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Contos-->Ameaça Digital -- 11/02/2010 - 22:20 (Aléxis Rodrigues de Almeida) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
PRÓLOGO

Santiago, Chile

Enquanto corria, André podia sentir o coração quase lhe saltando pela boca. Estava ofegante. O gosto de sangue lhe afligia tanto quanto a lembrança inquietante dos seus incansáveis perseguidores.

Sabia que não conseguiria manter aquele ritmo por muito mais tempo. Embora não fosse um completo sedentário, ele também não podia se considerar um atleta. Os poucos momentos diários dedicados aos exercícios físicos eram suficientes apenas para mantê-lo em condições de suportar as longas noites de estudo.

Consciente de sua flagrante desvantagem, ele concluiu que não poderia continuar fugindo. Precisava urgentemente encontrar um lugar seguro onde pudesse se esconder. Mesmo naquela situação era capaz de se manter calmo e lúcido.

Foi nesse momento que ele se lembrou do porão na casa do professor Pedro Morales. A idéia lhe pareceu ser a melhor naquele instante. Além de lhe oferecer um bom esconderijo, o professor Morales poderia ajudá-lo a entender toda aquela confusão em que se metera.

André, enfim, já esgotado física e mentalmente, chegou à casa do professor Morales. A velha porta de jacarandá do sobrado tremeu sob a violência com que o jovem lhe atingiu com a aldrava de bronze. Quase imediatamente a porta se abriu.

-Professor Morales, preciso de sua ajuda. -Disse André com uma voz aparentemente calma, mas que denunciava a perturbação do rapaz.

Ao perceber a agonia estampada em sua face o homem fez um rápido sinal com a mão para que ele entrasse. Mostrou-lhe um dos assentos da sala e pediu-lhe que sentasse. André, porém, ignorou completamente a sugestão do amigo.

-Preciso de ajuda, professor. Estou em apuros.

-Calma, André. Diga-me o que está acontecendo.

-Não tenho muito tempo, professor. Estou sendo perseguido por pessoas que nem mesmo conheço. Preciso me esconder.

-Tudo bem. Vamos para o laboratório e então você poderá me contar toda essa história.

Morales saiu da sala por alguns segundos, tempo suficiente para acionar um mecanismo em algum lugar cuja localização exata só ele conhecia. Nesse instante surgiu uma pequena abertura ao lado da lareira da biblioteca por onde podia passar somente uma pessoa por vez. Morales empurrou André pela passagem e entrou em seguida. Imediatamente a passagem se fechou.

As luzes se acenderam revelando uma pequena câmara onde mal cabiam duas pessoas. As paredes, de puro aço, eram completamente lisas. O único detalhe que se observava eram os leitores de impressão digital e de retina. Nada sugeria que aquela pequena câmara na verdade era um elevador.

A porta de entrada se fechou logo que o professor executou os procedimentos de identificação. Alguns segundos depois ela abriu-se novamente.

Agora eles estavam diante de uma ampla e bem cuidada sala. Alguns supercomputadores estavam dispostos em uma bancada ao fundo. Em outro ponto da sala podiam ser vistos vários equipamentos que estabeleciam comunicação em alta velocidade com a lnternet e com a rede privada da universidade.

Eles se sentaram em um sofá que ficava em um dos cantos da sala, em um espaço que lembrava uma sala de estar.

-E então, André, agora me diga qual o motivo de tanta agitação.

-Essa manhã, ao sair de casa, tive a impressão de estar sendo vigiado. Em princípio não dei importância, mas logo percebi que não estava enganado quanto à minha intuição.

-Como você pode ter certeza disso?

-O fato é que comecei a ver as mesmas pessoas me seguindo onde quer que eu fosse. Agora me lembro que são os mesmos rostos que tenho visto ao longo dos últimos dias.

-E o que aconteceu a seguir? -Perguntou Morales deixando escapar uma ponta de ansiedade que não lhe era comum.

-Então eles perceberam que eu os descobri. Quase imediatamente vieram em minha direção, andando rapidamente. Foi aí que eu comecei a correr e eles passaram a me perseguir.

-Acalme-se. Fique aí sentado. Eu volto logo. -Disse Morales se dirigindo até um dos computadores.

Morales sentou-se em frente ao computador, digitou algumas palavras e aguardou um certo tempo. De repente seu rosto mostrou uma fisionomia carregada. Digitou mais algumas palavras e em seguida se dirigiu até um outro canto da sala onde havia uma cozinha. Preparou uma bebida para ele e André e em seguida voltou ao sofá.

-Acho melhor você beber isso. Vai lhe acalmar um pouco. -Disse Morales ao lhe oferecer o que parecia ser um suco.

-Professor, não sei quem eram aquelas pessoas e nem o que elas queriam de mim. Até agora tudo ia tão bem aqui em Santiago. Estou fazendo um ótimo curso superior. E dou graças a você...

-Não fiz nada além de reconhecer um grande talento. Você é um ótimo rapaz. Muito inteligente e esforçado.

Enquanto Morales falava, a visão de André começou a ficar turva. O rapaz levou as mãos à cabeça.

-Então é isso que não entendo. Como fui me meter nessa confusão?

-Há muitas coisas que você ainda precisa saber, meu caro amigo.

-Não estou entendendo. O que você quer dizer com isso? Que coisas eu preciso saber? O que você colocou nessa bebi...

André foi perdendo as forças lentamente. Sua voz tornou-se apenas um conjunto de sons sem nenhum sentido. Em sua mente, um turbilhão de imagens desconexas. Finalmente ele caiu no sofá antes que pudesse concluir a última pergunta.


CAPÍTULO 1

Puerto Montt, Chile - Dois anos antes

Passava das 19h quando o senhor Marcos Antunes chegou em casa depois de um longo dia de trabalho. A senhora Helena, sua esposa, o aguardava ansiosa na sala de estar. Ela esperou o marido retirar o pesado casaco que o protegia do frio congelante do rigoroso inverno que cobria toda a região naquela época do ano.

-Querido, estou preocupada. O professor de Matemática do André telefonou hoje à tarde.

-O que ele queria? -Perguntou, um pouco surpreso, o senhor Marcos. Afinal, não era comum receberem telefonemas da escola do André.

-Ele não quis adiantar o assunto. Pediu que ficássemos tranqüilos, mas disse que não podia falar por telefone.

-E quando poderemos conversar com ele?

-Eu o convidei a jantar conosco hoje à noite, às 20h. Poderemos conversar à vontade, pois o André está estudando na casa de um colega.

