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Contos-->A AMADA MADÁ -- 15/04/2010 - 12:33 (Antonio J. C. Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


A AMADA MADÁ

Antonio J. C. Antunes



(Conto de Antônio José de Cerqueira Antunes)
(Fevereiro de 2008; abril e maio de 2008;outubro e novembro de 2008)





1. Mania de bar, mania de lembrar, mania de contar

Quando passei umas férias em Pirenópolis agarrei o costume de tomar umas biritas com amigos e conhecidos, lá no bar da rua da Matriz. Ali a gente vê a montanha verde lá na frente, a torre da Igreja e a ladeira a descer no seu leito de pé de moleque, ladeada por casas antigas com portas e janelas pintadas de cores vivas. E também todos os tipos de gente passando pela rua. Turistas e moradores; nativos e advindos.
Uma vez, quando a conversa estava animada, de repente comecei a olhar um grupo de mocinhas que na calçada do outro lado descia do colégio lá de cima. Alguma coisa começou a cutucar meu pensamento, um sentimento meio indefinido de saudades, bem querer e curiosidades não atendidas. O sentimento crescia. Era uma sensação de estar repetindo uma situação já vivida. Aí percebi que era a moça maior do grupo quem chamava minha atenção, quem provocava os meus pensamentos. Era a sua altura incomum, seu descuido no vestir, a falta de pintura no seu rosto, sua discreta feminilidade e sua beleza tão bem escondida, que me levavam a sonhar com os olhos abertos. De repente dei-me conta que a lembrança despertada era a de Madá e de todas as coisas vividas por mim naquela cidade do interior goiano onde moro.
O Ferdinando, ao perceber minha distração e olhar pras meninas, gozou com a minha cara, dizendo ser eu “velho demais pra pensar naquelas coisas, e muito menos o com aquelas mocinhas”. Respondi enfezado que ele estava era muito enganado. Que eu ainda dava era muito no couro. E não era com mocinhas inexperientes, mas com mulheres que entendiam do riscado e sabiam fazer o bem bom com categoria. E que ele estava enganado sobre minhas olhadas. Estava era a me lembrar da Madá, de lá de onde vivo. Aí o Tonico seguindo com a sacanagem perguntou-me rindo se a Madá era boa de cama. Resolvi dar uma retranca pra valer. Respondi que só quem sabia era seu marido. Um cara pra lá de forte, com um metro e noventa, bom de tiro, lutador de caratê, brabo que só ele, e ainda por cima era o delegado de polícia na minha cidade. Meu amigo mudou o tom de seu sorriso mais pro lado do amarelo.
Houve um minuto de silêncio quase constrangedor. Mas logo voltou a cordialidade costumeira e todos pediram pra contar a história dessa tal de Madá, “mulher que parecia tão importante a ponto de distrair o doutor da conversa que estava tão boa, e ainda por cima casada com um cara que dava medo de um tudo”.
Gostei do pedido. Contar histórias era comigo mesmo. A turma sabia disso e curtia com meus “causos”. E naquele caso, contá-lo era reviver um tempo feliz. Com seus altos e baixos. E mais ainda envolvendo a Madá com sua personalidade tão marcante a deixando-me até hoje com tantas perguntas sem respostas.
Pra começar, fui logo dizendo que não era um caso inventado como os das outras vezes. O que eu ia contar era verdade verdadeira, presenciada e vivida por mim. Uma história com pedaços que vi com esses olhos que a terra há de comer. E com outros pedaços que escutei de gente muito séria.


2. Madá menina

Primeiro esclareci que conheço Maria Madalena, a Madá, desde pequenininha. Sou o médico de toda sua família: do pai, o Coronel Salustino, da mãe, a Dona Juliana e do casal agregado, a Mariana e o Aprígio.

O Coronel Salustino é um homem poderoso. Tem fazendas, indústrias e casas comerciais. Um senhor respeitado pela população, pelos políticos da cidade e do Estado. Possui até avião e helicóptero o que lhe possibilita passar religiosamente as sextas, sábado e domingos com a família, e muitas vezes outros dias da semana. Gostava muito da mulher, da filha, da Mariana e do Aprígio. Curtia a família, a natureza e a tranqüilidade daquela cidade, bem longe dos aperreios da capital.

Dona Juliana, chamada pelo povo de Dona Juju, era uma pessoa muito querida. Incentivava cooperativas e participava da feitura e do comércio de bordados. E também badalava na organização das festividades do município. Era uma mulher muito prática e super ativa. Isso, sem deixar jamais de ser carinhosa com o marido, com a filha, com Mariana e Aprígio. E também era muito zelosa para com as providências da casa e com o bem estar de todos os seus.
O respeito do povo por Dona Juju era grande, porque, além do turismo, a cidade vivia da venda de bordados a visitantes, a redes de comércio de todo o país, e também às sacoleiras que lá iam somente para comprá-los.

Dona Mariana e Seu Aprígio descendiam de pessoas ligadas a várias gerações das famílias do Coronel Salustino e de Dona Juju. Por isso, e por muitas razões afetivas, faziam parte da família, inclusive sentando-se à mesa em festas e refeições, quando permitiam suas tarefas. Ele cuidava do jardim, do pomar e das plantações na chácara onde vivia a família. Ela ajudava a Dona Juju nos serviços da casa e nos cuidados com a Madá.

Desde criança Madá era um raio. Passava horas correndo, brincando e trelando de um lado para o outro. Brincava muito de faz-de-conta. Inventava amigos e amigas e seres imaginários. Imaginava cenas onde interpretava todas as personagens mudando de lugar e de voz, tudo com muitos trejeitos dramáticos e hilários. E quando alguém queria confundi-la entre a realidade e suas histórias ela dizia que aquelas personagens “eram de mentirinha”. Tinha plena consciência da diferença entre o verdadeiro e seus fingimentos. Essas histórias inventadas na verdade faziam parte da vivência e da formação de seu modo de ser. Para ela a vida passou a ser uma mistura de realidade e de imaginação. Reconhecia nitidamente suas diferenças, mas as considerava igualmente presentes e importantes na vida de todo o mundo.

