O sujeito na camisa amarela caminha pelo hall. Olha de soslaio os vários seguranças postos em todos os lados. Suas mãos trêmulas o denunciam. Os
seguranças o vêem e trocam algumas palavras pelo intercomunicador. O sujeito, que não passa de um imberbe rapaz de 20 anos, apressa o passo para o banheiro. Olha no espelho. “Preciso me acalmar”, pensa. Ele molha as mãos e as passa no rosto.
Quando sai do banheiro já está mais calmo. Contorna devagar uma larga coluna. Suas mãos deixam a mochila cair. Ele corre para a porta. Os seguranças, ainda atordoados com a explosão, procuram o jovem. Ele já está do lado de fora.
Corre para uma caravan com vidros escuros. O carro arranca rápido. Os dois passageiros apenas ouvem o som dos tiros ao longe. O rapaz imberbe, que não aparentava oferecer perigo era na verdade um terrorista treinado. Recrutado entre os membros da ala jovem do Partido Comunista, o rapaz estava envolvido com a subversão desde os quinze anos. O motorista que o acompanhou nesta operação era um colega de faculdade, que havia ingressado a pouco nas fileiras radicais do partidão. O alvo dos dois garotos: um prédio do governo estadual onde funcionava a Secretária de Ciência e Tecnologia. Os garotos tinham planejado toda a ação a tempo, mas apenas agora chegaram os explosivos que haviam encomendado. A rota do tráfico ilegal de armas de fato é um pouco mais complexa que a de drogas.
Embora os carregamentos passem pro trilhas parecidas, vindas através da
fronteira amazônica e chegando por último para venda no Rio, as armas precisam de muito mais proteção e camuflagem. Quando a polícia não as encontra, grupos guerrilheiros de outros países roubam os carregamentos dos traficantes.
Os garotos haviam encomendado as 400 gramas de explosivos plásticos com o Grego, um senhor de meia idade que vendia qualquer coisa que você pudesse querer. Junto com os explosivos, os garotos compraram também um revólver para fazer cobertura caso a situação saísse do controle. Temiam uma perseguição da polícia, o que de fato aconteceu...
A fuga
O prédio não veio abaixo como esperavam os garotos, mas a explosão causou um enorme susto, além de grandes danos ao hall. Os garotos corriam pelas ruas do centro sendo seguidos de perto por uma viatura. O motorista começou a ficar nervoso e dirigir mal. Não tinha tanta experiência quanto gostava de contar que tinha. O sujeito de amarelo dava seguidos tiros pela janela de trás, que já estava quebrada há algum tempo. Os garotos ganham algum espaço e dirigem-se ao bairro do Boqueirão. Procuram chegar a um dos esconderijos mantidos pelo Comando 1o de Maio, ou CPM como era chamado pelos jornais. A polícia acaba perdendo os dois nas estreitas ruas do bairro. O carro dos garotos simplesmente desaparece. Eles entram num esconderijo subterrâneo sob a casa de algumas famílias. Ao contrário de alguns movimentos terroristas europeus em que uma elite assume falar pelo povo sem que este necessariamente os apóie, o CPM encontrava sua maior força de apoio justamente nos braços do povo. A sua causa nobre atraia a simpatia de todos, professores, jornalistas, estudantes, trabalhadores autônomos e grande parte da classe média.
Era muito fácil, devido às circunstâncias em que se encontrava o poder do governo, recrutar para o movimento jovens estudantes universitários, e às vezes, até mesmo alunos secundaristas. Estes jovens utilizavam os congressos estudantis para encontrarem outros jovens com as mesmas inclinações terroristas que eles. O Partidão, nem um pouco ingênuo, patrocinava muitos destes encontros para pôr sob sua asa toda uma nova geração da elite intelectual do país. Todo este exercício de captação de novos membros era obviamente facilitado por um governo entreguista e neoliberal que há tempos descontentava o povo. Foram nos congressos estudantis, principalmente os da UNE, onde foram armadas todas as principais redes de contatos que hoje regem todo o terrorism nacional.
A organização
Como muitos de seus amigos, os dois jovens que participaram do atentado ao prédio da Secretária Estadual entraram em contato com a ideologia de radical esquerda na Universidade. A propaganda esquerdista ia da bandeira de Che Guevara que compunha o cenário do centro acadêmico aos livros e manuais que os estudantes liam emprestados de alguma biblioteca de sindicato. O Minimanual de Guerrilha Urbana, escritos no fim dos anos 60 por Marighela, encontrava novamente utilidade nas mãos destes estudantes. Eles fabricavam todo tipo de bomba e arma caseira, mas logo os atentados tornaram-se maiores e também suas necessidades por armas mais poderosas.