-Não imagino o que ele tem a nos dizer. O nosso André é um aluno brilhante e um menino exemplar. Todos os professores sempre nos disseram isso. Você sabe.

-Também não faço a menor idéia, querido. Estou preocupada, mas ao mesmo tempo confiante de que não pode ser nada de grave. De qualquer forma, logo o professor chegará e satisfará nossa curiosidade.

Pontualmente às 20h a campainha da casa dos Antunes tocou. Era o professor Juan.

Professor Juan era um homem de baixa estatura e gordo. Tinha cerca de quarenta e cinco anos de idade, mas a forma física pouco cuidada, associada a uma avançada calvície, acrescentava à sua idade pelo menos mais cinco anos de vida. Normalmente era brincalhão e por isso era muito querido entre os alunos. Ensinava matemática no Liceu Comercial Puerto Montt havia cinco anos.

A sra Helena se apressou em atender a porta e logo convidou Juan a entrar.

-Boa noite dona Helena. Boa noite, senhor Marcos.

-Boa noite, professor Juan. -Responderam quase a uma só voz o senhor e a senhora Antunes.
A fisionomia do professor, embora não estivesse totalmente séria, não mostrava nem de longe a alegria que lhe era tão peculiar.

-Professor Juan, por favor, sente-se. -Disse a senhora Helena lhe mostrando um assento.

-Obrigado, dona Helena. Como está o André? -Perguntou o professor enquanto se acomodava em um velho e confortável sofá.

-Ah! Ele está na casa do Gustavo. Desde que aquele amigo árabe chegou na casa do Gustavo, o André não deixou de ir um só dia até a casa do amigo.

-Sim, sim. Eu sei. Trata-se do Kemal. Ele está participando de um intercâmbio estudantil. Na verdade ele é turco, mas está morando em Londres há alguns anos. No próximo ano o Gustavo irá retribuir a visita e ficará hospedado em sua casa, lá em Londres. Tem sido uma grande experiência para todos os alunos da escola. Falou o professor Juan.

-Gostaríamos muito de poder incluir o André nesse intercâmbio. Temos certeza que ele adoraria. Infelizmente não temos condições financeiras para tanto. Disse o senhor Marcos.

-É verdade. A situação econômica do nosso país não está muito boa. São poucos que podem se dar a esse luxo. Mas tenho certeza de que o André terá sua oportunidade. Ele é um rapaz de muito talento.

-Professor, não podemos esconder nossa ansiedade. Desde que o senhor me ligou hoje à tarde, tenho estado muito aflita. Está acontecendo alguma coisa errada com o André na escola? Ele está tendo alguma dificuldade?

-Não, dona Helena. Como lhe falei por telefone, está tudo bem com o André. Vocês sabem que ele é um ótimo menino. O que eu tenho para falar com vocês é sobre o futuro dele.

-O futuro? Como assim? -Indagou o senhor Marcos.

-Por acaso o senhor já ouviu falar algo sobre certificação digital?

-Não. Nunca ouvi falar. O que isso tem a ver com o nosso André?

-Realmente esse não é um assunto facilmente acessível. É mais discutido no meio acadêmico. Vou tentar resumir para chegar ao que realmente interessa. O fato é que há alguns anos, as pessoas que trabalham com informática vêm tentando tornar o uso do computador mais seguro. Com a criação da Internet, muitas são as aplicações que podem utilizar os computadores ligados em rede.

-O senhor está falando de coisas como serviços bancários pela Internet?

-Exatamente. Esse é apenas um exemplo entre várias outras possibilidades. A questão é que o meio eletrônico potencializa a possibilidade de fraudes. Por exemplo, é mais fácil um fraudador alterar um arquivo dentro de um computador do que falsificar um documento escrito e assinado em papel.

-Não estou entendendo aonde o senhor quer chegar.

-O fato é que há vários anos os matemáticos vêm estudando formas de proteger essas aplicações baseadas em redes de computadores. Finalmente chegou-se a uma fórmula matemática que tem sido muito utilizada em todo o mundo.

-Uma fórmula?

-Sim. Chamamos essa fórmula de algoritmo. Esse algoritmo se baseia em uma premissa relativamente simples: é muito fácil achar o resultado da multiplicação de dois grandes números primos, mas é praticamente impossível fazer a operação inversa, ou seja, a partir de um número muito grande, descobrir os dois números primos que geraram tal resultado.

-Por favor, professor, seja mais claro. Nós fomos à escola, mas não somos matemáticos. -Disse o senhor Marcos, já impaciente.

-Vou tentar ser mais claro. Por exemplo, se multiplicarmos o número 5 pelo número 7, teremos o resultado 35. Qualquer pessoa que conheça a tabuada poderá fazer a operação inversa, ou seja, a partir do número 35, descobrir aqueles dois números. Esse processo se chama fatoração. Porém, imaginem agora um grande número. Por exemplo, um número com 100 dígitos. É praticamente impossível fatorar esse número. Mesmo o mais potente computador hoje existente poderia levar anos de processamento até descobrir o resultado.

-E onde entra o André em toda essa história, professor? -Indagou dona Helena.

-Eu disse que nenhum computador hoje existente pode fazer isso senão em vários anos. Prestem atenção: nenhum computador... mas o André, seu filho, é capaz de fazer isso em questão de segundos.

O senhor Marcos e a senhora Helena ficaram paralisados por algum momento. Embora não tivessem entendido completamente a explicação do professor, pelo menos uma coisa havia ficado bem clara: se o André podia fazer algo que nem o mais potente computador era capaz de fazer, isso era espetacular.

-Isso é muito bom! -Exclamou dona Helena.

O professor Juan ficou em silêncio, mostrando uma fisionomia ainda mais preocupada.

-Professor, isso é muito bom, não é? -Quis certificar-se dona Helena, agora não tão empolgada como antes.

-Pode ser, D Helena. Pode ser bom, mas pode ser muito ruim também. Lembram que eu falei sobre certificação digital?

Os Antunes confirmaram com um aceno de cabeça.

-Então, a certificação digital é uma tecnologia que usa essa fórmula matemática que eu acabei de descrever para permitir várias operações seguras no computador. O problema é que alguém com o talento do André e alguns conhecimentos avançados de informática poderá quebrar toda a segurança dessa tecnologia. Essa pessoa, se mal intencionada, poderia facilmente falsificar documentos, fazer operações bancárias em nome de outra pessoa, decodificar mensagens secretas, entre outras coisas. Diante de uma pessoa assim, essa tecnologia parece um gigante de aço com pés de barro.

