Saberemos que todas as histórias têm um final, se não fossem as mãos do autor que esforça a mente para prolongar a agonia de personagens que saem do imaginário e vêm ao real cobrar suas vidas roubadas por tanto tempo. Um filme de uma série dos anos sessenta mostra a apavorante cena de um homem que controlava a vida dos outros através de aparelhos de televisão, ele mesmo sendo morto por uma de suas criaturas observadas, ele mesmo sendo observado agora por um ente maior, este colocado acima e além de suas possibilidades, pois que ele mesmo jamais poderia prever sua morte e que esta viria de forma tão horrível e imediata (ele acabara de ligar seu invento...). Um touro em uma arena rasteja sangrando observando, os olhos turvos, a espada que lhe ceifará a vida: Momento mágico, ápice de uma tourada na Espanha. O sangue, o cheiro da vida que se esvai, o olhar rubro e turvo, o cansaço que se abate em seus músculos, o olhar aguçado do toureiro a fitar a massa que bamboleia à sua frente, prestes a desferir seu golpe mortal, vitorioso, final, rude e lancinante. O touro rasteja, o toureiro se vangloria, a multidão urra, as novas vestes de um antigo cerimonial pagão, seus poros exalam suores fétidos, mas a multidão berra, pois seu olhar aguçado observa a vida se esvaindo, meus músculos fraquejando, procurando por ar, minhas pernas bamboleando enquanto minhas pupilas se esgarçam e eu peço pelo amor de Deus, não me abandones, não me tires o que tenho de mais precioso, tenho meus amores e sei de meus filhos, uns não deram certo, outros quem saberá, outros estão azedos na vida, muitas já se foram, eu mesmo sou muitos e já fui outros, meus momentos se confundem, mas eu espero agora e minha espada de aço laminado espera certeira o anjo da noite chegar e dar a ordem, polegares invertidos, como em antiga arena, em que seres de outro mundo ceifavam humanas fontes, eu sei, mas agora tenho de fazer meu trabalho, touro insano, minha areia já se permeia de metade de sua vida, agora sou eu que repouso aqui serena, quente e molhada, tua última morada, minha última mirada, todas as minhas recordações se misturam, eu sou muitos e todos e nenhum, nenhuma, diferentemente do gato que anda sorrindo por estas paragens, da moça de coxas sublimes, das águas claras da cachoeira, das bancas de jornal cheias de carolas morenas, braços fortes..
--Vai trabalhar vagabundo!
Olhar de rápida luz, uma íris se encontra em outra, a mão coçando o gatilho, ele não brinca, nunca brincou, cansou de ser chamado de vagabundo, vagabunda é ela, esta vaca e o touro grita junto com a multidão enfurecida que já vê a espada agitar-se ao alto, em palmas e sapatos batendo e mulheres em agonia à espera do espeto final, estendidas em atrozes leitos, amarradas dos pés à cabeça, balançando genuínas ancas em murmúrio festivo enquanto a hora da lança se aproxima, nos gemidos dela que se esvai em sangue pois rompeu a bolsa, ela se lembra de seu bom pai e pensa, meu deus, não me abandones nesta hora, nesta hora que eu mais preciso de ti, não me abandones, pois esta criatura que nasce de mim, de ti nasce, em mim vive e em ti viverá, mesmo quando eu me for, para sempre, amém, e ela se contorce em nova convulsa alegria, que prenuncia a tempestade próxima, ele enquanto isto, observa as nervuras do teto baixo, o mesmo que vê a moça despudorada em seu andar, depois do jantar, quando ela observa os transeuntes, ela que jamais se furtou a uma folga, hoje sente solidão, pois todas se foram, ela sabe, meu pai, quantas são suas moradas, e tantos são os segredos que ela mostrou ao mar e à terra, ela que sabe que um dia já se foi, outros virão e em paz, ela sabe, ele também, que somos todos feitos de barro e sal, todos irremediavelmente mortais, simples mortais comuns, simples degredados em uma Terra estranha, estrangeiros em um Universo em mutação, enquanto resfolega e balbucia coisas incoerentes ele lhe aperta as ancas, ela se esvai em êxtase, ele levanta a espada, será um dia, meu Deus, será que um dia ela descerá em vão, não encontrando a cabeça do touro exposta, será meu Deus um dia, que ela encontrará afinal seu repouso na doce areia que se molha de sangue e lágrimas, será meu deus, que nesta arena não se confundirão sumos, perfumes, aromas, hálitos, fedores, essências, fragrâncias, meu deus, será que ainda não estou aqui, ou será que já estou?
Supremo fracasso, a morte. Suprema rendição. Necessária? Não, não é. Simples rendição ao eterno, ao insuspeito, ao mais temido, ao mais recôndito medo. Não adiantará nada, mesmo, sejamos realistas!!!! Aguardemos solenes a hora de nossa mais esperada das horas. Agora tenho de terminar enfim, pois todos vieram e me levam ao Abismo. Todos sempre me esperaram e me levaram ao Abismo, e são tantos os abismos desse todo mundo, são tantos quantos são os olhos que me fitam apavorados e me seguem à distância, rememorando os partos doridos, os suores insones, a vida alquebrada, eu me sinto meio profano, me sinto sem medo, injusto seria dizer o contrário. Sinto-me vazio, impuro e eclipsado, mas as mãos me puxam, sou do Abismo agora e já não me agarro enfim às margens do Oculto véu, não mais me importo, pois as mãos que me afagam são as mesmas que eu fiz, à minha imagem e semelhança. São os dedos que eu mesmo criei e num pavoroso gesto, me chamam ao caminho que eu próprio devo ter vislumbrado, num dia de minha infância, eu sei, mas que custo a acreditar, agora que parto. Um piano velho faz contraponto, a sombra e a fuligem, a luz no meio do teto, eu parto sim, mas vou aos poucos, eu parto e deixo minha indelével marca para vocês que me provaram afinal: Sou humano, como todos vocês, sou demasiado humano, enfim, sou demasiado, até mais tarde.