Com o seu Aprígio, Madá muito conversava sobre a natureza. As plantas, os insetos, as árvores, os pássaros, a chuva, o vento, enfim, todo o mundo do Cerrado. Aprendia coisas como concretamente são, com suas belezas, utilidades e diferenças. Curtia os troncos e galhos tortos, os pés de Pequi, de Jatobá, de Guatambu, de Cipó Una, de Bate-Caixa, do Pau-Terra, enfim, de todas plantas ensinadas pelo Aprígio. Tinha uma admiração especial pela beleza dos detalhes das pequenas flores, das folhas ao despontar e dos pequenos arbustos, gramíneas e lianas do Cerrado. Encantava-se com os Guarás, as Seriemas, os Tucanos, os Almas-de-Gato, as Gralhas, os Sabiás, os Pássaros Pretos, e com todos os bichos que apareciam. Mas também, nesse aprendizado tão sentido e tão vivido, absorveu em boa parte o modo de ver todas as coisas da natureza com os mesmos olhos dos antepassados negros e indígenas de Seu Aprígio. Desse jeito, a menina aprendeu a amar tudo aquilo que estava na beirinha de suas mãos, de seus olhos, de seu cheiro. E adquiriu uma intuição de que existe realmente em cada coisa muito mais do que se percebe pelos sentidos.
Mariana conversava muitíssimo com a Madá. Horas a fio quando já tinha feito seus trabalhos domésticos. As duas se amavam. Uma por que via na outra a filha que não tivera. A outra por que via na Dona Mariana uma segunda mãe, com tempo e gosto para lhe distrair e instruir sobre todas as coisas no seu redor. As de perto, as de lá de fora e as inventadas pela imaginação.

Comigo e com minha mulher a Madá adorava bater papos infindáveis, e nos incorporava nas brincadeiras de faz-de-conta. Ficava muito alegre quando íamos à sua casa ou quando a família nos visitava.
O Coronel e dona Juju eram nossos compadres de fé e de amizade. Minha mulher é a madrinha de batismo da Madá. Mas logo depois que começou a falar, a Madá me nomeou como sendo seu “padrinho”. Era “padrinho” para cá e “afilhada” para lá. E passou a indagar de coisas da natureza e da vida. Pensava que eu era um médico que sabia muito das coisas e me amava como um segundo pai ou como um avô.


3. O jogo de adivinhações

Um dos papos preferidos pela Madá era o da brincadeira de adivinhações. Mariana lhe ensinava todas as do repertório cultural brasileiro. Eram as famosas adivinhações tais como:
“- O que é o que é: cai em pé e corre deitada? = É a chuva
- O que é o que é: em casa está calado e no mato está batendo? = É o machado
- O que é o que é: cai no chão e não se quebra, entra n’água e não se molha? = É a sombra”.
Mas as duas não ficavam somente nas conhecidas e passaram a inventar novas sobre coisas corriqueiras. Algumas sem nenhuma graça nem dificuldade para descobrir a resposta. Esse jogo para Madá era parte natural e espontânea nos papos com a Mariana e com todos os cristãos. Tal como via ser normal para o seu pai falar sempre de agricultura, comércio e gado e para sua mãe falar sempre de bordados.
Não sei a partir de que momento, Madá começou a inventar adivinhações sobre animais que só ela sabia das respostas. A partir de então, discretamente, a Mariana começou a ganhar muitas vezes no jogo de bicho, jogando na dezena.

Mariana foi juntando suas observações sobre as conversas de Madá e um belo dia procurou Dona Juju para uma conversa reservada. Disse para Dona Juju que a Madazinha querida estava virando uma “adivinhona”. Que fizera a adivinhação: “O que é o que é: caíram raio e trovão na fazenda do Romão”. E poucos dias depois um raio matou duas vacas na fazenda de Seu Romão. Que fizera outra adivinhação ainda mais estranha: “O que é o que é: a sombra na Lua espantou o povo na rua”. Como Mariana não acertasse, Madá disse que era a próxima terça feira, três dias depois. E nesse dia houve um eclipse da lua que assustou o povo não acostumado com tais fenômenos.
Dona Juju não se deixava levar por lendas e coisas imaginárias. Disse acreditar que tudo aquilo era pura imaginação da Mariana. Que a filha era uma pessoa normal. E que nunca mais usasse a palavra “adivinhona”, pois entre outras coisas ela queria dizer: “bruxa”. E que mesmo se a Madazinha fosse chamada de “adivinha”, ficaria para sempre marcada por todos, e traria muitíssimos problemas. Foi peremptória. Que por tudo que era mais sagrado, a Mariana esquecesse todas essas coisas de sua imaginação e de jeito nenhum falasse disso absolutamente com ninguém. Nem com os mais queridos e os mais íntimos.
A Mariana ficou assustadíssima com a reação de Dona Juju. Disse “cruz credo”, persignou-se e prometeu solenemente não conversar sobre nada daquilo, nem sobre nada parecido, com ninguém. Nem com o seu marido.
E nunca mais se falou sobre o assunto.
Mas também Mariana sentiu-se muito aliviada de uma grande preocupação. Dona Juju não lhe dera tempo para contar sobre as adivinhações de Madá que possibilitavam seus êxitos esporádicos no jogo do bicho. Recebera a peremptória e muito conveniente ordem de ficar calada. Só lhe restaria continuar ganhando no jogo de bicho junto com a fama gostosa de ser uma baita sortuda. E nos frigir dos ovos, vinha bem aquele dinheirinho pra comprar fitas, lenços e perfumes.


4. Madá moça

Madá cresceu e se transformou numa moçona. Com um jeito todo seu. Era bem mais alta que as de sua idade e de sua turma no colégio. Não se preocupava com a sua aparência. Não se pintava, não ia ao cabeleireiro, não raspava o sovaco, nem arrancava com cera os pêlinhos do rosto, com faziam todas as mocinhas de sua geração.
Somente os poucos que a olhavam mais detidamente é que percebiam por trás de sua irradiante simpatia, surgir, com bastante força, a sutil beleza de seus olhos, de seus sorrisos, de seu rosto e de seu corpo alto e esguio, com suas discretas, mas convincentes curvas.
Como médico da família, eu sabia que a Madá era uma moça bem feminina desde o começo. Comentava sobre a beleza e atração dos artistas de filmes e novelas. Mas os rapazes da cidade não lhe atraiam. Nem esses se propunham a namorar a Madá. Pois a moça tinha um metro e oitenta e dois centímetros e o machismo do interior não aceita casal com a mulher ou namorada tão mais alta do que seu par.
Era muito inteligente e estudiosa, mas gostava mesmo era de jogar voleibol. Por causa dela sua turma era campeã no colégio. E seu colégio estava sempre entre os primeiros nas disputas municipais e intermunicipais.
Uma vez, até o diretor de um colégio particular chegou com pompa e glória no escritório do Coronel Salustino, lhe oferecendo uma bolsa de estudo que incluía todas as despesas de educação de traslado e de estadia de Madá na capital. Em troca ela estudaria em sua escola. O Coronel recusou a oferta, com ares de indignação. Disse ao pobre diretor que ele, o Coronel Salustino, podia folgadamente comprar mais de 100 escolas iguais àquela. E dar a todos os seus alunos uma educação gratuita e de excelente qualidade. E mais, que a educação não era uma coisa para comércio, para se aproveitar dos alunos atletas como propaganda para aumentar o prestígio e o faturamento das escolas. E que o lugar de Madá era ali mesmo, naquela cidade de interior, onde não tinha a violência que existe na capital. E que o amor de seus pais era muito mais importante. Que o diretor estava desrespeitando e ofendendo a família com tão descabida proposta. O pobre pediu desculpas, que não pretendia ofender a tão ilustre pessoa e muito menos à sua família. E saiu com o rabo entre as pernas. Quando acabou de contar-me o encontro, fiquei admirado com o compadre, com seu moralismo, sobretudo o comercial. Mas aí o compadre começou a rir de mais da conta. Disse que fez um teatro para cortar o papo na raiz. Que na verdade não queria era que Madá saísse da convivência com a família. Que sua opinião sobre a manobra dos colégios com alunos destacados no atletismo não era tão ruim assim. Ele era homem de negócios e entendia que muita coisa se justificava para ganhar dinheiro.