-Ah, não! Que coisa terrível! -Dona Helena finalmente compreendera o horror da situação.

-A certificação digital está crescendo muito e a tendência é que venha a substituir completamente vários métodos tradicionais de proteção das informações. Seu uso está se consolidando em aplicações comerciais, financeiras, militares, entre outras. Então é fácil imaginar que o talento do André em mãos erradas poderia causar um caos no mundo digital. Se alguém descobrir isso, o André estará em apuros. Hoje ele usa esse seu talento apenas para se divertir com os colegas, mas não tem a mínima idéia de todo o seu potencial.

-E o que podemos fazer para ajudá-lo? O que o senhor sugere? Perguntou senhor Marcos.

-Bem. É por isso que estou aqui. No início eu também não havia entendido exatamente o que estava acontecendo, até discutir o assunto com um amigo meu, o professor Morales, da Universidade do Chile. Então ele sugeriu que tentássemos dissuadir o André de continuar mostrando essa sua habilidade publicamente, mas sem entrar em muitos detalhes. No próximo ano André entrará para a faculdade. O professor Morales também sugeriu que ele seja encaminhado para o curso superior de computação da Universidade do Chile, em Santiago, onde o próprio Morales se encarregará de protegê-lo e orientá-lo.

-Não sei o que dizer. Preciso pensar sobre o assunto. Eu vou discutir essa questão com Helena e depois nós lhe procuraremos.

Tamanha era a confusão na cabeça de Helena que ela nem sequer lembrou que havia convidado o professor para jantar.

O professor, percebendo a aflição do casal, achou por bem se despedir e deixá-los a sós.

-Bom, eu preciso ir andando. Boa noite, dona Helena. Boa noite, senhor Marcos.

O professor já estava de saída, quando ouviu dona Helena falar.

-Professor, nos perdoe. Eu perdi completamente a vontade de comer, mas o senhor deve ficar e jantar.

-Fica para outro dia, dona Helena. Eu compreendo o impacto que essa notícia causou em vocês. Por favor, me procurem assim que tomarem uma decisão.

-Obrigado, professor. Tenha uma boa noite.


CAPÍTULO 2

Estava iniciando o mês de fevereiro quando André chegou à cidade de Santiago.

A decisão de enviá-lo para Santiago não foi nada fácil para seus pais. Passaram-se meses depois da conversa com o professor Juan até que os Antunes finalmente se rendessem à idéia. O que os preocupava não era exatamente a ida do filho para outra cidade, já que a distância entre Santiago e Puerto Montt não era tão grande. Além disso, André não estaria só, pois ele dividiria um apartamento com dois amigos de infância. O que realmente preocupava os pais de André era aquela bomba que, inconscientemente, ele carregava dentro de si, pronta a explodir a qualquer momento. E quando isso acontecesse, eles não poderiam estar perto do filho para ajudá-lo no que fosse possível.

André, por sua vez, estava radiante com a nova vida que se abria à sua frente convidando-o a entrar e desfrutar todas as delícias. Uma vida independente. Uma cidade desconhecida para explorar. Um curso fascinante que era seu sonho de adolescente.

As aulas começariam em menos de uma semana. Poucos dias, mas para André e seus amigos eram como uma eternidade. A ansiedade só era amenizada pelos diversos passeios que faziam para conhecer um pouco da cidade e do campus universitário.

André também aguardava ansioso o dia em que seria apresentado ao professor Morales.

Não lhe disseram muito a respeito de Morales. Sabia apenas que ele era um professor de renome internacional e que deveria procurá-lo no primeiro dia de aula e lhe pedir orientações sobre a vida na universidade.

Segunda-feira. Finalmente as aulas iriam iniciar. André chegou cedo ao Centro de Computação e imediatamente procurou se informar onde poderia encontrar o professor Morales.

Ao bater à porta da sala número quinze, no terceiro piso da faculdade, André foi recebido por um homem alto e magro, de pele clara e que aparentava uns cinqüenta anos de idade. Conferia com a descrição que lhe tinham passado. Ao se apresentar, André percebeu um inesperado brilho de satisfação nos olhos do professor.
Morales era um professor muito respeitado e admirado tanto pelos colegas quanto pelos alunos da Faculdade de Ciências Físicas e Matemática da Universidade do Chile. Tanto reconhecimento lhe rendeu algumas regalias. Ao completar quinze anos de inteira dedicação à universidade, a reitoria lhe cedeu o direito de moradia do velho sobrado vizinho ao Centro de Computação, o qual pertencia à universidade. Embora para alguns colegas aquilo representasse um verdadeiro castigo, para ele era um prêmio de alto valor, pois, desde que ficara viúvo, sua única ocupação era dedicar-se ao ensino e à pesquisa.

André e Morales conversaram durante alguns minutos. Falaram sobre assuntos diversos: família, o clima da cidade, a universidade, o curso de computação. Morales apresentou em poucas palavras o que ele planejara para o ano que estava iniciando. Em seus planos, havia tempo dedicado exclusivamente para discussões com André.

-Agora eu preciso ir, professor. Minha primeira aula já vai começar.

-Tudo bem, André. Teremos muito tempo ainda para conversar. Boa sorte em sua primeira aula.

-Obrigado. Até mais!


CAPÍTULO 3

Santa Bárbara, Califórnia - seis meses depois.

-E assim, meus amigos e amigas, quero concluir deixando uma simples pergunta sobre a qual gostaria que vocês pensassem com muito carinho. A grande maioria aqui presente com certeza está imaginando ser impossível o cenário aqui descrito. Mas se isso acontecer, será que suportaremos todas as conseqüências?

Professor Morales acabara de proferir uma palestra no encontro internacional de certificação digital. Esse encontro, que se realizava anualmente, era dotado de grande prestígio por reunir não somente os maiores expoentes acadêmicos de todo o mundo, mas também representantes de setores privados e governamentais.

Morales havia tecido algumas breves considerações teóricas e havia concentrado o restante da sua palestra descrevendo um possível cenário onde alguém fosse capaz de quebrar com relativa facilidade a segurança de chaves assimétricas fortes. Como ele imaginara, a reação da maior parte do público foi de total ceticismo. Alguns ficaram indignados de presenciarem um acadêmico usando palavras sensacionalistas como que para chamar a atenção dos presentes.

Mas nem todos desprezaram completamente a palestra. Quando Morales acabara de descer da plataforma reservada aos palestrantes, aproximou-se dele um homem alto, forte, de meia idade e trajando um terno escuro.

