O corpo físico adoeceu quando desafortunadamente esqueci de parar no momento certo.
Bem que quis ajeitar-me com o que eu já sabia de curações, mas não logrei êxito.
Fiquei muito triste comigo mesmo. Senti aquela agonia no peito voltar e uma saudade danada de muitos amigos que eu ainda queria ver antes de partir dessa vida. Beijar-lhes a face era um sonho ardente, ou aconchegar em dorsos suaves, era um alento.
A febre estava alta e isso era bom. Pelo menos o corpo estava tentando se reencontrar em seu eixo.
A saudade contudo e aquela falsa idéia de que estava a quilômetros de distância da minha zona de conforto: a uma familia, a cidade natal, o lar, a cama, conseguia produzir uma angústia no ego que já não tinha fim.
Estaria eu delirando?
Quantas vezes não quis partir daquela zona de conforto. Quantas vezes não me cobrei a falta de coragem de empunhar uma mochila.
As rotas botas e o resto do agasalho, agora alforje, estavam testemunhando a derrocada de um viajante, companheiros que foram desde minha saída, não sei há quantos anos.
Uma força inebriante e desconexa se movia dentro e fora de mim.
Quando consegui centrar as forças num único fluxo, percebi que tinha um significado, aquele movimento. Era um ato de cura...de muita coisa.
Mas naquele instante, o máximo que consegui foi adormecer.
O clarear chegou quando um amigo me ofereceu quatro respostas a cerca de quatro perguntas que eu lhe estava fazendo:
O que é cura, o que é ato de curar, o que são curadores e o que provoca a doença.
À primeira delas, meu ser interno, iluminou-se de esclarecimentos, como dizendo: "Ah! então era isso que eu tinha conseguido naquele dia e não compreendi!".
As restantes, eram muito mais dirigidas à minha pessoa, em relação a todo o aprendizado que tive e o acúmulo de excessos por não saber lidar com tesouros recebidos.
"Cura é esvaziar-se de tudo que não é seu".
"Ato de curar é devolver ao outro o que não é seu e valorizar o que tem".
"Os curadores são pontes que trazem de volta o que é seu e não lhe cabia por estar cheio de outras coisas".
"O que provoca a doença é carregar aquilo que não é seu, ainda, e nem sabe se o será um dia, ocupando-se antecipadamente".
Foi ótimo ouvir isso.
Sempre foi uma prática comum me acumular de coisas, regras, padrões comportamentais e receitas "infalíveis" no intuito de promover a cura, sob quaisquer aspectos que queiram entender essa palavra, quando na verdade tudo que precisei foi me ligar comigo mesmo, com quem pode orientar e com a unidade universal, esvaziando-se de qualquer subterfúgio.
Depois dessa experiência segui viagem, ainda de madrugada.
Amanheci tentando lembrar do rosto de meu amigo que havia ainda me deixado um sorriso enigmático junto com alguns huacos e neles ungüentos balsâmicos. Esses huacos carregados de símbolos estavam me restaurando as energias e os ungüentos selando a cura.
Parece que não era muito importante que eu o conhecesse. Só o que trazia.
Quanto aos últimos detalhes que estaria me tentando passar, lembro perfeitamente. Eram espécies de representações de animais como o jaguar, o condor e a serpente. Outros huacos redondos como botões também apareciam. Todos muito bonitos e significativos.
Já que eu estava por ali, resolvi buscar entendimentos sobre aquelas representações incas.
O povo Inca, que conservava seus ensinamentos sob outros meios além da tradição oral, como nos motivos cerâmicos por exemplo, tem um enorme acervo desses huacos que vi no sonho. Isso denota um adiantado processo lingüistico, com expressões de idéias, rituais, crenças, controles administrativos e outras observações gerais.
Guardei essas compreensões e fui rumando até Qolpa, onde descansei ao lado do riacho Qesqamayu.
Fiquei meditando naquela lição, uma das muitas que aprendi e nunca esqueci.
Cheguei à conclusão de que resistência nada mais é do que o desconhecimento da realidade.
Lembro-me perfeitamente que o guia da caravana satisfeito com meu crescimento veio falar durante aquela manhã sobre os símbolos incas e sua relação com o modo de vida das cordilheiras. Não sabia ser tão profunda a ligação entre os dois aspectos.