Na medida em que crescia a Madá passou cada vez mais a me pedir explicações sobre as matérias ensinadas no colégio. E também continuava vez por outra a me pedir explicações sobre sua saúde, seus sentimentos, sobre a natureza e sobre as pessoas. Muitas das indagações eram meio constrangedoras. Mas assim mesmo eu encarava com naturalidade, como médico e padrinho em todos os sentidos. Nossa aproximação aumentava ao compartilhamos vários interesses e conhecimentos sobre os homens e a natureza.

Uma vez a Madá me contou que tinha uma sorte incrível. Parecia até saber previamente que partes das matérias iriam cair nas provas. Que ás vezes só estudava aquelas que acabavam sendo as perguntadas. E que outras vezes, quando dominava toda a matéria ensinada, ela se preparava melhor naquelas que afinal caiam nos exames orais e escritos. E que suas companheiras diziam que ela era muito sortuda. Que seus acertos não eram somente por ser tão estudiosa. E me confessou meio sem graça que, para não despertar suspeitas, ela cometia alguns pequenos erros de precisão nas respostas. Pra não tirar sempre a nota dez em tudo, e despertar a inveja e a desconfiança das colegas.
Percebi sua preocupação e tratei de dissuadi-la de qualquer explicação paranormal. Disse que ela tinha uma extraordinária intuição. Que há muito tempo eu sabia desse predicado seu. E que suas previsões se baseavam muito mais na sua observação sobre as preferências dos professores, nas conversas, e sobretudo quando esses estavam dando aulas. Ela se convenceu, até relembrando que, várias vezes, tivera efetivamente tal percepção.
Mas cá comigo, meus amigos, eu fiquei pensando em haver naquilo muito mais coisas do que falei para tranqüilizá-la. Que somente a intuição de Madá, apesar de ser notável, não podia explicar aquele fenômeno a acontecer com tanta freqüência. Mas creio que fiz muito bem. Não era o caso de lhe trazer uma constrangedora constatação de ser diferente das demais mocinhas em tema tão delicado. Não enquanto ela ainda não tivesse a maturidade suficiente para manter sua autonomia de sentimentos e razões com a privacidade imprescindível, sem os constrangimentos psíquicos inevitáveis frente ao inconsciente coletivo, aos conceitos e preconceitos dominantes na sociedade. Além de tudo o mais, para mim não estava clara a significação do fenômeno. Nem pra mim, como médico, nem pra qualquer outro, até mesmo para qualquer cientista que viesse a escutar essa história.


5. O casamento

A vida de Madá mudou com a chegada do João Pedro na cidade. Como tínhamos conhecidos comuns, eu e ele nos tornamos amigos desde o começo. Por isto pude conhecer sua história e suas preferências na vida.
Era advogado na área do Direito Penal com muitos êxitos na capital. Sabia deslindar as circunstâncias e as motivações dos crimes. Descobria os verdadeiros criminosos quando seus clientes eram inocentes indiciados pela polícia. E também inventava boas defesas para minorar as penas, quando seus clientes eram os verdadeiros culpados. Sabia aproveitar as falhas nas investigações e as brechas da lei.
Quando enviuvou, fazia dois anos, começou a tomar desgosto pela sua vida na capital. E passou a amadurecer a idéia de viver de novo no campo, onde passara sua vida de rapaz. Comprou uma fazenda bem perto da nossa cidade e conseguiu ser nomeado Delegado de Polícia por influência junto ao Secretário de Segurança do Estado. Assim, retomava sua paixão pela natureza e pela criação de bois e cavalos, adquirida na juventude junto a seu pai. E por tabela, continuaria exercitando sua habilidade criminalística, ainda que no outro lado do balcão da justiça. Sobre a conciliação de tempo para as duas coisas, não havia problema. O município era relativamente pacato. Estava entre os que tinham menor índice de roubos e assassinatos.
Logo no primeiro de dia de trabalho, ao vir de sua fazenda passou em frente à chácara do Coronel Salustino e divisou a Madá podando roseiras ao lado do seu Aprígio. Parou o jipe, bateu palmas e Madá chegou ao portão. João Pedro perguntou se era ali onde vivia o Coronel. Era um pretexto. Todo mundo sabia de quem era aquela casa. A Madá percebeu o fingimento de ignorância, mas também, interessada, seguiu na jogada. Disse que era filha dele e que se chamava Maria Madalena, mas que podia chamá-la de Madá. Ele também se apresentou, disse seu nome e que era o novo Delegado de Polícia. Perguntou como podia encontrar o Coronel, pois “pretendia se apresentar pessoalmente a tão importante cidadão”. Madá lentamente deu as dicas. João Pedro se despediu e caminhou também lentamente e de costas para o jipe. E ficaram se olhando enquanto puderam naquele instante propositadamente prolongado.
Isso foi numa segunda feira. Quem me contou foi o Aprígio com um exagerado entusiasmo. Como se estivesse contente de mais da conta de ver a Madá provando ser mulher fêmea, depois de tanto desinteresse pelos rapazes da cidade. Depois de me relatar tintim por tintim a conversa dos dois, saiu com essa: “esses dois vão terminar fazendo ninho”.
No mesmo dia o Coronel Salustino contou à mulher e à filha que tinha convidado o Delegado para uma feijoada no sábado, para apresentações e congraçamentos, junto com outras pessoas amigas e importantes da cidade.
Na sexta feira de manhã, pela primeira vez na vida, Madá tomou um banho de moda no centro da cidade. Comprou vestido, sapato, fez penteado, raspou o sovaco, tirou os pelinhos e maquiou o rosto. Ficou uma mulherona pra ninguém botar defeito. Dona Juju ficou admirada e contente. Finalmente sua filhinha assumia suas responsabilidades sociais de mulher. E percebeu satisfeita qual era o alvo e causa de tal mutação.
Veio a feijoada bem concorrida. Eu e minha mulher vimos os dois a trocarem olhares enroscados e a buscarem avidamente oportunidades para dialogar. Foram poucos e em breves instantes os contatos dos dois a sós. A finalidade e o desenrolar da festa não permitiria mais. No entanto foram contatos intensos, elétricos, levando à entusiástica e mútua decisão de se enamorarem.
No dia seguinte o João Pedro obteve do Compadre Salustino a autorização para o namoro. O pai aceitou sem esconder sua esperança na bondade daquela nova relação. Mas impôs que fossem seguidas as normas habituais das famílias importantes naquela cidade. No fim da tarde podiam conversar num extremo da grande sala da casa do Coronel. Deveriam ficar os dois num sofá da grande sala de visitas com o devido acompanhamento de outras pessoas que ficariam no outro lado, algo distante, da mesma sala.
No desenrolar desses encontros, foi Dona Juju com algumas amigas e às vezes com a Mariana que lá ficavam fazendo o acompanhamento enquanto bordavam. Mesmo assim, era tão grande a paixão, que de vez em quando Dona Juju tinha de pigarrear forte para que os dois voltassem a uma relativa normalidade lá no sofá. Cinema, festas e reuniões na cidade, só em companhia de amigas de dona Juju, ou com Mariana.
Mesmo assim, o namoro era quente. Os dois estavam apaixonados na alma, no coração e no resto do corpo. E o povo via bem direitinho tudo isso.
No dia do casamento, foi um festão. Dona Juju se botou. Mandou buscar um vestido de noiva da melhor qualidade feito por um costureiro dos mais famosos na capital. Nem ligou para os protestos da Madá que queria algo bem mais simples. Dado o prestígio do Coronel, na igreja e depois na festa havia um montão de gente, inclusive pessoas muito importantes do município, do estado e até de Brasília.
Mas não faltaram maldosos a inventar que a noiva não deveria se casar de branco. Fiquei revoltado. Era seu médico e sabia que ela casou virgem. Pelo menos do ponto de vista mais restrito. Coisa que hoje em dia, digamos, não é normal.
Também não faltou quem ficasse de plantão perto da casa grande do João Pedro na primeira noite da lua de mel. Corria entre muitos a expectativa de que nessa ocasião seriam ouvidos muitos gritos e gemidos com jeitos e forças nunca antes escutados. Pois era evidente a paixão quente, fora do normal, que havia entre os dois. Mas aí, não sei se por retribuição ao amor que lhe devotava a Madá, a natureza pregou uma peça de arromba naqueles curiosos sem vergonha. Pouco antes da hora H entre os dois, começou um verdadeiro concerto de Seriemas, lobos Guarás, Sapos, Grilos, Cigarras e um montão de outros animais e pássaros noturnos desconhecidos. Os afoitos e as afoitas se dividiram. Uns ficaram revoltados com a natureza dizendo até sacrilégios. Outros ficaram embasbacados, deixando- se enlevar por aquela sinfonia tão afinada, tão melodiosa e com um ritmo tão perfeito, de um modo nunca ouvido antes por eles. Alguns, mais cultos, chegaram a comentar comigo que aquilo parecia com as obras de Beethoven.