-Professor Morales, meus parabéns pela palestra.

-Obrigado, senhor...

-Permita que me apresente. Meu nome é tenente John Savoya. Aqui está minha credencial. Eu trabalho para um órgão de inteligência do governo dos Estados Unidos.

-Muito prazer, tenente.

-Eu gostaria muito de tratar sobre essa hipótese que o senhor levantou em sua palestra.

-Será uma satisfação para mim.

-Mas eu gostaria de conversar em um lugar mais reservado. Onde o senhor está hospedado?

-Eu estou hospedado no hotel Vitória.

-Podemos então discutir essa questão hoje à noite em seu hotel?

-Podemos sim. Eu o aguardo às 21h.

-Eu estarei lá. Boa tarde!

Morales não entendeu bem o que estava acontecendo.

–“Porque alguém da inteligência do governo americano estaria tão interessado em minha palestra? Será que ele acreditou que realmente existe alguém com a capacidade do André?”.

Morales estava tão envolvido com seus pensamentos que não percebeu que outra pessoa se aproximava dele.

-Boa tarde, professor Morales. Meu nome é David Stanfeld.

-Boa tarde, senhor Stanfeld.

-Gostaria de me colocar à sua disposição para discutir essa questão que o senhor abordou na sua palestra. Eu trabalho para o governo britânico e nós temos particular interesse por tudo que está relacionado com certificação digital. Aqui está meu cartão. Terei que voltar ainda hoje para Londres, mas se o senhor quiser discutir o assunto com especialistas do nosso centro de inteligência, por favor, me procure.

-Obrigado, senhor Stanfeld.

-Foi um prazer conhecer o senhor, professor Morales.

-O prazer foi meu.

Passava das 21h quando o telefone do quarto de Morales tocou. Ele ouviu a voz do recepcionista do outro lado da linha:

-Boa noite, senhor Morales. O senhor John Savoya está aqui na recepção.

-Por favor, mande-o subir.

Alguns minutos depois o tenente John estava sentado em uma cadeira posicionada em um dos cantos do pequeno quarto. Morales, por sua vez, sentara-se na beirada da cama de solteiro que ficava no centro do quarto, à frente do aparelho de televisão.

A janela do quarto, que tomava toda a parede atrás da cadeira onde o tenente sentara-se, compensava a simplicidade do interior com uma exuberante visão do parque situado ao lado do hotel.

-Vejo, com alguma tristeza, que os acadêmicos não são remunerados à altura da sua contribuição para a humanidade.

-O que o leva a pensar assim, caro tenente?

-Por favor, me chame de John. Posso chamá-lo de Morales?

-Pois não, John.

-Então, meu caro Morales, acho que você poderia estar hospedado em um hotel melhor, mais confortável. Isso é o mínimo que você merece por toda a sua vida de dedicação ao ensino e a pesquisa acadêmica.

-O que você sabe sobre meu trabalho ou sobre minha vida, John?

-Como lhe falei hoje à tarde, eu trabalho para uma unidade de inteligência do governo dos EUA. Posso saber muito sobre sua vida. Até mais do que seus amigos mais próximos, ou até mesmo do que você mesmo.

-Tenente, não sei quanto a você, mas devo acordar amanhã bem cedo e pretendo ir logo para a cama, por isso gostaria de saber o real motivo de sua visita. Não acredito que tenha vindo aqui para discutir sobre a penúria imposta aos professores universitários.

-Me desculpe Morales. Não tenho a intenção de tomar muito do seu tempo, por isso vou tentar ser o mais direto possível.

-Obrigado, tenente.

-Morales, nossa agência tem fortes razões para acreditar que o cenário apresentado por você hoje à tarde é muito mais do que uma possibilidade remota. Na realidade nós estamos convictos que a tal pessoa, com a capacidade que foi descrita por você, realmente existe.

-O que leva a sua agência a acreditar tão firmemente nessa possibilidade?

-Bem, isso não é importante. O que realmente importa é que nós dois sabemos o risco que envolve alguém que tenha essa habilidade. Tanto o risco contra ela própria como também o risco para todos que estão à sua volta e para o mundo em geral.

-Tenente, fico feliz que você tenha se sensibilizado quanto a esse problema. Mas realmente tudo isso não passa de uma hipótese.

-Meu caro Morales, nós conhecemos seu valor e sabemos que você jamais colocaria em risco a vida de alguém. Quero que você saiba que nossa intenção é apenas a de proteger essa pessoa. Você sabe tanto quanto eu o que aconteceria se ela caísse em mãos erradas.

-Supondo que existisse tal pessoa, o que vocês poderiam fazer para protegê-la?

-Se tal pessoa existisse, nós poderíamos cercá-la de agentes especialmente treinados para a proteção de pessoas. Ela nem mesmo precisaria saber que estaria sendo vigiada. Seria bom para você também, pois poderia dividir o peso dessa responsabilidade. Além disso, professor Morales, nós poderíamos ajudá-lo a montar aquele laboratório que você tanto deseja.

-Você está querendo me subornar, tenente?

-De forma alguma, Morales. Como disse antes, nós conhecemos todo o seu valor. E por isso mesmo sabemos quanto isso seria bom para você, para sua escola, para toda a comunidade acadêmica, além, é claro, para a pessoa em questão, que poderia ser seu ajudante de laboratório. Mas isso tudo, é claro, se essa pessoa existisse.

-Tenente John, realmente é de admirar o trabalho de investigação que vocês fizeram. Estou certo de que sua agência tem a capacidade de proteger qualquer pessoa. Só não estou certo sobre quem seria capaz de se proteger contra vocês.

-Meu caro Morales, eu compreendo a sua preocupação, mas você sabe que não somos a única agência de inteligência do mundo. O mais grave é que entre essas agências, estão aquelas cujos objetivos não são tão nobres. Estou falando de agências ligadas a grupos mafiosos e terroristas. Mais cedo ou mais tarde alguém vai descobrir tudo. O mínimo que podemos fazer é tentar nos antecipar e evitar que tais grupos lancem mão de recursos como esse, que, certamente, colocarão a liberdade e a democracia em jogo.

-Só uma coisa ainda não ficou muito clara, John. O que vocês querem de mim? Por que vocês precisam de mim se a agência pode facilmente descobrir essa informação através de uma simples investigação?