Naquela oportunidade lhe perguntei porque a maioria dos símbolos quando não eram figuras sagradas do deus Tumi, eram círculos adornados em diversos estilos. Estariam esses círculos representando espaços sagrados?
- Como percebestes - ele respondeu - os símbolos, tal como as letras de um alfabeto, trazem uma carga de informações, uma história às vezes de maneira tão vívida que basta um olhar para perceber seu conteúdo. E os círculos não representam só espaços sagrados, mas diversas situações em que um indivíduo ou um povo passam.
- Seriam mandalas?, perguntei
- Se os símbolos que se apresentam harmonicamente em torno de um eixo é denominado mandala, sim.
- Em sânscrito, mandala significa basicamente círculo e centro - completei.
- Eu tenho guardado muitos desses desenhos - disse meu guia - os recolhi em anotações de viagens que fiz pelas Américas. Gostaria de lhe presentear pra que faça um estudo sobre eles, o que acha?
- Ficaria muito feliz, embora eu não seja capaz ainda de estudá-los.
- Ninguém o é até que comece. Além disso, vamos passar um bom tempo juntos e em meio às outras coisas programadas, vamos aprendendo. Para começar tome esses desenhos e até chegarmos a Llulluchapampa tente decifrá-los por sua própria conta.
Esse "até chegarmos a Llulluchapampa" era um penoso espaço e tempo a ser percorrido, subindo encosta acima em meio à chuva, frio e o mais delicado...o ar rarefeito.
Se já era difícil pensar em qualquer coisa, muito mais olhar desenhos.
O guia, percebendo minha dificuldade pediu que sentasse, deixasse a mochila no solo e respirasse profudamente e não pensasse em nada específico. Naquele momento, era preciso soltar todos os pensamentos.
Ah! como foi bom aquilo.
Me senti abrigado no ventre das cordilheiras.
Então ele começou:
- Lembra onde nós começamos a trilhar esse caminho?
- Em Qoriwayrachina?!* respondi, perguntando...
- Sim. Próximo à linha férrea. Pois bem. Um pouco ante dali, a um quilômetro se encontra Pincha Unuyuj**, pequeno grupo arqueológico pertencente aos nossos antepassados. Naquelas montanhas, a uns vinte metros acima do nível do rio, existem recintos onde foram guardados diversos túmulos da nobreza Inca. Tanto ali quanto nos povoados vizinhos, haviam postos de vigilância, para garantirem a segurança de todo o complexo Torontoy e em especial, aqueles locais sagrados. E por que?
- Talvez porque guardassem muitos tesouros, jóias, pedras preciosas, sei lá - respondi.
- Para os Incas, o maior tesouro, meu amigo, era a vida. O ouro que usavam só era importante porque se assemelhava à luz de Inti, o sol. - E porque a vigilância, se já estão mortos e aqueles ornamentos não tinham o valor capital que têm hoje?
- A segurança desses locais, era importante para garantir a condução da essência de cada um, assim que se desvinculassem do corpo físico, para um tempo e espaço diferente do que aquele que tinha vivido. Tanto assim que os túmulos ficam de frente para o rio e para o nascente do sol.
- Muito parecido com os rituais egípcios - afirmei.
- Sim, onde a grande iluminação chega, ali a lei natural da vida se estabelece.
- Você não acha que eles tinham um profundo apego ao corpo material? - perguntei - E se for isso lógico, não estariam prejudicando essa condução à uma nova experiência?
- Toda vez que estamos trilhando um caminho, saindo de uma condição e se esforçando para alcançar outro melhor, estamos realizando um rito de passagem. Então, até que venha a próxima etapa desse caminho, devo valorizar aquela em que estou . Afinal, foi a partir dela que encontrei a outra. Se você observar o primeiro desenho, irá perceber que a essência está num corpo. Então ele existe ainda. Contudo ela se desloca rumo a um limite desse corpo. Romper esse limite é o rito da passagem. Você não se lembra de algo muito familiar, nesse desenho que está em suas mãos?
- É incrível! Lembro sim! Um útero. Uma criatura na eminência de romper uma placenta...algo parecido.
- E você conseguiria imaginar uma placenta sem útero e o útero sem a mãe guardiã? Como a nova condição de vida daquela criatura seria sem essa segurança?
- Porque você pediu que eu observasse esse desenho?