Antes, um atentado destes garotos podia ser noticiado nos jornais como um incêndio de causas desconhecidas. Agora, porém, estes jovens se profissionalizaram. O CPM escolheu os melhores, entre estes terroristas amadores, para ensiná-los a doutrina da guerrilha urbana. O povo descontente porque não enxergava uma saída para suas frustrações, encontrou no Comando um modo de expressar sua raiva. Toda a hostilidade do povo pelo estado instituído, que antes estava desorganizada em atitudes esparsas e solitárias, foi canalizada de forma explosiva pelo Comando. Por isso a facilidade que os jovens terroristas encontravam para desaparecer logo após as mais mirabolantes ações.
Os dois jovens encontravam-se agora num destes esconderijos, sob a casa de uma família simples, no bairro do Boqueirão. O quartinho subterrâneo, um cubículo de aproximadamente 3x3 metros não oferecia nenhum conforto, mas os dois não ligavam. Passavam o tempo relembrando do momento de glória que haviam tido durante aquela tarde, enquanto esperavam instruções dos seus superiores no Comando. O CPM tinha a rígida organização de um exército. Seus membros cumpriam tarefas designadas, de pequeno porte, e raramente percebiam o que elas representavam exatamente. O conjunto destas pequenas tarefas, que todos realizavam, compunham um quadro estratégico que apenas alguns membros de elite do CPM compreendiam. Todos, no entanto, podiam observar o governo encurralado perdendo prestígio e poder. Os grupos de elite da CPM já havia inclusive alguns relações publicas procurando apoio e reconhecimento internacional. Obviamente nenhuma nação civilizada reconhece o grupo.
O governo
Podemos dizer de um modo geral que o governo foi pego de surpresa. Um dia tudo se encontrava bem. O presidente que havia acabado com a inflação, flagelo dos pobres, era adorado por todos. Ele viajava aos mais distantes países e dispensava intérpretes. O presidente vivia um momento de grande popularidade entre os seus eleitores. O governo, que se dizia de centro esquerda, logo se alinhou à direta. Neoliberalismo, globalização, privatização, cortes salariais e escândalos sucessivos abalaram a confiança do eleitorado. O povo reclamava por amparo social, enquanto o governo preocupava-se apenas em atingir metas impostas pelo FMI. “A soberania não vale mais nada”, decretou a oposição. Uma hostilidade desorganizada começou assolar as capitais. Incêndios, saques a supermercados, invasões de terra. Os movimentos sociais aos poucos perceberam a semelhança de seus objetivos e se uniram. O Partidão, que andava meio desacreditado desde os anos 70, percebeu a oportunidade e começou a captar essa insatisfação. O governo não soube reconhecer a unidade do descontentamento e, quando percebeu, já era tarde. Uma rede de terrorismo, composta de frentes urbanas e rurais havia se instalado por todo país. Terroristas experientes vindos de todo mundo acabaram desembocando no Brasil por dois motivos: em primeiro, os movimentos terroristas da Europa haviam reduzido suas ações e muitos veteranos estavam desempregados; em segundo lugar, a possibilidade de derrubar o governo do maior país da América Latina era por demais tentadora para ser ignorada.
A guerrilha rural era encabeçada por membros radicais do MST, Movimento dos Trabalhadores Sem-terra. O MST mantinha diversos campos para treinar
guerrilheiros em todo país, rotas seguras para tráfico de armas, explosivos, drogas e para terroristas foragidos ou procurados. Esta experiência toda não surgiu de repente. Os líderes do movimento passaram anos criando estratégias para chegar onde estão. As crianças dos membros do movimento são doutrinadas desde cedo nas escolas mantidas pelo MST. Mais tarde, os mais ativos são enviados para as frentes radicais, recebendo treinamento para-militar com velhos senhores cubanos ou guerrilheiros das FARC, que já dominam quase todo território colombiano e são o exemplo a ser seguido, acreditam os guerrilheiros.
Enquanto isso, as frentes de guerrilha urbana são encarregadas principalmente de arrumar o dinheiro que financia toda a estrutura do Primeiro de Maio. E não é uma tarefa fácil. Os jovens realizam assaltos a banco – ou expropriações como gostam de dizer –, seqüestros e furtos em grandes empresas.
As ações geralmente são feitas sem grande violência, mas muitos civis já morreram vítimas dessa forma de guerra. Operações especiais, como a explosão do edifício do governo executada por aqueles dois jovens, são feitas apenas quando o CPM deseja enfatizar algum ponto especifico.