-Professor, isso poderia levar algum tempo. Tempo que talvez não tenhamos. Nós só queremos ajudar. Não queremos interferir em suas pesquisas. O nosso único interesse é manter pessoas indesejadas longe do seu pupilo. Você pode contar conosco sempre que necessário. Vou deixar um canal aberto diretamente comigo e você poderá me encontrar a qualquer hora do dia.

-John, tenho que confessar. Essa realmente tem sido uma carga difícil de carregar. Desde que conheci o André Antunes, há cerca de um ano, não consigo dormir em paz. Inicialmente, quando recebi a notícia, fiquei excitado com a idéia, mas depois que tive as primeiras conversas com ele algo começou a me incomodar. Ele é um ser humano, é um jovem. Não é simplesmente uma nova teoria que se possa compartilhar com todo o mundo. Eu resisti muito em dar essa notícia hoje no congresso, mas o dever foi mais forte e me obrigou a alertar o mundo sobre essa possibilidade, mesmo sabendo que todos ririam de mim.

-Você fez certo, Morales. Esse rapaz, o André, onde ele vive?

-Hoje ele vive em Santiago. Divide um apartamento com outros rapazes de Puerto Montt, sua terra natal. Está cursando Engenharia de Software na Universidade do Chile. Pedi a seus pais que o deixassem sob meus cuidados para que pudesse orientá-lo e protegê-lo. Mas confesso que já estou arrependido. No fundo eu tinha a intenção de aproveitar a capacidade do André para desenvolver minhas pesquisas sobre criptografia.

-Não se preocupe, hoje mesmo iniciarei os preparativos com o fim de enviar uma equipe para o Chile. Eles serão a sombra do André. Você pode ficar tranqüilo. Ele estará em ótimas mãos. Você só precisa me dizer tudo o que precisa para montar seu laboratório e onde devemos entregar todo o material. Para tranqüilizá-lo ainda mais, gostaria que você conhecesse as instalações de nossa agência. Amanhã logo cedo eu o levarei até lá.

Depois de se despedir, o tenente John saiu do quarto deixando Morales perdido em meio a uma tempestade de pensamentos. Uma confusão mental que o impediu de dormir bem aquela noite. Afinal, havia confiado a vida e o destino de André a um homem que acabara de conhecer.


CAPÍTULO 4

Algumas semanas depois do congresso de Santa Bárbara, no início do recesso escolar do fim de ano, a promessa do tenente John começou a se cumprir. A tranqüilidade rotineira que envolvia a casa do professor foi quebrada com a chegada de uma grande encomenda. Eram caixas e mais caixas que traziam em seu interior computadores e outros equipamentos necessários para a montagem do tão sonhado laboratório. O trabalho deveria ser feito no período de férias da universidade de forma a chamar o mínimo de atenção. Afinal, Morales pretendia construir um laboratório de acesso exclusivo, onde poderia desenvolver pesquisas avançadas na área de criptografia.

O velho porão da casa já havia sido reformado e agora estava pronto para receber todos aqueles equipamentos. Uma equipe especializada também foi enviada para auxiliar o professor Morales no processo de instalação das máquinas. A entrada original do porão foi isolada e o único acesso ao laboratório agora era uma passagem secreta escondida pela lareira da biblioteca.

Nos próximos dias o professor constataria com tristeza que a promessa do tenente não estava se cumprindo somente com relação à instalação do laboratório. Através do canal virtual dedicado que havia sido estabelecido entre a casa de Morales e o escritório do tenente, chegavam, com freqüência, e-mails com informações sobre a chegada da equipe de segurança ou mesmo perguntas sobre o desenvolvimento de André.

A convivência com o rapaz no primeiro ano de faculdade foi suficiente para convencer Morales que seu colega Juan não havia exagerado com relação aos desmedidos elogios sobre a sua capacidade intelectual e principalmente sobre o seu grande talento. O dom de realizar milhões de cálculos matemáticos numa velocidade só comparável àquela que se espera obter com a criação dos computadores quânticos. Essa capacidade lhe permitia fatorar números gigantescos, o que colocava em xeque toda a produção científica sobre criptografia de chaves assimétrica e, conseqüentemente, todas as tecnologias derivadas, como, por exemplo, a certificação digital.

Havia alguns anos que Morales perseguia a criação de um novo algoritmo de criptografia que fosse capaz de resistir à era da computação quântica. Até conhecer André, ele se mantinha tranqüilo porque nada apontava para a viabilidade da construção de um computador quântico nos próximos anos. Agora, porém, ele sabia mais do que nunca da importância do seu projeto. Em princípio, o único pensamento que dominava a mente de Morales era a possibilidade de utilizar a capacidade de André em suas pesquisas. Mas agora ele estava dividido. A preocupação com o bem-estar do rapaz lhe sugava energia a cada momento. A esperança de que os anjos da guarda enviados pelo tenente pudessem aliviar sua carga logo se desvaneceu. Cada pedido de informação, cada simples contato do tenente eram como espinhos em sua carne. Ele hesitava quanto à idéia de revelar tudo a André. As ordens que recebera do tenente eram muito claras: o rapaz não deveria saber de nada.

Morales sabia que logo que André iniciasse o estudo das disciplinas especializadas do curso, o que deveria ocorrer a partir do segundo ano, ele seria confrontado com seu incrível potencial e então começaria a juntar todas as peças.

As aulas foram retomadas alguns dias depois de concluída a instalação do laboratório na casa do professor. André foi o único que teve o privilégio de conhecer as instalações. Não era apenas um conjunto de computadores ligados em rede. Era um ambiente especial. Tudo tinha seu lugar bem definido. Não se viam fios espalhados pelo chão. Toda a comunicação das máquinas era baseada em tecnologia sem fio. Além dos computadores, o porão recebera também um pequeno ambiente de copa e outro de estar.

Morales concedeu a André acesso a todo o laboratório, com exceção da sua máquina pessoal. Era a partir dessa estação que o professor se comunicava com a Agência Americana de Inteligência. Quando Morales não estava sentado à sua frente, a estação estava constantemente bloqueada com senha.

Certa manhã, quando se preparava para ir à Faculdade, Morales foi surpreendido por um forte barulho de batidas à sua porta. Apressou-se em atender e, para sua surpresa, viu André parado à sua frente com uma expressão aflita. Morales o mandou entrar e, diante das primeiras explicações, percebeu que seus temores se confirmaram. Ele sabia que esse dia chegaria, mas não estava preparado, apesar de todas as orientações do tenente John.

André pediu para se esconder no porão pois estava sendo perseguido por alguns homens. Morales não tinha certeza, porém, se aqueles eram homens enviados por John ou se eram de outra organização. Sabia, contudo, que chegara a hora de agir.