- por que você acha?
- Penso que estou num rito de passagem, tentando me libertar das formas atuais, importantes, mas... tem algo muito melhor para vir...
- Se essa for a sua verdade, você está num tempo de mudanças. Que os Apus o proteja. Você está num fluxo harmônico da natureza e fluir não é só ir em frente. É também expandir, interagir, associar, combinar novos arranjos.
Peguei minha mochila, coloquei nos ombros, segurei os papeizinhos que ele havia me dado e fiz um compromisso comigo mesmo de que tentaria ao máximo decifrar sozinho o segundo desenho.
Meus pensamentos foram quebrados com a voz do guia que vinha lá de trás.
-Foi importante você saber o que é limite. Não desafie as montanhas. Alie-se à elas que essa subida será uma deliciosa aventura. Elas são mães lhe protegendo, para que se rompa lá na frente.
Nuqa wawala picchu (Sou filho das montanhas). Esse foi meu derradeiro pensamento enquanto contornava as margens do riacho de Hatun Wayruro, subindo até Llulluchapampa.
Observando outros desenhos, fiquei pensando no meu guia me disse:
"Foi bom você saber o que é limite".
Esse desenho que agora estou vendo lembra uma pirâmide. É como se eu estivesse olhando uma pirâmide de cima, o mesmo desenho que há em muitos povos de todos os continentes.
Esse desenho, uma sugestão de formas sobrepondo-se ou irradiando a partir da menor, sugere expansão. Aquele que um dia produziu na orla de um pano, talvez quisesse dizer que o limite não limita, uma vez que pode sempre crescer a partir do que é.
Olhei para a cadeia de montanhas de Abra de Warmiwañusqa que contornava LLulluchapampa e percebi que ela tinha essa mesma formação, para as plantas, para mim...
- Compreendeu o desenho, meu irmão?
O silêncio foi rompido pelo guia.
- Acho que sim. Sugere expansão a partir de uma forma inicial.
- Toda vez que você reconhece um limite, terá melhores condições de transcendê-lo. Disse ele, sem responder que sim nem que não.
- Em Qorywayrachina no início da trilha, fôra preciso uma gaiola para atravessarmos o rio, lembra?
- Sim!
- E por que?
- Por em algum momento, alguém reconheceu o limite que o rio representava, respondi.
- E lançaram cordas para além daquele limite. Lá onde ele não corre... Não muito longe de seus domínios, mas o suficiente para transpor sua forma. Formas maiores existem porque reconhece-se formas menores.
Saindo de Qorywayrachina você passou por Llaqtapata e margeando o rio Urubamba chegou até ao rio Kusichaka, não foi isso?
- Sim
- O que pôde perceber naquela região em termos de construção Inca? - Ele perguntou.
- Bom, o que mais me chamou a atenção foram os terraços de agricultura, os mais amplos até agora.
- Conseguistes ver até onde eles alcançam em altura?
- Penso que eram muito altos...
- Alcançam até trezentos metros, no Cerro de Pulpituyuj. Nas cidades contemporâneas seria o equivalente a um prédio de oitenta e seis andares. Para além do vale de Aqobamba irá encontrar outros de mais de oitocentos metros, superior ao mais alto edifício da atualidade. Mas não é a grandeza que vos quero falar e sim da forma como foram construídos. Lhe pergunto: como foi construido o Empire States?
- Através de sólidos alicerces e com uma boa estrutura - respondi.
- Muito bom - disse ele - e se precisasse construir mais andares, dos já construídos?
- Com o mesmo alicerce e a mesma estrutura? - perguntei.
- Sim.
- Isso é impossível. Ele cairia.
- Aqui não!
- Como?
- Não se trata de engenharia, mas de lei natural do Universo.
- Poderia explicar melhor?
- Quando se constrói um terraço, aproveita-se ao máximo o que ele pode oferecer em termos de forma. Tanto que não é retirado nenhum bloco de pedra do local. Ao contrário. Desloca-se de outros sítios, vários blocos. O máximo que se faz é lapidar o que já existe. Ao construir o próximo, aproveita-se o mínimo possível do anterior e o máximo que o espaço, que o irá abrigar, pode fornecer. Assim, nunca pesam o anterior e nunca desgasta a natureza. Se remotamente houver um erosão, cairão somente aqueles imediatamente perto do incidente.
