eleubório, que tentava se achar no espelho, levantou os olhos para o outro:
- Não pegaram a alma porque há muito tempo não temos mais, primo - disse, resignado. Foi o único instante de sua grande e magrela e devassa vida nesse planeta em que foi sincero.
- O fato deles terem vencido as eleições não quer dizer que nos venceram - insistiu, falando besteira, o outro. Mas com justificativa - tinha pavor ao vazio. E ainda mais que não se ouvia nada ali. Nem de fora vinha som. Nem os pássaros cantavam mais. O que eles conversavam, imaginou Vegélio, dava para se ouvir na cidade vizinha. “Vamos falar mais baixo”, pensou.
- Não. Eles não nos venceram - disse Eleubório olhando-se no espelho. Viu: seus olhos estavam lá. Sinal de quem ele estava bem vivo. Era um pavor antigo, de menino: um dia olhar-se no espelho e não se vê. Mas, mesmo com a derrota, ele permanecia vivo. Magro, aquela magreza rebelde, comunista, e com bem menos amigos, mas, vivo.
O outro acordou-o do devaneio:
- E o processo que lhe movem?
Tava feio, ampliara-se: corrupção, extorsão, apropriação indébita, uso dos recursos da Prefeitura em campanha eleitoral,... Ao contrário do que era tradição, seu advogado perdia em todas as instâncias, seu nome caía num buraco, uma fossa. A contragosto, engolindo devargazinho aquele batráquio, respondeu, mentindo como sempre, voltando à normalidade:
- Está tudo sob controle - disse. Mas loguinho voltou a ter medo porque no espelho, ele viu que não existia, não existia mais nada.
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Do livro "GENTE SOBRENATURAL", publicação do autor, novembro de 1997, Brasília...
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