Enquanto André falava, Morales se dirigiu à sua estação particular e enviou uma mensagem urgente para o tenente. A resposta veio rápida. O rapaz deveria ser levado para outro local. Santiago agora já não oferecia a menor segurança para André. Morales deveria fazer o rapaz dormir até que os homens da inteligência americana viessem pegá-lo.

CAPÍTULO 5

André começou a abrir os olhos devagar. A cabeça doía. Mesmo a baixa claridade do ambiente lhe incomodava. Pouco a pouco os objetos foram ganhando definição. Percebeu que estava a bordo de um avião. Os vultos de algumas pessoas próximas a ele também ganharam definição. Pareciam árabes.

- Onde estou?

Dois homens que estavam mais próximo dele olharam em sua direção, mas nada disseram.

- Por favor, quem são vocês? O que querem de mim?

André tentou se levantar, mas só então percebeu que seus pés estavam presos à cadeira. Sua aflição aumentou. A última lembrança que pairava em sua mente era que estava no porão da casa do professor Morales. Em seguida, tomou aquela bebida e apagou completamente. Agora estava ali, a bordo de um avião cujo destino ele não conhecia e cercado de pessoas que nunca vira antes e que provavelmente não falavam a sua língua.

André ainda estava envolvido por esses pensamentos quando ouviu o piloto anunciar algo pelos alto-falantes do avião. Mesmo não entendendo uma só palavra, a partir das manobras que a aeronave fazia, deduziu que estavam pousando. Talvez agora alguém pudesse explicar o que estava acontecendo.

O avião pousou. A porta se abriu. Ao chegar à porta, teve um sobressalto. Estava eu um lugar totalmente estranho. A paisagem lembrava a de um país árabe.

Logo que desceu a escada, o colocaram em um carro, que saiu em disparada. Por mais que tentasse obter alguma informação, o máximo que conseguia era um olhar inquietantemente frio e distante dos homens que viajavam ao seu lado.

Foram em direção à cidade, onde André constatou que realmente estava muito longe de casa. O automóvel percorreu diversas ruas estreitas e finalmente parou em frente a um pesado portão de ferro. Alguns guardas identificaram os ocupantes do veículo e em seguida abriram o portão deixando-os entrar.

André foi levado até uma cela pequena e mal-cuidada dentro de um edifício que lembrava um palácio. Foi montada guarda vinte e quatro horas por dia, sempre por homens que tinham o rosto completamente coberto. A forma como enrolavam aquele pano na cabeça só lhes deixava uma pequena abertura para os olhos.

Já havia alguns dias que André estava ali sem qualquer explicação. A cada mudança de guarda ele tentava obter alguma informação. Já havia desistido de tentar quando, numa certa tarde, o guarda do turno se aproximou rapidamente da grade e começou a falar em um castelhano carregado de sotaque inglês.

- Vou ajudar você a sair daqui. Pegue essas chaves. Aqui tem um mapa e algum dinheiro. Você deve procurar por Abdul no endereço que está no mapa. Ele o ajudará a fugir.

- Espere. Onde estou? Quem é você? Por que vocês estão me mantendo preso?

- Você está na Turquia. Não tenho muito tempo para conversar. Vista essas roupas. Quando sair no corredor você deve seguir sempre à direita. Você vai encontrar uma escada. Atrás da escada tem uma porta de ferro que dá para fora do prédio. Depois é só seguir o mapa. A casa de Abdul não é longe daqui.

De repente a voz daquele rapaz fez André lembrar-se de alguém. Não podia ser. Isso era impossível.

-Kemal?!

-Agora vá. Não temos muito tempo.

-O que vai acontecer com você quando eles descobrirem que eu fugi?

-Não se preocupe comigo. Qualquer coisa que me acontecer será melhor do que a vida que levo aqui. Agora você deve ir. Adeus, André.

-Adeus, Kemal. E obrigado por tudo.

Tudo aconteceu como planejado. André foi recebido com uma expressão de alegria e alívio pelo jovem Abdul, que também falava razoavelmente bem o Castelhano.

-Abdul, por favor, me diga o que está acontecendo.

-Eu não sei muita coisa. O que sei é que a organização para a qual Kemal trabalha fez um acordo comercial com um americano. E você era o objeto da negociação.

-São tantas perguntas sem resposta. O que essas pessoas querem de mim? Eu não tenho dinheiro. Meus pais não são ricos. Por que Kemal está envolvido com esse grupo?

-Quanto a você eu não sei, mas Kemal foi enviado ao ocidente para estudar e depois se integrar a essa organização cuja bandeira é o combate ao império americano. Não havia muito que fazer. Essa foi uma imposição dos seus pais. Ele não queria voltar de Londres, onde estava estudando. Chegou a falar até em se mudar definitivamente para o Chile. Ele gostou muito da América do Sul.

-Ele disse que você poderia me ajudar a fugir daqui.

-Sim. Tudo já está planejado. Você deve sair do país hoje à noite. Até lá você deve ficar escondido aqui.

-Abdul, eu preciso acessar a Internet antes de sair de Istambul. Você tem que me ajudar.

-André, isso é muito arriscado. Eu só consigo acessar a Internet na Universidade, que fica do outro lado da cidade, na parte européia. Se for até lá, você colocará em risco todo o plano de fuga.

-Eu preciso correr esse risco. Tenho que tentar me comunicar com o professor Juan. Ele pode me dizer o que está acontecendo.

-Muito bem. Se você pensa assim, então vamos tentar.

Depois de aproximadamente uma hora andando de ônibus pelas ruas de Istambul, Abdul e André finalmente chegaram ao Instituto Informático Técnico da Universidade de Istambul. Foram imediatamente para o laboratório de informática, onde tiveram acesso à Internet.

André não tinha o endereço de e-mail do professor Juan. Procurou no site da escola de Puerto Montt, mas também não encontrou. Finalmente fez uma pesquisa em um site de busca e estava lá. Sem perder mais tempo começou a digitar a mensagem.

Caro professor Juan,

Preciso de sua ajuda. Algo de muito estranho me aconteceu. Fui raptado por um grupo de terroristas turcos. Estive em seu poder por vários dias. Neste momento estou na Universidade de Istambul. Por favor, avise a polícia chilena, mas não deixe que meus pais saibam de nada. Não quero que eles se preocupem. Tenho fortes motivos para acreditar que o professor Morales está envolvido com tudo isso.