6. O crime hediondo

Um dia de manhazinha, Madá contou pro João Pedro que teve um sonho muito estranho. Que uma mulher do campo, com um vestido de mangas e saia compridas, completamente de preto, virou-se pra ela e recitou chorando aos gritos:
“Foi do corno a vingança,
numa cruel pajelança,
ele escondeu a peixeira,
no tronco de bananeira”.

Lembrando-se de suas leituras psicológicas e psicanalíticas, João Pedro tratou de tranqüilizá-la, falando da comida no dia anterior e que os sonhos resultam de cenas, conversas e lembranças tidas nas últimas 72 horas. Até de coisas assistidas na televisão. Madá disse não se lembrar de haver ocorrido nenhuma dessas possíveis causas, mas, como tinha sempre um excelente austral, a conversa parou por aí.

No mesmo dia, ao chegar à delegacia, João Paulo se deparou com o cabo e um homem que chorava desbragadamente. Lá estava para denunciar o assassinato de seu irmão mais moço.
Foram todos ao local do crime e lá se viu uma cena hedionda. Um homem morto, com requintes de crueldade. Estava deitado de costas, com uma perfuração à faca até o coração, o pescoço cortado, um inchaço atrás do crânio e os braços cruzados sobre a barriga com um chifre em cada mão. Observando bem a cena João Pedro percebeu que o homem tinha sido covardemente agredido por traz, com um violento golpe na sua nuca, e que o criminoso acabou de matá-lo com as facadas no pescoço e no coração, para em seguida fazer o ritual macabro, colocando um chifre em cada mão dos braços cruzados.
Olhando ao redor do local, João Pedro divisou lá na frente, junto a uma moita de bananeiras, um boi dessangrado com os chifres retirados por cortes rentes à sua testa.
O morto era o irmão mais moço do homem que chorava e chorava.
João Pedro tirou fotografia de tudo, de todos os ângulos, sentindo aquele gostinho que tinha pela investigação criminalista. Então, fez uma série de perguntas ao irmão, que parecia muito desesperado.
Soube então que o mais velho tinha vindo de uma cidadezinha fazia uns treze anos. O mais novo chegara também de lá fazia uns três anos. Veio para ajudar o mais velho na expansão de seu negócio. Plantavam frutas legumes e criavam porcos. Os dois vendiam na feira semanal, e aos supermercados, tudo o que produziam, inclusive muitos doces e conservas.
Depois da conversa, João Pedro chamou pelo celular o Secretário de Segurança, narrou sucintamente a ocorrência e pediu apoio e providências para o caso.
Horas depois chegou a camionete da Secretaria para levar o cadáver e os chifres para os departamentos de perícia e de medicina legal. João Pedro entregou ao oficial que acompanhava o motorista um relatório inicial e um CD com as fotos que tirou para conhecimento do Secretário e dos departamentos correspondentes ao caso.
No dia seguinte João Pedro instruiu ao Cabo para fazer uma pesquisa sobre a vida do falecido nos lugares que freqüentava na cidade. Junto a amigos e sobre possíveis inimigos. E ele mesmo foi ao vilarejo de onde proviam os dois irmãos para levantar antecedentes.
Quando voltou de lá, o João Pedro comentou longamente com a Madá e fez para mim um breve relato sobre os resultados de sua investigação.
Contou-me que quando rapazes, o mais velho era manso, bondoso, freqüentador de igreja. Apaixonou-se por uma mocinha com a qual, pudicamente, namorava de tardezinha no portão da casa dela. Já entrando a noite ele voltava para a casa de sua mãe. Por sua vez, ela algumas vezes saía mais tarde para fazer estripulias sem que o pobre rapaz soubesse. Muitos tentaram alertá-lo, mas com sua ingenuidade, sua paixão e seu bem querer, ele rechaçava as primeiras insinuações, deixando-os calados e sem graça. Aí, numa ocasião, tornou-se publico à boca pequena que o mais moço tinha saído altas horas da noite de uma festa com a namoradinha do irmão e só foram aparecer no fim da manhã seguinte. O mais velho abandonou completa e definitivamente sua mansidão. Transformou-se em um iracundo violento e jurou a morte do mais moço com requintes de crueldade. Esse, muito assustado, teve que fugir para local longe e ignorado.
Passados dois anos, a velha mãe, muito doente, os chamou para convencê-los a fazerem as pazes antes de sua morte. “Que eles eram muito unidos desde criança, que o fato de serem irmãos era muito mais importante do que se deixarem engabelar por uma putinha qualquer”. Os ânimos entre os dois pareciam já quase frios e ambos gostavam de mais da conta da velha senhora, que fora mãe, anja e deusa para eles. E voltaram a ser os irmãos de antes de o mais moço ter posto chifres no mais velho. E anos depois, como se sabe, ambos se juntaram, numa boa, em trabalhos e negócios na cidade do assassinato.
Na manhã seguinte a sua chegada da corrutela, o João Pedro foi à casa do irmão mais velho a conversar e pedir licença para inspecionar a tapera onde morava o outro. De passagem, com luvas periciais já postas, pediu um copo d’água. O homem trouxe com as próprias mãos. João Pedro deixou cair o copo e disse que, por favor, não se incomodasse, pois ele tinha a superstição de só ele mesmo ter de apanhar os cacos quando tal coisa sucedia. E pôs os cacos em um saco de plástico.
