O homem caminhava um pouco apressado à minha frente. O que me chamou atenção foi o modo como gesticulava constantemente como se falasse para alguém. Levado pela curiosidade aproximei-me discretamente e consegui captar o seu solitário monólogo, mas que para ele era uma conversa muito séria.
Eis o que ele falava:
Essa noite eu sonhei contigo. Tu me perseguias e querias levar-me para um lugar que eu desconhecia. Mandaste-me uma mulher que quase me estrangulou, um cachorro que me mordeu, e uma cobra quase me envenenou.
Eu corria, me escondia, e tu não me deixavas em paz. Às vezes, eu até sorria de tuas malícias.
Certa ocasião, um atirador não conseguiu acertar-me. Outra vez, quase desabei num precipício... Mas sempre me safei das tuas armadilhas.
Ah, como te adoro! Não fosses tu, ninguém precisaria lutar.
E naquele dia que um motorista embriagado me atropelou? Foi quando escutei teu sorriso cavernoso cantando vitória. Mas aí eu sorri por último. Ao ver-te pegar tua machadinha e sair com o rabo entre as pernas numa marcha pateada, gargalhei tanto que até chorei de tanto gargalhar.
Outra vez, cumulaste de tudo quanto é vírus o meu corpo. Tomei umas biritas, expulsei a doença, e comecei a cantar.
A moléstia só gosta de tristeza; aí ela acomoda-se, toda poderosa, dentro de nós e funda o seu império comandado por ti.
Uau, garota! Sabes que sou forte. Hóspede indesejável não tem vez na minha casa.
Sei que um dia vencerás. Então, conduzir-me-ás não sei pra onde, com ar de vitoriosa, os dentes arregalados, toda triunfante e gritarás para o universo: Eis mais um.
Não te ouvirei porque estarei a dormir um belo sono. Contudo ainda estou a te amolar. Continuemos o jogo. Faz parte do show.
Ah, como te adoro! Não fosses tu, ninguém precisaria lutar.
O homem continuava falando, mas não pude mais ouvi-lo, pois, um amigo meu me chamava de longe e, por isso, mudei de rota. O homem prosseguiu sua fala e gestos, até perder-se de vista. E eu pensei: Será que ele falava com a morte? Pelo que escutei, foi isso que deduzi.