Eu descia a escada olhando os degraus que giravam numa espécie de redemoinho; passos ao longe se ouviam, estalidos de uma porta que se abria, pés rápidos como os de uma corça, quem vem lá? Não se pode saber com antecipação os caminhos do coração, não se pode reter o traçado de um rio que ruma célere ao mar que o recebe. Mas os pés, os passos, a leveza... Tudo me lembra o que eu vi e senti num momento mágico, quando cruzei com a própria beleza, a síntese do que se espera uma vida inteira e que pode passar ao seu lado num segundo e no instante seguinte, se evaporar como a névoa nos picos das montanhas no inverno.
Ela deve lembrar disto, mas eu sei que me lembro tanto quanto ela, de um dia tê-la visto contra o sol, a rua em movimento e sua silhueta recortada em comprida sombra que crescida em luz, ressaltava o que eu pude perceber( porque o resto ela guarda para si). Também deve lembrar-se das vezes em que eu a olhei e embevecido, suspirei pensando no que poderia ter sido, no que seria, mas não foi. O amor, nestas horas, se torna a pura lembrança de si mesmo, um simulacro e eu faço então ressurgir o seu perfume, a sua presença suave, o seu sorriso quase triste, as suas mãos sempre serenas.
A distância que nos separa hoje é a antítese do que foi nossa esperança, estamos distantes não porque queremos, mas porque escolhemos assim. É pelo menos o que penso, nos amores e desamores que tive por ela, e faço de meus dias recordações agradecidas de pelo menos sentir sua proximidade. Um consolo para quem já teve tão perto o brilho de uma estrela e que agora se contenta em ouvir seus passos numa escada distante, como os de um gracioso animalzinho, ela deve lembrar. Não se pode cobrar do coração mais do que ele pode suportar, nem se pode querer que ele ouse abusar dos sentimentos do outro, isto eu jamais cometeria, ah jamais. Preferiria cair no olho da vertigem, talvez mergulhar no sono que pressagia o sonho eterno do que magoar a pequena que de tanto amor que trouxe, só me trouxe desafios.
Ela lembrará que num dia distante, estivemos a ponto de... Bem, estivemos numa espécie de encruzilhada e eu com minha espada, entreguei em suas mãos o meu destino e ela me crismou cavaleiro e aí saí correndo de volta à távola redonda, onde fui me misturar aos meus e ela foi recebida como rainha. Amores, pecados, sinos, outubros, chuvas e abrigos, é disto que se faz a vida de um cavaleiro imaginário qual eu fui, quando a vi de cabelos presos numa festa e pensei que era uma princesa. Ah, descaminhos do coração, surpresas, o olhar que se precipita num sorriso, as mãos que suam contritas em qualquer encontro, o coração na boca e o fogo nas faces.
Amor, desamor, destinos paralelos. Hoje eu a vejo caminhar, em seu passo tranqüilo que já foi de dançarina, eu a vejo cismada com algo, não sei o quê, olhos distantes, talvez pensando no outro que a corteja, demasiado ocupada para se ocupar de seus sentimentos mais profundos. Hoje, podemos brincar sem o peso nas palavras, ela me dirige olhares fugidios e luminosos. Hoje estamos em paz com a lembrança do que já foi sem ter sido. Não ouso perguntar o que pensa( isso lá ela guarda só para ela), mas posso dizer que me inspira olhar de soslaio e perceber que nada muda, que a luz permanece, que seu perfil é o mesmo, que sua alma rebrilha e reverbera na minha.
Sigo em paz com seus passos leves se afastando nas escadas de mil portas.