Estavam todos reunidos. A família reunira-se na casa de veraneio. Uma casa de veraneio em Cuba. Caribe. Belas praias. Belas águas. Maravilhosa natureza. Toda família reunia-se. É certo que não chegava junta. Mas até a virada do ano, todos estavam. A casa era grande. Próxima à praia. Perto da igreja. Festas na praia. Festa na igreja. Festa na casa de veraneio. Ernesto estava lá. Antes de todos. Ele chegara cedo para, Saudosamente, relembrar o ano que caminhava para o fim. “Era bom chegar cedo. Tudo me fazia lembrar dela. A sala. Os quartos. A varanda. A praia”. A praia era cercada de árvores. Ernesto adorava as flores da praia. Os bancos que a praia bondosamente oferecia. O vento, as árvores, as flores, o banco. Tudo para ele era um poema. Adorava poesia. Escrevia para ela. O ambiente o motivou. A temporária ausência dela o inspirara. O amor o dominara. A vida recomeçara. Após um ano. A vida agora escrevia outro capítulo. Lia alguns livros. Camus, Frei Betto, Affonso Romano, García Márquez. A literatura preenchia o tempo. Não preenchia o tempo. Preenchia a alma. Alimentava a criatividade. Filosofava com Camus. Despertava com Frei Betto. Viajava com Affonso. Maravilhava-se com o Realismo Mágico de Gabbo. O tempo de espera para Ernesto era especial. Tempo de formação. Crescimento. Amor próprio. Tempo de escrever. Adora a poesia de Antonina Costa. Nelson Virgílio. Chico Buarque. Drummond. Vinícius. O mar e as letras. Vitamina para a alma. As ondas. Inspiração para a escrita. O ir e vir. Condensador de idéias. Refúgio do consciente. Ernesto ia e vinha. Como as ondas. Habitava uma dialética na alma. Amor e Razão. Emoção e intelectualidade. O intelecto não se emociona? Mas não o dominava. E a dialética? Harlem era sua dialética.
Um a um. Em pouco tempo, a casa estava cheia. Mais uma vez. A família e a festa. Ou a festa na família. Da varanda, Ernesto mirava o mar. Escuro. Quem, o mar ou o coração? Gabbo não deixara. Era seu companheiro naquela noite. Gabbo e... Harlem. “Boa noite! Não ganho um abraço, Ernesto? Precisamos terminar nossa conversa. Um ano a espera do fim”. Àquelas palavras, Gabbo perdera a voz. O coração tomara coragem. Ele, que apenas balbuciava, agora tinha voz. Ernesto o escutou. “Boa! Não poderíamos fugir, não é? Na realidade, eu não desejaria isso...” Harlem sentara-se sob as estrelas brilhosas. A Lua cheia. Ela viu um coelho na Lua. Não! Na Lua não. Na maravilhosa Lua. Inspiradora Lua. “Ernesto, vi um coelho na Lua. Será um sinal...” Seus olhos brilhavam nos olhos dele. O brilho da luz os envolvia numa redoma. Era como se a Lua apenas estivesse ali, apenas para eles. “Estás apaixonada?” “Acho que sim”. Os dois olhavam-se. Permaneceram mudos por alguns minutos. Ernesto pensou em tocar as mãos de Harlem. “Ernesto, Harlem, a janta está posta à mesa, vamos?” Uma tristeza momentânea os dominara. Era momentânea, sim. Mas sua força ofuscou o brilho da lua. A lua entristecera-se. Voltara à sua simplicidade. A Lua havia preparado todo aquele banquete sentimental. A tristeza era única. Para Ernesto, Harlem e a lua. Se Drummond estivesse ali, diria: “mundo, mundo, vasto mundo, mais vasto é o meu coração”.