Depois, despedindo-se, foi à tapera do morto, nada encontrando de pista. Somente traços de visita, mas sem nenhum elemento de identificação, nem de quem, nem de data. E seguiu para a moita de bananeira onde estivera o corpo do boi morto. Ao verificar os troncos, viu que em um deles, o miolo tinha sido retirado mediante um corte circular vertical, e tinha sido reposto depois em seu lugar no tronco. Ao puxá-lo para fora viu uma faca escondida ali em baixo. Com os devidos cuidados, usando a luva pericial, retirou-a e a guardou em um saco de plástico.
Mandou os cacos do copo e a faca para exame dos peritos da polícia na Capital.
A notícia do caso já tinha se espalhado nos jornais e televisão. Até fotografias enviadas para a Secretaria de Segurança tinham vazado. A hediondez do caso atraiu muitos repórteres à nossa cidade. E, claro, João Pedro manejava com cuidado os contatos com a imprensa guardando o sigilo da investigação.
O Secretário era candidato a deputado e passou a pressionar João Pedro e a fazer declarações elogiosas sobre ele como um excelente Delegado da sua administração. “Que os culpados sem dúvida nenhuma seriam descobertos com a maior brevidade possível”. Assim, no plural, para maior sensacionalismo e dramaticidade que já eram muitíssimos no caso.
Pouco tempo depois, não tendo ainda o Cabo terminado sua investigação sobre o falecido na cidade, o próprio Secretário de segurança telefonou para João Pedro. Contou que o sangue encontrado na faca era do falecido e que no seu cabo estavam as impressões digitais de três pessoas. Uma era a do próprio morto, e a segunda era igual à encontrada nos cacos do copo. E a terceira, era igual à outra, que foi encontrada no par de chifres.

Na noite do dia em que recebeu tal telefonema, sem ter havido ainda o resultado da investigação encarregada ao cabo, João Pedro, conforme depois me contou, conversou longamente com a Madá sobre os indícios que quase apontavam o irmão mais velho como autor ou co-autor do crime. Tinha um motivo, ainda que tão antigo e as impressões digitais em princípio o comprometiam. Já tinha visto muito caso onde valia o provérbio: a vingança é um prato que se come frio.
E me contou também que na manhã seguinte, Madá acordou inquieta e lhe contou outro pesadelo que tivera com a mesma mulher vestida de preto. Aos prantos dizia repetidamente, desesperada e revoltada:
Tudo errado, tudo errado
Não foi coisa do passado
O verdadeiro chifrudo
É da puta um manteúdo.
Desta vez, conforme o João Pedro depois me disse, já não pôde usar argumentos das teorias dos sonhos como fizera na vez anterior para tranqüilizar a Madá. Os dois intuíam que naqueles sonhos havia um fenômeno natural ainda não explicado pela ciência e que, sobretudo, mostrava alguma utilidade criminalística. E se concentraram em indagar o significado e sua aplicação para o caso do crime hediondo.


7. A descoberta do autor e a fama do delegado

Ao chegar à delegacia na mesma manhã da narração do pesadelo de Madá, o cabo fez o relato do resultado de suas investigações. Descobriu que o mais moço freqüentava o puteiro onde fez amizade e muito transava, sem pagar, com a dona do negócio. Essa fazia alguns anos tinha vindo da mesma corrutela dos dois irmãos. Que no puteiro morava um homem vivendo, por uma estranha caridade, à custa daquele negócio. Que lá permanecia não só por malandragem, fingindo ser o segurança do local, mas também porque nutria uma escondida paixão não correspondida pela cafetina. Que essa dona raramente transava com clientes. Só quando chegavam ricos fazendeiros carentes de seus chamegos. Mas que, com o irmão mais moço, ela com muita freqüência se trancava no quarto. A amizade entre os dois parecia coisa antiga e bem chameguenta.
As pessoas contaram também que nas conversas com elas o manteúdo manifestava forte antipatia pelo assassinado. Mas quando falava com ele, fingia grande amizade e muita simpatia, como que endossando a importância que a dona do lugar devotava ao assassinado. E o mais importante, que esse homem tinha viajado no dia seguinte ao anuncio do assassinato hediondo, dizendo o nome de sua cidade para onde iria visitar os pais.
Aí, o cabo surpreendeu o Delegado João Pedro, mostrando que muito tinha aprendido no pouco tempo da convivência policial dos dois. Em uma sacola tinha trazido o copo que o manteúdo usava no cubículo onde dormia, com as impressões digitais devidamente preservadas.
A perícia da capital comprovou serem as mesmas dos chifres. Vejam que ironia. O chifrudo se denunciou por suas impressões digitais nos chifres que usou no rito macabro para simbolizar que deixara de ser chifrudo ao matar cruelmente o causador de sua “desgraça”.
Não vou fazer vocês perderem tempo com os detalhes da prisão, da confissão, da comprovação e da condução do assassino para a capital devido às ameaças de linchamento. A pouca dificuldade para a comprovação deveu-se precisamente à ignorância do povão do interior, inclusive dos envolvidos, sobre as modernas técnicas de perícia criminal.