- E no caso de um terremoto?
- Ficarão cada vez mais unidos.
- Como assim?
- Cada bloco é finamente lapidado de modo que ao sofrerem um abalo, se projetem para dentro da construção, onde as paredes entre si se apoiarão e nunca para fora. Consegue tirar, meu amigo, alguma lição disso?
- Reconhecendo um limite eu consigo ir além dele.
- Agora olhe para esse pampa. Contemple o quanto é importante você estar aqui, nesse belo vale. Essa plantinha aqui - disse pegando um vegetal, sem arrancá-lo do chão - Se chama Llullucha´s. Nós o usamos para um molho, o tarwiuchu (molho picante). Ele tempera o nosso alimento. É muito rico. Em todo lugar você encontrará coisas como ele, nesse vale.
Deu uma pausa, olhou para o horizonbte e continou:
- Está vendo aquele arbusto lá - disse apontando uma árvore de médio porte - é um Yunka Chimpa. Ela nos dá abrigo do sol e do frio. Muitos a destrói porque não dão alimentos, mas o que é alimento? É só aquilo que a boca ingere?
Fiquei calado e ele também.
Após um longo silêncio ele falou:
- Agora pegue sua mochila e vá em frente até Warmiwañusqa. Te encontro lá. Que o Apu de Patawasi lhe guie.
Subindo pelo caminho fiquei imaginando quanta riqueza não abriga essas montanhas e debaixo dos olhos tristes dos campesinos, massacrados pelos séculos de dominação.
É impossível caminhar por ali e não sentir uma melancolia, um vazio, que muitas das vezes se traduz em teimosas gotas de lágrimas.
Por bem menos, enchem-se os eruditos de diplomas se autorgando "doutores em" ao passo que o a ciência do universo requer algo menor que um espaço vazio para existir.
Lágrimas caem por que já não cabem no espaço que ora estará sendo ocupado pela quietude.
Naqueles campos que pisava, notava-se que a luta não era tanto com as condições geográficas, mas com nosoutros mesmos. Era preciso aquietar o viajante interno e ter paz. O difícil era acreditar na paz no instante em que somos impelidos a vencer o íntimo, o tempo e a trilha. A doce inquietude ronda nossos velhos hábitos, propondo mudanças, forçando-nos a descobrir novas perspectivas. Será que isso estava acontecendo só comigo?
Olhando para trás via inúmeros outros caminheiros naquele território, avançando encosta acima, serpenteando pelo vale, marcando a trilha com uma ondulação cinematográfica.
Olhando para frente vi um dos portadores ajeitando a pesada carga nos ombros, firmemente centrado em sua tarefa, cantando uma velha canção quechuá:
Yachakuk pacha, kanan
Chay kani, yaykuspa
Ynyaku tuti aku
Chay runa, chay runa.
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Aprendiz do tempo
Esse eu sou.
Entrando na água de todos, vamos.
Esse é o caminho, esse é o caminho...
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Naquele instante é que percebi, que deixando realmente tudo para trás, transportando somente a carga ainda impossível de desapegar-se na mochila, eu conseguiria transcender.
- Aqui você encontra o equilíbrio - disse o guia sem incomodar meus devaneios - a janela da compreensão se abre e areja a alma.
- Estou muito grato por esta aqui - disse com a sensibilidade à flor da pele - e por você estar sendo o guia desta caravana.
- O mesmo digo de você, afinal não é todo mundo que nos ouve por essas paragens. Cada um aqui procura seu próprio umbigo para se descobrir.
- E isso é bom ou ruim?
Ele não falou nada, dando a entender que a classificação era irrelevante. A seguir mudou de assunto perguntando:
- Teve tempo de analisar aquele desenho circular?
- Creio que consegui entendê-lo. Lógico que pela minha percepção.
- Mas sera sempre pela sua percepção.
- Quer dizer...
- Não precisa explicar - cortou o assunto mansamente, como um mestre (e ele era um mestre!) - Vamos ver?
- Olhe aqui, mostrei apontando um desenho.
...e continuamos a nos entender...
...e esse é o caminho...
* Depósito de ouro. Povoado dentro do vale sagrado dos Incas
** Canal de água que se bifurca, perto de Ollayntatambo, no vale sagrado dos Incas