Estou sendo ajudado por um amigo. Devo ir de trem até Madri, onde pegarei um navio para o Brasil. Sairei de Istambul hoje à noite.

André


CAPÍTULO 6

Em Puerto Montt, o professor Juan recebeu o e-mail de André e agora estava telefonando para seu colega Morales.

-Morales, quem está falando aqui é o professor Juan, de Puerto Montt.

-Olá, professor Juan. Tudo bem? O que você deseja?

-Não é nada demais. Gostaria apenas de saber sobre o nosso rapaz prodígio.

De repente houve um silêncio do outro lado da linha.

-Precisamos conversar pessoalmente. Você pode vir até minha casa aqui em Santiago?

-Pois não. Amanhã de manhã estarei aí.

Passava das 11h quando Juan chegou à casa de Morales.

-Professor Juan, bom dia. É uma grande alegria rever você. Vamos entrar.

-Bom dia, professor Morales. O prazer é todo meu.

Os dois velhos amigos foram para a biblioteca, onde Morales ofereceu um café quente e fresco. Conversaram durante algum tempo sobre assuntos político-administrativos relacionados ao sistema de educação chileno. Por alguns momentos Morales esqueceu seus problemas e deixou-se contagiar pelo jeito espirituoso e alegre de Juan, até que tocaram novamente no assunto que fora o motivo central daquele encontro tão inesperado.

-Então, Morales, o que pode haver de tão sério sobre o André que não pudemos tratar por telefone?

-Meu caro Juan, eu estou muito angustiado. Muitas coisas ocorreram desde o fim do ano passado. Eu preciso compartilhar com você, pois já não suporto tanto peso sobre meus ombros. Talvez você possa me ajudar.

Morales contou ao amigo, detalhadamente, todos os fatos ocorridos desde seu primeiro encontro com o tenente John até o dia em que André chegara à sua casa pedindo ajuda.

-Naquele dia, depois que o André adormeceu, alguns homens vieram e o levaram. O tenente John disse que isso era necessário para a segurança do André. Disse ainda que o deixaria em lugar incerto por alguns dias mas que eu seria informado com freqüência.

-Lamento dizer isso, mas acredito que alguma coisa está errada em toda essa história, professor Morales.

-Como assim?

-Ontem à noite, pouco antes de ligar para você, recebi um e-mail do André.

-Do André? Por que ele enviaria um e-mail para você?

-Aí é que está o problema. Na mensagem ele diz que foi seqüestrado e que você estaria envolvido com tudo isso. Veja o e-mail.


Caro professor Juan,

Preciso de sua ajuda. Algo de muito estranho me aconteceu. Fui raptado por um grupo de terroristas turcos. Estive em seu poder por vários dias. Neste momento estou na Universidade de Istambul. Por favor avise a polícia chilena, mas não deixe que meus pais saibam de nada. Não quero que eles se preocupem. Tenho fortes motivos para acreditar que o professor Morales está envolvido com tudo isso.
Estou sendo ajudado por um amigo. Devo ir de trem até Madri, onde pegarei um navio para o Brasil. Sairei de Istambul hoje à noite.

André

-Mas isso não é possível. O que está acontecendo aqui? O tenente John disse...

De repente, como se despertasse de um sonho, Morales entendeu a real situação.

-O tenente John estava todo esse tempo trabalhando para os terroristas que ele alegava serem os perseguidores do André.

-Morales, você tem certeza disso?

-Ainda não, mas preciso confirmar minha suspeita. Agora deve ser cerca de 8h na Califórnia. Se tiver sorte conseguirei falar com outra pessoa do departamento do tenente.

Morales fez uma ligação internacional para a Agência Americana de Inteligência. Conversou com o superior do tenente John, o coronel Smith, a quem tinha conhecido na visita que fez ao escritório da agência durante o congresso de Santa Barbara. Smith informou que o tenente John partira na noite anterior para a Turquia, para tratar de assuntos pessoais inadiáveis. Questionado sobre o programa menino prodígio - que segundo John seria o nome oficial do programa dentro da agência - o coronel assegurou que nunca existira tal programa sob sua gestão.

Morales desligou o telefone e por alguns segundos guardou um silêncio inquietante. Ele foi retirado do transe pela voz do professor Juan.

-E então? Como é que foi?

-John está na Turquia e seu chefe nunca ouviu falar desse programa de proteção ao nosso menino.

Em meio ao desespero da situação, Morales lembrou-se do agente da inteligência britânica que também o havia procurado no congresso de Santa Barbara. Agora ele era sua única esperança.

Morales olhou para o relógio e fez um rápido cálculo de fuso horário.

-Em Londres deve ser 15h agora. Tenho que encontrar aquele cartão. Eu sei que o guardei por aqui em algum lugar. Sim, eu o havia usado como marcador do último livro que li. Aqui está

David Stanfeld
Inteligência Britânica
44 (20) 4659 7989

O telefone tocou três vezes antes que o atendessem. O homem do outro lado da linha se identificou.

-Senhor David Stanfeld, aqui quem fala é o professor Morales, da Universidade do Chile. Nós nos conhecemos no congresso mundial de criptografia em Santa Barbara.

-Sim, estou lembrado, professor. Na ocasião o senhor apresentou a hipótese da existência de alguém capaz de quebrar chaves de criptografia usando apenas cálculos mentais.

-Isso mesmo. Vejo que o senhor aproveitou bem a minha palestra.

-É uma teoria intrigante para um assunto que realmente me fascina, além de ser meu trabalho, é claro. -Disse David Stanfeld finalizando a frase com certo tom de humor na voz.

-Naquela data o senhor se ofereceu para me ajudar com relação a esse assunto.

-Sim. E minha oferta continua de pé. Em que posso ajudar?

-Essa é uma longa história que não posso tratar por telefone. Se possível, gostaria de me encontrar com o senhor o mais rápido possível aí em Londres. Vou tentar pegar o primeiro vôo saindo aqui de Santiago.

-Essa é uma viagem bem longa, professor Morales. Mas considerando a sua disposição em vir até aqui, suponho que o assunto seja muito grave e urgente. Sendo assim, deixarei minha agenda preparada para receber o senhor logo que chegar. Vou enviar um carro para lhe pegar no aeroporto. Assim que tiver a definição do vôo, por favor, me ligue.

-Obrigado, senhor Stanfeld.

-Até mais, professor Morales.

Morales desligou o telefone.

-Meu caro professor Juan, preciso ir a Londres. Tenho que consertar meu erro urgentemente. Não conseguiria conviver com esse peso na consciência. Muito obrigado pela confiança em me contar sobre o e-mail de André.