Está na praia. No banco. Sob um pé de coqueiro. Um caderno, um lápis. O vento. O mar. A noite. O céu. O coração. A mente. As lembranças do ano passado. A imagem. O toque na mão. O abraço. O beijo. No rosto. O cheiro. No cabelo. O olhar. Na alma. O frio. Na barriga. Uma lágrima. Na alma. Neruda se incorporou. Escrevia com a tinta do coração. Parou. Declamou para si um trecho do poema XX do poeta marxista. A emoção que sentira ao declamar esses versos foi dominadora. Fantástica. Não do Realismo Fantástico. Do realismo real. Harlem escrevia alguns poemas. Escrevia o que não conseguira falar. “Eu te amo”. Ela conseguira falar para Ernesto. Por telefone. Há um ano. Precisava confessar a ele. Também levara Gabbo. Não sabia que Ernesto o lia. Não sabia que ele gostava. Apenas levara para servir de companhia. Ela precisava de companhia. Gabbo e ela. Hernesto. Ele chegara por trás de Harlem. Caminhou devagar. Queria fazer-lhe surpresa. Beijou seu rosto. “Não sabia que tu gostavas de Gabbo?” “Adoro. Divirto-me com o Realismo Mágico. Adoro as viagens, os detalhes”. “Cem anos de solidão. Essa obra é recheada de características Mágicas. Lembra-te da parte a qual a esposa vai ao banheiro e dá um tiro no marido? O sangue caminha pelo banheiro, passa pela sala, no canto para não sujar o tapete, desce as escadas, desce a rua, vira na esquina à direita, entra na casa, passa pela sala, pelo canto, vira para a cozinha, pára aos pés da sua mãe”. “Ernesto! Ainda não cheguei nessa parte”. “Desculpa-me”. Sentou ao lado dela. Ficou olhando para seus olhos. Não tinha a intenção de olhá-la, daquela maneira. Não conseguia deixar de olhar seus olhos. Duas belas esmeraldas. Não sabia que as esmeraldas não eram azuis. Não interessava. Apenas queria ser um Aventureiro Solitário. Naquele momento. Pensou que o Mar estava do lado Oposto. “Que caderno é esse?” Saíra da hipnose. Entrara em um campo perigoso. “São poemas”. “Escreves?” “Alguns”. “Posso vê-los”. “Gostaria de que terminássemos nossa conversa”. “Gostaria de lê-los antes. Posso?” “Não!” Assustou-se com a negativa um pouco amarga. Entretanto sabia a importância de terminar a conversa. Era importante. Para ele e para ela. Os dois. Aproximaram-se um do outro. A Lua. Voltara à sua beleza inigualável. Seu brilho era mais forte que os raios solares. A noite parecia dia. Não era um dia dia. Não um dia qualquer. Um dia recheado de pontos brilhosos no céu. Era como se milhares de fogos fossem atirados ao céu. No mesmo momento. Admiraram-se com o espetáculo natural. A natureza. A natureza é naturalmente bela. Apenas quem é humano de verdade seria capaz de respeitá-la. Como uma deusa. Não é panteísmo. É respeito. É sensibilidade. É inspiração. O alimento para a introspecção.
Os dois. Harlem e Ernesto. A continuação de um capítulo. A conclusão de um capítulo. O capítulo não ficara interrompido. As cartas eram a ligação. Entre os capítulos? Não! Entre eles. Não perderam contato. Encontravam-se nas cartas. Pareciam um confessionário. Ninguém se vê. As palavras eram completas. Afiadas com a clareza da sinceridade. Motivadoras para um reencontro. E-mail pra quê? As cartas, transparência. A psicologia, não sei qual, dizia que por meio da letra se percebe o sentimento. Sinceridade. Queria perceber a sinceridade nas palavras distantes. Agora próximas ao coração. O cheiro das letras sinceras. As letras desenhando a forma física. Era natural. E-mail pra quê? Queria vê-la. Ver seus olhos azuis. Pele rosada. Lábios recheados. Coração palpitante. A carta. Precisava da carta. Harlem falou. Eles falaram-se durante aquele ano. Agora. Estavam a sós. Naquele banco. Aquecido pela ansiedade. Naquela praia. O cenário fora montado pela Lua. A grande poeta da noite. Todo azul do mar de Flávio Venturini. Era o que Ernesto queria falar para ela. A poesia fazia parte de sua vida. A dela também. Queria falar para Ernesto algo parecido com que Vinícius falou no poema Eu sei que vou te amar. Algo parecido com: “De tudo ao... meu amor/ serei atento”. Não me recordo bem. Na solidão. Os dois. Eram um. Olhos nos olhos. Alma na alma. Cheiro no cheiro. Toda ansiedade se concentrou naquele momento. Não tinham pressa. A vida é longa. A Lua é eterna. O amor... talvez, também.