Naquele caso específico, os jovens explodiram o edifício em resposta à decisão do governo em autorizar a venda de produtos vegetais transgênicos, mais competitivos no mercado externo. Esta decisão, positiva para as grandes
empresas do ramo, prejudica principalmente os pequenos produtores. Os líderes do movimento sabem disso. Abertamente, porém, defendem uma teoria muito mais complexa. Eles dizem ao povo que os produtos transgênicos são nocivos à saúde do trabalhador por outras razões muito menos ortodoxas. Segundo o Comando, o arroz, a soja e o feijão transgênico vendidos ao povo por preços mais baixos deixam as pessoas desmotivadas, dragando-lhes a força de exigir melhores condições de vida. Isso, aliado a uma programação televisiva alienante, faria com que o povo se mantivesse sempre em estado de torpor, acomodando-se a realidade imposta. Seria o fim das reivindicações, sonho de todas as autoridades. Por incrível que pareça, está teoria muito mais complexa é absorvida de forma mais rápida pelas massas, que a tomam como verdade.
Na noite
A noite estava fria e úmida. Os mesmos jovens que dois meses antes haviam explodido o hall da Secretária de Ciência e Tecnologia, estavam novamente a serviço do CPM. Desta vez o alvo era um rico empresário. Ação de rotina, os dois planejaram seqüestrar o indivíduo e escondê-lo num dos cárceres que o Comando mantinha na favela Pinto. A equipe designada para esta missão era formada por cinco integrantes. Quatro responsáveis pelo seqüestro e um motorista.
O carro do empresário seguia pelo roteiro padrão. Nenhum sinal de seguranças. Nos últimos tempos os seqüestros e assaltos à banco estavam
tornando-se mais arriscados. As companhias de segurança aprenderam técnicas antiterrorismo e de guerrilha urbana para combater os ataques do Primeiro de Maio. O grupo se aproximou do carro do empresário. Todos estavam tensos.
Enquanto isso o empresário alvo conferia algumas notícias no jornal do dia.
Estava cansado, louco para chegar em casa. Mal podia esperar o momento de se atirar aos braços da sua jovem namorada, uma ex-modelo. O carro dos terroristas acelera e ultrapassa o carro do empresário. Numa manobra brusca o obriga a parar. Os terroristas descem atirando. A blindagem do automóvel não é resistente aos tiros dos fuzis suecos. O motorista do empresário e seu guarda-costas são mortos logo de cara, mas vários seguranças de moto aparecem repentinamente.
Os terroristas são acuados sob uma marquise. O terrorista encarregado de dirigir o carro da fuga está morto. Os outros procuram caminhos alternativos para fugir. O empresário ainda encontra-se dentro do carro, no meio do fogo cruzado. A operação de rotina transformou-se num banho de sangue. Mais um dos garotos é morto. Os outros dois estão feridos.
O rapaz que havia completado 21 anos a poucos dias procura uma granada no bolso. Está disposto a seguir até as últimas conseqüências pelo ideal do
Comando. Com o consentimento do amigo ele puxa o pino e solta a granada.
Pedaços dos corpos dos dois jovens são atirados a uns duzentos metros de distância. Pernas, braços e muito sangue voam em todas as direções pelo ar. Os seguranças ficam estupefatos. Um deles corre conferir se o empresário está bem.
O sangue em suas roupas denuncia um corpo já sem vida.
Dona Juracema
Os jornais do dia seguinte só falam sobre o atentado, mas a identidade dos jovens permanecia desconhecida. A população estava chocada com a violência do ato. Embora freqüentes, as ações do Comando não envolviam tamanho fanatismo e violência.
Dona Juracema acordou cedo neste dia para preparar o café. Assiste à
televisão enquanto corta o pão e põe as coisas na mesa. Notícias de ações como aquela se tornaram freqüentes e ela já havia se distanciado emocionalmente.
Todos comentavam, mas poucos sentiam algum sofrimento pelas vidas tiradas. O terrorismo levou a um embrutecimento da sociedade. Como os demais, dona
Juracema estava chocada. Ela acreditava que esta guerra tinha de parar. Mas
mesmo sua revolta era superficial, como nos demais.
Naquela manhã seu filho Fernando, um jovem de origem simples que estudava ciências sociais na Universidade Federal, não se levantou para o café.
Depois de chamá-lo algumas vezes da cozinha resolveu ir até o quarto. A cama
arrumada era um sinal. O garoto não tinha dormido em casa. Talvez estivesse com algum amigo ou na namorada, pensou. Suas escapadas noturnas eram
freqüentes. Dona Juracema não se preocupou muito. Voltou a cozinha e tomou o café da manhã sozinha. Deixou a loça suja na pia e um sanduíche proto para ele, pois com certeza Fernando chegaria morto de fome. Trancou a porta e saiu
apressada para o trabalho.