Fez a prova definitiva de seu vestido de noiva a cinco dias do casamento. Todos os detalhes e ajustes de costura necessários estavam terminados. Radiante, Marlene mirava-se no espelho ladeada pela costureira, mãe e tias, lembrando uma rainha cercada pelos seus súditos mais próximos. Com as mãos transpirando de emoção e os olhos marejados de lágrimas pela expectativa da iminente realização de seu grande sonho, ela já se antevia entrando, triunfante, ao som de majestosas trombetas entoando a Marcha Nupcial de Wagner, na igreja mais linda de São Luiz do Maranhão; a do Sagrado Coração de Maria.
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Acordou sobressaltado às três horas da madrugada com o toque do telefone junto à cabeceira da cama. A notícia não poderia ser pior para Orlando. Um dos trabalhadores da obra sob sua responsabilidade acabara de sofrer um acidente fatal. O comunicado deixara-o petrificado. Era uma obra portuária de forte projeção política, cuja inauguração, marcada para o último domingo do mês, contaria com inúmeras autoridades da cidade de Salvador, destacando-se a presença do Governador do Estado da Bahia. Tratava-se de um novo e moderno terminal do Porto de Aratu, destinado à importação de fertilizantes. Como o cronograma estava atrasado, Orlando estabeleceu um regime de trabalho ininterrupto de 24 horas e, apesar de o ambiente ser altamente perigoso, vinha mantendo a contento o seu programa chamado “Acidente Zero”. Realmente não contava com isso a duas semanas do término dos serviços. E sua surpresa foi ainda maior quando, ao chegar ao local, constatou que a vítima era o seu encarregado de montagem, um profissional exemplar, que o acompanhava desde o início de sua carreira naquela firma.
Por um pequeno descuido, talvez provocado pelo cansaço excessivo, havia caído de uma esteira transportadora em construção, a uma altura de 30 metros do solo.
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Era inegável: alguma coisa estranha estava se passando com Alzira, nos últimos dias. O marido vinha notando uma mudança gradativa no comportamento dela, mas por receio ou qualquer outra razão que ele mesmo desconhecia, procrastinava questioná-la sobre o fato. Apesar de continuar fisicamente bonita e vistosa, seu semblante não demonstrava mais o costumeiro vigor da mulher dinâmica e decidida que ele conhecia tão bem. Os olhos perderam o brilho e a cada dia ela se tornava mais calada, como se algo a remoesse por dentro. Mesmo a recente promoção para gerente da agência bancária central não parecia ter-lhe trazido qualquer felicidade.
Naquele dia, no entanto, ao chegar do trabalho visivelmente cansada, Alzira prostrou-se numa poltrona da sala e ali ficou durante muito tempo, quando, então, seu marido resolveu interrompê-la:
― Está com algum problema, minha querida?
― Não, nenhum. Somente um pouco cansada – suspirou.
― Mas você tem andado preocupada, ultimamente.
― Nada importante. Aborrecimentos com funcionários na agência. Ossos do ofício.
Ele sabia que ela não estava sendo sincera, mas resolveu não pressioná-la mais:
― Fique calma que tudo isso passa. Nossa viagem a São Luiz fará bem a você, embora eu saiba que será cansativo enfrentarmos 630 km de estrada dentro de um automóvel.
― Desculpe o transtorno, meu amor. Reconheço minha culpa, mas eu morro de medo de avião.
― Não se preocupe. Uma vez ou outra eu perdôo – brincou o marido. Essa maratona é inevitável. Afinal seremos padrinhos no casamento de sua irmã caçula.
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Voltou para casa na hora do almoço completamente arrasado, após tomar todas as providências necessárias junto à Delegacia de Polícia Distrital e ao Instituto Médico Legal. O corpo seria liberado e transladado no final daquela tarde para João Pessoa, na Paraíba, onde os familiares da vítima aguardavam. A pressão que Orlando vinha sofrendo por intermédio de seus superiores na empresa era terrível. Todos o responsabilizavam pelo atraso das obras, e, além da cobrança para a recuperação do cronograma, era, com freqüência, ameaçado de demissão. Agora, este infortúnio lhe empurrava um pouco mais para a beira do abismo. O consolo que poderia buscar junto a sua esposa num momento como este, tampouco existia. Sua vida conjugal atravessava uma fase crítica, permeada de intolerâncias e constantes discussões. O alvo das brigas, via de regra, era a vida nômade que o casal levava em decorrência da profissão que Orlando abraçara. Como engenheiro civil e trabalhando numa grande empreiteira, as mudanças entre cidades e até mesmo Estados por todo o Brasil, tornaram-se uma rotina.