A imprensa começou então a chamar o João Pedro de “o Sherlock Holmes do Cerrado”. O Secretário de Segurança faturou o feito como sendo “mais um êxito de sua administração”.

O João Pedro e a Madá riam a bandeiras despregadas. Mas dali em diante suas vidas já não foram com a mesma quietude e contemplação de que antes gozavam.

O Secretário de Segurança, confiante na capacidade do João Pedro e, desejoso de faturar prestígio, começou a chamá-lo à capital para resolver crimes complicados. Lá iam os dois para um hotel e “zás trás”, na manhã seguinte à chegada, o João Pedro parecia inspirado e buscava as pistas pertinentes ao caso, esclarecendo em pouco tempo a autoria e as circunstâncias do crime.


Um dia, o João Pedro, depois de uns três casos na capital, deduziu que aquilo não lhe convinha. Suspeitou, ou chegou à ciência certa, de que os delegados da capital estavam muito aborrecidos com ele. O argumento que usou para convencer o Secretário de Segurança a não mais chamá-lo foi o de que aquilo poderia prejudicar a sua candidatura. Os delegados poderiam por descontentamento prejudicar sua imagem.
E voltou a sua boa vida com a Madá raramente se ausentando da cidade e cada vez mais curtindo o casamento com muito amor, ternura e paixão.
E a Madá, além da curtição da natureza, continuou como professora querida e jeitosa a ensinar a crianças naquela escola da cidade.


8. O escândalo na Capital

A tranqüilidade dos dois durou alguns meses.
De repente houve um crime na capital com muito escândalo. Um rapaz tinha sido assassinado juntamente com uma garota de programa em um famoso motel da cidade. Ele era filho de um “manda mais”, dono de um império industrial e comercial, gozando de enorme prestígio, tendo exercido vários mandatos estaduais e federais e financiado campanhas de muitos correligionários. E suas empresas eram vencedoras em muitas licitações para realização de obras governamentais. Não pensem que estou exagerando. Vocês sabem que existem muitíssimos casos como esse.
Aparentemente, o assassinato fora cometido por uma quadrilha de três homens em um assalto para roubar os freqüentadores daquele motel naquela noite.
O delegado da região do feito era um protegido do “manda mais”. Não sei se por conhecer bem a capacidade do dito cujo, além do furor pela morte do filho, o poderoso buscou o Secretário de Segurança e com muito pouca educação exigiu a pronta descoberta do culpado e um apoio especial a seu apadrinhado. O Secretário ficou numa sinuca de bico. Não podia nomear outro delegado para cuidar do caso e não tinha alternativa senão colocar um cara como João Pedro na estória. Como devia algumas coisas ao “manda mais” o Secretário prometeu todo empenho na descoberta do assassino e que reforçaria a equipe do apadrinhado com um auxiliar da melhor qualidade. Assim que o amargurado poderoso o deixou, o Secretário pediu-me por telefone que eu preparasse João Pedro para aceitar coisa tão constrangedora. Fui à casa dos dois e lá, mal acabei de explicar a situação, João Pedro, com o assentimento evidente da Madá aceitou ir conversar com o Secretário e aceitar a proposta dele. Mas logo me fez uma advertência que eu não entendi naquele momento. Disse-me que se algo acontecesse a ele e a Madá, qualquer que fosse a coisa, eu não me culpasse por ter ajudado ao Secretário a convencê-lo de fazer a investigação de modo a aparecer como herói o apadrinhado do “manda mais”. Que tudo acabaria bem e de acordo com a vontade e disposição deles. E rindo, acrescentou: “o pior que nos pode passar é ganhar na Mega Sena e fazer uma longa viagem ao redor do mundo”. No dia seguinte, lá se foi nosso amigo junto com a Madá para um hotel bem bom da Capital.
O Secretário de Segurança, com muito tato e abundancia de justificativas, pediu a cooperação do João Pedro. Que por favor, se empenhasse ao máximo para a descoberta do crime, mas que fizesse tudo para que o delegado apadrinhado pelo “manda mais” aparecesse como o condutor da investigação. Dizendo entender bem a situação política do Secretário, o João Pedro pôs-se em campo ao lado do delegado protegido. Mais eu sabia que sua verdadeira motivação era a mania de deslindar mistérios a ponto de não lhe importar dividir os méritos com um delegado tão conhecido pela suas limitações investigativas. Sobretudo nas circunstâncias com aparência de um assalto banal em que sua intuição já fazia crer haver ali muitas coisas encobertas.
No decorrer das indagações, das visitas ao local, das conversas com os demais casais assaltados no motel e com testemunhas que presenciaram fatos e avistaram pessoas perto do local onde houve o crime, e também na busca de suspeitos no mundo dos criminosos ladrões e assassinos profissionais, João Pedro ia pondo o “apadrinhado” a par dos avanços e deixando-o manipular os contatos com o “manda mais”, com o Secretário de Segurança e, lógico, com a imprensa. Mas, suas intuições e hipóteses sobre as circunstancias, as motivações e os possíveis autores do crime, o João Pedro foi mais cuidadoso, comentando-as somente com o Secretário e nas longas conversas com a Madá. Ao “apadrinhado” contava somente os passos que dava e as conclusões irrefutáveis.
E, ao final, o João Pedro descobriu tudo o que acontecera, passando o relatório com todas as provas ao apadrinhado do “manda mais”, posto que ele era a autoridade que devia aparecer como condutora das investigações.
E aí a coisa estourou muito feia. O verdadeiro objetivo do crime tinha sido o assassinato do filho único do “manda mais”. Os executantes foram localizados, presos e confessaram que o assalto tinha sido um disfarce. A morte da acompanhante foi para eliminar uma testemunha que eventualmente poderia dar pistas à polícia para identificá-los.
E aí veio o pior. O mandante tinha sido o irmão mais novo do “manda mais”.
Já na herança dos bens da família o mais moço se sentira lesado pelo irmão mais velho, que usou de todos os subterfúgios legais e de um avassalador jogo de influência para ficar dono de tudo. E o que lhe restou, e assim mesmo dito pelo “manda mais” como uma concessão motivada pela fraternidade, foi o cargo de consultor jurídico do conglomerado empresarial em questão. Ele resolveu eliminar o jovem sobrinho porque, além de devido aos rancores encobertos com notável discrição pela usurpação que sofrera, percebeu que o “manda mais” estava preparando o filho para substituí-lo na apropriação e no comando do poderoso conglomerado, deixando-o definitivamente excluído dos direitos de herança.
Toda essa história se transformou em um prato cheio e saboroso para imprensa escrita, falada e televisiva da capital, do País e até do exterior. O prestígio político e moral do “manda mais” começou a vir por água abaixo. Não adiantaram suas tentativas de fazer calar a mídia. As empresas midiáticas sob sua maior influência não puderam atendê-lo no pedido de evitar a cobertura do acontecido. Pois as outras, ainda que menores, estavam a dar furos com notícias, entrevistas e declarações de pessoas próximas, neutras ou inimigas. Punha-se um problema de competição e de manutenção das influências no mercado de todos os meios de comunicação. Além disso, mesmo para algumas empresas da mídia amiga, aquilo era um prato delicioso para o gosto do público por escândalos, um fator sumamente importante para aumentar a presença midiática, sobretudo a televisiva. E, lógico, choveram repórteres na cidade, até de correspondentes estrangeiros. O homem era um líder nacional e o requinte escandaloso do caso, punha a descoberta uma moral familiar apodrecida, até mesmo no ambiente de pessoas tão poderosas.
O “manda mais” soube do resultado pela boca do ingênuo “delegado apadrinhado”. Ficou fulo de raiva. Ameaçou demitir e arrasar a vida do protegido “burro e mal agradecido”. Esse não teve outra saída senão jogar a culpa todinha no João Pedro. Conhecedor das limitações de seu protegido o “manda mais” foi direto ao Secretário reclamando aos gritos. Queria a demissão do João Pedro e saber a ciência certa “onde está homiziado aquele cabra safado”. O Secretário surpreendeu até a si mesmo, pois estava calmíssimo. Em parte porque o prestígio do “manda mais” já não era o mesmo, nem no eleitorado, nem entre amigos poderosos. Começou a responder aquela gritaria dizendo, com voz calma e firme, que fora o próprio “manda mais” quem exigiu veementemente, que o assassino fosse descoberto. E continuou lembrando que no desenrolar dos acontecimentos, seguidos de perto pelo “manda mais”, tirou de suas mãos responsabilidade por uma maior cautela e discrição, devido à recomendação expressa do próprio “manda mais” de que o controle das investigações deveria ser conduzido pelo delegado seu apadrinhado. E narrou que o João Pedro o tinha a pego de surpresa.. Pois numa tarde o João Pedro veio relatar o fim da investigação e o fato de passado todos documentos para o delegado protegido. E que isso já o deixara muito preocupado, posto que o desfecho já estava nas mãos daquele seu protegido, e conseqüentemente seria conhecido pela imprensa. E que, na manhã seguinte bem cedinho, o João Pedro telefonou para sua casa avisando, avisando mesmo, sem margem para negociações, que tinha mandado seu pedido de demissão irrevogável por correio. E disse que estava partindo para uma longa excursão marítima, sem dizer nem como nem para onde ia. E, para coroar sua firme mas calma peroração, recomendou ao “manda mais” muito cuidado com o que viesse a fazer, pois o João Pedro era genro querido do Coronel Salustino, homem de muito peso, que não deixava ofensa sem resposta, não tinha medo de nada e contava com elementos poderosos. Tanto os políticos como os do outro tipo que o “manda mais” bem sabia do que se tratava. O “manda mais” ficou estatelado, mantendo ainda sua cara de raiva. De imediato não podia dizer nem fazer nada. Seria difícil encontrar o João Pedro, sobretudo em países tão longínquos e desconhecidos, e mais, contando com uma proteção tão poderosa. Ele bem sabia. E, também não poderia prejudicar ao Secretário de Segurança com fofoca política, pois estava absolutamente na defensiva junto aos seus amigos mais poderosos. E o Secretário já havia estabelecido importantes alianças políticas na campanha para sua eleição como Deputada Federal, onde já se haviam juntados muitos interesses de muita gente importante.