-Eu conheço você muito bem, Morales. Sabia que seria incapaz de fazer mal ao garoto.

-Obrigado mais uma vez.

-Agora eu tenho que ir. Preciso voltar ainda hoje para Puerto Montt. Até mais, professor Morales. E boa viagem.

-Até a volta, Juan. E saiba que só voltarei com o André.


CAPÍTULO 7

Dois dias depois Morales era recebido por David Stanfeld em seu escritório na sede da inteligência britânica.

David ouviu atentamente toda a narrativa. Em sua atividade era comum ouvir histórias como aquela, mas ele não deixou escapar um só detalhe. Anotou tudo em um pequeno bloco de notas. Ao final pediu licença ao seu interlocutor, virou-se para seu terminal de computador e passou a fazer uma série de consultas. Uma hora depois ele anunciou com ar de triunfo.

-Amanhã.

-Amanhã o que? -Perguntou Morales.

-André deve chegar amanhã à tarde no trem que vem de Roma.

Morales ficou impressionado.

-Você tem certeza?

-Não. Essa é apenas uma possibilidade. Na verdade, é a melhor possibilidade que encontrei. Analisei dados de distância, conexões, opções que ele teria ao longo da viagem, além, é claro, do histórico de fugas de refugiados daquela região.

-E o que faremos agora? -Perguntou o professor.

-Vamos para Madri. Sairemos amanhã de manhã. Até lá tenho que dar alguns telefonemas e montar uma equipe de apoio.

No dia seguinte Morales e David estavam na estação central de Madri como planejado. Viram chegar o trem vindo de Roma. Vários passageiros estavam desembarcando. No meio deles Morales reconheceu o rapaz. Estava mais magro. O rosto sofrido. Sim, mas não havia dúvidas, era o André. Morales estava se aproximando quando viu o tenente John se antecipar e falar com André.

-André, meu nome é tenente John Savoya. Eu trabalho para a inteligência americana. Nós descobrimos tudo que lhe aconteceu. Sabemos como você foi seqüestrado pelos turcos ajudados pelo seu professor. Você é dono de um talento único. Sua capacidade de fazer cálculos matemáticos com uma rapidez maior do que a dos computadores levou seu professor a lhe entregar àqueles terroristas em troca de alguns milhares de dólares. Você está correndo um sério risco aqui em Madri, por isso devemos seguir imediatamente para os Estados Unidos, onde você estará seguro.

Agora tudo começava a fazer sentido para André. Tantas revelações impressionantes lhe deixaram tonto. Ele se sentiu como se estivesse sobre uma forte muralha que agora tremia sob seus pés.

Nesse momento o professor Morales se aproximou dos dois.

-André, meu rapaz. Por favor, não acredite no que esse homem está lhe falando.

-Professor Morales! -Exclamou André.

-André, nem tudo que o tenente John lhe contou é verdade. Eu realmente coloquei um entorpecente em sua bebida. Mas em todos os momentos eu estava apenas seguindo as orientações dele. Os homens que foram pegar você em minha casa foram em nome do tenente John. Eu não sabia que ele estava trabalhando para os terroristas.

-Não sei se ainda posso acreditar em você, professor.

A conversa entre eles foi interrompida por alguém que acabara de se aproximar. Era Abdul, que viajara clandestinamente no mesmo trem em que André viera. Ele apontou para o tenente John.

-Eu vi esse homem conversar várias vezes com os terroristas de Istambul.

John, percebendo que sua máscara caíra, agarrou André, sacou uma arma e apontou para a cabeça do rapaz.

-Nós vamos sair agora. Se eu perceber algum movimento suspeito ele morre.

Ignorando a ameaça do tenente, Abdul, que ainda estava um pouco atrás, avançou sobre ele, chutando-lhe com violência. No instante seguinte André conseguiu se soltar e correu em direção ao professor Morales. John apontou para a cabeça de André. Ouviram-se então dois tiros quase simultaneamente. André e o tenente John caíram ao mesmo tempo. David, ainda com o revólver em punho, já estava com um rádio comunicador solicitando uma ambulância.

Passaram-se alguns minutos até que os médicos chegassem ao local.

-Infelizmente não posso fazer mais nada por este pobre homem. -Disse um médico examinando o corpo do tenente John.

-O garoto ainda está vivo. Vamos levá-lo imediatamente. -Disse outro médico que estava ao lado de André.

Foram momentos terrivelmente amargos para o professor Morales, aqueles que se seguiram. Porém, no íntimo ele sabia que tudo acabaria bem e logo eles estariam de volta ao Chile.

No dia seguinte as manchetes dos jornais de Madri estampavam em primeira página a manchete:

“Duas pessoas morrem em ação policial na estação central de Madri.”


CAPÍTULO 8

Alguns dias depois, os pais de André conversavam com um médico de uma base militar inglesa.

-Senhor e senhora Antunes, Graças a Deus o seu filho está bem. Ele está acordando. Agora vocês podem entrar e conversar com ele. Como vocês sabem, ele sofreu um tiro na cabeça. Felizmente a bala se alojou em uma área do cérebro pouco utilizada. Provavelmente não terá nenhuma seqüela. Os médicos de Madri fizeram um ótimo trabalho.

-Mãe! Pai! Onde estou?

-Filho, não se preocupe. Você está em um lugar seguro, sob cuidados médicos. Você passou por maus momentos, mas agora estamos aqui. -Disse dona Helena.
Senhor Marcos, que estava visivelmente emocionado se aproximou da cabeceira da cama.

-André, estamos muito felizes que você esteja bem. Foi difícil acreditar em tudo que lhe aconteceu. Quando o professor Morales nos contou, nós sentimos muito não poder estar perto de você em todos os momentos.

-Não se preocupem. Agora eu estou bem.

Nesse momento entraram no quarto o professor Morales, o professor Juan e o senhor David.

-André, vejo que você já está bem - disse Morales – gostaria de pedir desculpas por tudo que lhe causei. Não espero que você confie em mim novamente, mas saiba que estarei sempre à sua disposição para tudo o que precisar.

Juan, com seu habitual senso de humor, também se aproximou da cama.

-André, agora que você já está em forma de novo, mostre ao senhor David um pouco de sua habilidade. Diga quanto é 175631 vezes 935473.

-Professor Juan, o senhor só pode estar brincando. Nem com uma calculadora eu conseguiria fazer uma conta dessas.

FIM
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