Sentou-se à mesa da cozinha com os nervos em frangalhos e, num aparente desespero, tentou buscar alguma ajuda, iniciando uma conversa com a mulher:
― Com o acidente ocorrido na madrugada de hoje, eu perdi o meu melhor encarregado, além de um inestimável companheiro.
― Sinto muito – respondeu ela, lacônica.
― Será que você ao menos pode avaliar a situação desesperadora na qual eu me encontro dentro da empresa? – retorquiu com rispidez.
― Quem procura acha, meu velho. Foi você quem quis isso tudo e a idiota aqui aceitou ir atrás.
Num acesso de fúria, Orlando agarrou a ponta da toalha e arremessou, com violência, tudo o que tinha sobre a mesa. Pratos, copos e talheres se estatelaram de encontro à parede. Levantou-se abruptamente e antes de sair de casa ainda gritou:
― No fim de semana, quando formos a São Luiz para o casamento de minha irmã, trate de ficar de vez por lá, com a porra da sua mãe!
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Tirou dois dias de folga do banco para preparar a longa viagem rodoviária que faria na sexta-feira, entre Imperatriz e a capital do Estado. O casamento seria no sábado à noite, mas vontade mesmo de participar do evento, Alzira não tinha nenhuma. Na verdade, os problemas que a afligiam remontavam à sua infância e tinham um nome, o qual jamais esquecera nos últimos vinte anos: Padre Orozimbo. E era esse homem que faria a cerimônia religiosa do enlace de sua irmã. Tristes lembranças afloravam à sua mente e revivê-las significava mais uma sessão de tortura. Via-se com oito anos de idade no curso de catecismo ministrado por aquele padre. Invariavelmente era intimada por ele a comparecer à sacristria após as aulas. Acusando-a de não estar se preparando bem para receber o diploma, colocava-a entre as pernas, sentado em uma cadeira, e começava a passar as mãos por debaixo do vestido. Alisava as coxas e embora ela chorasse e tentasse afastá-lo, ele a censurava dizendo que aquilo era um castigo por não estar se comportando como deveria durante o curso. Depois, abaixava sua calcinha, sentava-a no colo e começava a abraçá-la e beijá-la numa fúria animalesca. A cena terminava com o padre gemendo e suspirando em meio a um estremecimento assustador, o que parecia a ela, na sua maculada pureza, um porco esfaqueado se estrebuchando para morrer. Na saída daquele salão, Alzira recebia a recomendação de não falar nada a ninguém, pois tudo o que ele fazia era por ela não ser uma boa menina. E se contasse a alguém, não seria diplomada e, por certo, o castigo que receberia dos pais seriam bem piores. Em sua ingenuidade de criança, sem entender o motivo daquela situação, sentia um medo terrível de não corresponder à vontade de sua família, tão religiosa e tão amiga daquele sacerdote. Uma coisa, no entanto, estava clara em sua mente inocente e confusa: o crescimento secreto de uma aversão e ódio mortal pelo Padre Orozimbo.
Perdida em devaneios enquanto arrumava as malas, encostou uma cadeira junto ao guarda-roupa para alcançar a prateleira mais alta, sobre a qual, com a ponta dos dedos, tateou e encontrou o que buscava: o revólver de seu marido.
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O sábado amanheceu ensolarado e, para Marlene, dentro de sua contagiante felicidade, aquele era um prenúncio de que o grande dia de sua vida seria maravilhoso do início ao fim. A despeito do natural corre-corre, ela estava tranqüila e satisfeita, pois todas as providências necessárias à cerimônia foram tomadas a contento e os seus irmãos, sua última preocupação, já haviam chegado: Alzira e o marido na véspera, e Orlando e sua mulher, cedo naquela manhã.
Pela agitação e euforia reinante naquela casa, algo escapava aos olhos de todos, menos aos da mãe da noiva. Seus instintos diziam que nem tudo estava bem com os dois filhos recém chegados. Na primeira oportunidade conversou a sós com Alzira. Mas esta se manteve inflexível, apresentando-lhe as mesmas justificativas dadas ao marido, no sentido de que suas preocupações eram de caráter profissional e rotineiras, perfeitamente superáveis com o passar do tempo. Com Orlando, no entanto, a conversa foi diferente:
― Estou sim, mamãe, com sérios problemas no serviço e dentro de casa – desabafou.
― Você precisa buscar ajuda, meu filho.
― Está difícil segurar a barra. Nada parece dar certo. É como uma bola de neve. Os desacertos com minha mulher são transferidos para o trabalho e vice-versa – deitou a cabeça no colo da mãe e começou a chorar como uma criança desamparada.