9. A longa viagem

Ao relatar-me tais fatos, o Secretário me disse do alívio que sentiu com o telefonema do João Pedro. Pois supunha que a reação do “manda mais” seria aquela que de fato aconteceu. Ao ir para tão longe, por caminhos e para lugares ignorados, fosse de propósito ou por pura sorte, o João Pedro estaria seguramente salvando-se de uma vingança descabida e cruel, como era o costume do “manda mais”. E com uma cara expressiva um tanto maliciosa, o Secretário acrescentou ter ficado com uma enorme curiosidade sobre “como é que o seu amigo João Pedro arrumara tanto dinheiro, para uma viagem tão longa na vastidão do Oceano Pacífico, a bordo de um poderoso iate comprado por ele em Parati”. E enfatizou para mim, que “tivera muito cuidado em omitir essa particularidade” na conversa com o iracundo “manda mais”.
Aí eu sorri discretamente, pois me lembrei da advertência que João Pedro me fizera, quando em tom de gozação, disse-me para não me sentir culpado por nada que acontecesse aos dois no decorrer do caso. Pois “o pior que poderia acontecer a ele e a Madá era ganhar na Mega Sena e fazer uma grande viagem ao redor do mundo”. Veio-me à memória as risadas dos dois naquela ocasião.
Três meses depois da partida do casal, morreu o “manda mais” de um ataque cardíaco. Seu irmão estava preventivamente preso, e o processo corria para uma provável condenação muito severa por júri popular, pois havia a repercussão social de estrema revolta e a justiça lutava contra a fama de favorecer a impunidade. Ajudando tal clima, a mulher do “manda mais” não se envolvia no processo e, gastando uma baita grana, iniciara uma badalação escandalosa em festas, viagens e em todos acontecimentos VIP, com registros fotográficos e puxação de saco em tudo que era revista e programas de televisão no ramo da fofoca.
Logo depois da conversa com Secretário de Segurança, começou uma intensa correspondência por internet com o casal. Ficou evidente que o João Pedro dispondo de muito dinheiro, muniu-se de equipamentos capazes para se comunicar com todo o mundo pela internet e outras vias. Percebi também que os dois passaram a contar comigo pra saber das novidades e sobretudo de seus detalhes. Os compadres Coronel Salustino e Dona Juju tinham pouca familiaridade com o mundo eletrônico. Por isso, meu Deus me perdoe, tive a grande alegria de ser o primeiro a lhes comunicar o fim da ameaça contra o ansiado retorno ao nosso recanto.
Os dois estavam a gozar de uma quase permanente lua de mel: de porto em porto, curtindo praias, cidades, as culturas locais e as belíssimas paisagens e particularidades da natureza na região do Oceano Pacífico.
Desde o começo, dois casais ricos com seus iates poderosos se juntaram a eles na excursão.Num e-mail João Pedro contou-me que em um porto numa cidade bem interessante, perto da hora de partirem os três iates, Madá declarou sentir-se mal, obrigando-lhes a permanecerem na cidade. Só os outros dois casais partiram em suas luxuosas e poderosas embarcações. E aconteceu que, dois dias depois, toparam com uma baita tempestade, de jeito nenhum prevista pelos serviços meteorológicos. Depois de passarem por enormes perigos, ocorrendo até o naufrágio de um dos dois iates, os quatro chegaram são e salvos ao porto onde ficaram João Pedro e Madá. Mas, estavam tão temerosos com tamanho susto, que resolveram voltar imediatamente para seus países.
Um mês depois que morreu o “manda mais” vingativo, Madá mandou-me um e-mail contando que estava grávida de pouco tempo e por isso brevemente voltariam. Contou-me também outro sonho estranho. A mesma mulher de preto lhe sorria e dizia que estava muito grata e que não mais lhe apareceria.
Foi logo em seguida a esse anuncio tão gratificante para todos que viemos eu, minha mulher e uma netinha querida passar as férias aqui em Pirenópolis. E confesso a vocês que estão comigo nesta mesa de bar que não agüento esperar para retornar e reencontrar o querido casal dentro de poucos dias.



10. O imaginoso

Terminei de contar o caso e fiquei sozinho naquele bar da rua da Matriz. Foi uma narrativa longa, desde o começo até quase o fim da tarde. Acho até que por tanto tempo escutaram, em parte por consideração à minha pessoa, também pelo fato de que eles é que pediram para contar o caso.
O único que saiu antes do fim não escapou da gozação. A de que ele tinha era medo da mulher que o estava esperando no portão com uma vassoura na mão.
Dos que permaneceram até o fim, o mais instruído punha aquela cara de antropólogo ou sociólogo curtindo mais que nada das peculiaridades individuais e sociais do povo desse interior. Das contidas na história e as das reações dos ouvintes.
Outros, apesar de mostrarem certo cansaço, acompanharam embevecidos, toda narrativa. Entre esses, alguns não captaram todas as “palavras do Doutor”, mas entenderam e gostaram do caso.
Chamou-me particularmente a atenção, as reações de meu do amigo espírita a mostrar um permanente e discreto sorriso. Parecia ver no caso uma comprovação em vivo das suas crenças.
Na verdade curti foi muito a boa recepção de todos. E particularmente fiquei ufano por parecer-me ter percebido as várias interpretações captadas nos rostos e nas perguntas e manifestações dos amigos. E nessas interpretações por mim imaginadas, o ter diferenciado os conteúdos individuais dos coletivos da formação dos pensamentos de todos. Os que faziam parte da personalidade de cada um e os que provinham da educação e dos valores inculcados pela sociedade e pelas comunidades ideológicas e religiosas na vida deles.
Estou ficando imaginoso. Não adivinho as coisas como a Madá, mas as pressinto como se estivessem ao alcance dos meus sentidos. Pressinto as entranhas dos fatos que acontecem e dos que imagino estarem por acontecer. Eu mesmo meditava sobre meus entendimentos e pressentimentos nas entranhas da história e os comparava com as interpretações dos demais amigos intuitivamente captadas por mim. Já pensei muitíssimas vezes na história verdadeira que contei e restam-me ainda mais dúvidas do que certezas sobre seus significados. Mas são dúvidas que não me preocupam. Em maior medida, porque o bem querer por Madá, por João Pedro e pelos Compadres, é o que mais pesa e domina tudo. É a felicidade em todas as relações pessoais, em todos os conhecimentos mútuos.
Além disso, acredito que o percebido e vivido está e estará sempre como parte de todo o universo. Sei que não sou materialista precisamente pela minha formação científica e minha prática de médico. Creio que existem uma infinidade de coisas a serem caso a caso descobertas pelos homens. Pelos cientistas, pelos tecnólogos, por todos e qualquer cidadão deste planeta terra. E entre essas coisas a serem futuramente conhecidas e vivenciadas pela humanidade creio que existem novidades totais, elementos funcionais que vão mais além do que conhecemos como matéria e energia. Esse processo permanente e irregular de descobrimento é o que vem acontecendo na História da Humanidade. E nada justifica que tenhamos parado de descobrir coisas novas. E deveríamos fazer isso com muito mais humildade. A ciência identificou a matéria e a energia mas nada impede que se descubram novos elementos funcionais da natureza, que já estão aí sem que percebamos. Até a forma de pensar da humanidade, inclusive a lógica das ciências, estará sempre a se modificar com o avanço do conhecimento sobre os fenômenos naturais e humanos, bem como, com o progresso de inovação e difusão das técnicas utilizadas pela humanidade.
Vejam vocês, até essas coisas que imaginei, particularmente sobre as reações dos meus amigos ouvintes, podem perfeitamente ser coisas mais da minha cabeça do que as dos outros. Isso me leva a pensar que a comunicação entre nós é muito incompleta e encerra muitos enganos.

11. O final feliz

Estava a pensar nessas coisas e a tomar a dose de estribo com o indispensável murici. O entusiasmo da narrativa tinha me privado do autocontrole que sempre faço nessas ocasiões. Mesmo assim não creio que tenha bebido tanto. Mas o que se seguiu fez-me duvidar do meu estado verdadeiro.
Quando ia descendo a calçada em direção à pousada, onde minha mulher e meu neto me esperavam, a torre da Matriz estava vestida de raios de luz do sol poente. Várias tonalidades de cores vivas, mais para o lado do vermelho, do ocre e do amarelo.
Foi aí que vi, ou pareceu-me ver, a imagem da Madá junto com o João Pedro, ambos com roupa de banho, os dois a sorrirem para meu lado, como num reencontro depois de séculos de ausência. Estavam imponentes. Ela, a mostrar como tinha melhorado tanto naquele passeio, no seu biquíni topless. Mas o mais surpreendente é que segurava uma criança no colo. E sorrindo ela sustentou o bebê de modo que pude ver tratar-se de um menino. Lá estava o pirulitinho e o sorriso do bebezinho.
Aí escutei os lábios mudos da Madá a me dizer e repetir com lentos movimentos que iam batizar o bebê com o meu nome. Aí o menino se pôs a mamar na Madá e a luz do sol foi se dissipando até restar aquela penumbra, quase clara, quase escura, de quando começa a chegar a noite.
E lá me fui para junto da minha mulher e do meu neto. O neto contou-me que viu uns macaquinhos comendo banana que lhes dava a dona da pousada. Pensei cá comigo em quantos macaquinhos estão em nossas cabeças a pedir bananas. Bananas de imaginação, bananas da realidade que nos cerca. E, de noite, eu e minha companheira fizemos um bem bom maravilhoso. Creio que incomodamos os outros hóspedes, pois no dia seguinte no café da manhã, um deles chegou simpático e sorrindo à nossa mesa para nos felicitar por nossa jovialidade apesar das aparências da terceira idade.



























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