― Ouça, meu querido. Eu sei que hoje não é o dia mais apropriado – disse com doçura na voz -, mas sua vinda até aqui é uma chance que você não pode perder.
― O que a senhora quer que eu faça?
― Quero que você saia agora e vá até a casa de sua sogra, pegue sua esposa e, juntos, procurem o Padre Orozimbo. Tenho certeza que ele é a pessoa mais indicada para auxiliá-lo.
― Talvez a senhora tenha razão. Eu sempre tive uma admiração muito grande por ele na adolescência, por diversas ocasiões deu-me orientações corretas para meus problemas – disse esperançoso, com as lágrimas escorrendo pelas faces.
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Eram três horas da tarde quando Alzira, a caminho do cabeleireiro, estacionou seu carro próximo à entrada lateral da Igreja do Sagrado Coração de Maria, onde tinha sido batizada e recebido sua primeira comunhão. Assustou-se ao ver pelo retrovisor seu irmão e cunhada saindo abraçados e sorridentes pela porta da sacristia. Abaixou a cabeça para não ser reconhecida e, pelo canto dos olhos, momentos depois, viu ambos tomando um táxi e se afastando.
Ao entrar naquele inesquecível salão, palco dos atos que marcaram tão profundamente sua infância, Alzira deparou com o Padre Orozimbo que estava de costas para ela, solitário, arrumando alguns livros em uma pequena estante de canto:
― Boa tarde! Posso entrar?
Surpreendido, virou-se em direção à porta de entrada e divisou, contra a claridade que invadia o ambiente, a silhueta de uma bela mulher:
― Por favor, entre.
― Está lembrado de mim, padre? – perguntou com irônica docilidade na voz.
― Desculpe. Não estou, não – respondeu confuso.
― Então vou clarear sua mente. Eu sou aquela menina que costumava freqüentar esta sala após as aulas de catecismo há vinte anos atrás – disse, enquanto caminhava a passos lentos em direção ao vigário. Lembra-se?
― Vinte anos atrás? Como posso me lembrar da senhora? – perguntou embaraçado.
― É provável que não se lembre mesmo. Muitas outras crianças devem ter passado por aqui depois de mim. Mas, tente se lembrar, seu cachorro! – gritou.
Ao terminar a frase, abriu a bolsa que carregava, sacou o revólver e apontou para o peito do padre a dois metros de distância.
― Quem é a senhora? – perguntou gaguejando e com os olhos esbugalhados.
― Eu era a sua aluna preferida. Aquela que você cansou de abusar, seu maldito tarado!
― A senhora está na casa de Deus!
― Uma casa que você nunca respeitou!
Com os olhos injetados de raiva e completamente transtornada, Alzira ordenou ao sacerdote que sentasse numa cadeira e a seguir, aproximou-se e encostou o cano da arma na cabeça dele. Com a mão livre, levantou seu vestido até a altura da cintura:
― Agora passe as mãos em minhas coxas, seu pervertido dos infernos!
― Por favor, me deixe. Vá embora, não me mate – suplicava, chorando convulsivamente.
― Eu estou mandando passar as mãos em minhas coxas! Faça isso! Da mesma forma que você costuma fazer com crianças, seu porco velho! – gritou, enquanto pressionava a arma até deixá-la engatilhada.
Com tremores incontroláveis, implorando por piedade, ele procurou tocá-la, obedecendo às suas ordens. Simultaneamente, numa fração de segundo, Alzira levantou a mão direita o mais alto que pode e desceu com toda sua força a arma que empunhava, no rosto do padre, jogando-o no chão. Um enorme corte se abriu em sua face esquerda e dois dentes foram cuspidos em meio ao sangue que jorrava.
Já próxima à porta da rua, como se tivesse esquecido alguma coisa, ela voltou até o local em que o reverendo estava caído e deu-lhe um violento chute no meio de suas pernas que o fez gritar e contorcer-se ainda mais. Ao sair, recomendou:
― Se estiver hoje à noite no casamento da minha irmã, eu pego o microfone e tiro-lhe a máscara, mostrando a todos o crápula que você é!
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Marlene não cabia em si de tanta felicidade ao receber os cumprimentos na saída da igreja. E tal alegria parecia irradiar-se por toda sua família. Incluindo Alzira, que se apresentara calada e tristonha até então, agora mantinha um delicioso sorriso no rosto.
A cerimônia religiosa tinha sido simplesmente espetacular. Poderia se dizer perfeita, se não fosse o contratempo da viagem repentina de Padre Orozimbo para atender a um chamado urgente de sua mãe que estava muito doente no interior do Estado. Felizmente, no entanto, o bom padre teve o cuidado de procurar, a tempo, um colega para substituí-lo, antes de viajar.