Vivia a dolce vitta. Ainda engatinhava, sorria e imaginava em seu pequeno mundo um encanto como o de um gato multicolorido, a caixa de Pandora nas mãos e a luz seca de agosto no pequeno rosto de infante. Chiava nas noites chuvosas de medo. Foi quando deu o primeiro beijo, ainda na escola primária, na doce Lúcia, cabelos sedosos, sorriso encantador e dentes perfeitos. Não foi propriamente um beijo, mas sua perfeita imitação, talvez em seu rosto, talvez em suas mãos. Caiu de maduro e, galo na testa, perdeu de vista sua paixão e deixou-se levar pelo rio da vida, ainda pequeno; ainda não.
Gostava de seu quarto nos dias de estudo, o silêncio entre papéis e cadernos. Cresceu e a solidão o dominou soberana; não sabia o que era, as pernas estranhas, peito de sapateiro, mirrado e tímido. Mirava as meninas, elas não o viam. Numa viagem, aconteceu de conhecer uma linda companheira. Mais velha de três irmãs, numa estação de águas que não era Marienbad ele talvez tenha vivido seu primeiro sublime amor, Miriam. Não que a quisesse, mas só de mirar seus olhos, talvez já soubesse a que veio. Deslizou por uma montanha russa, sentiu nas mãos o calor do carinho, teve medo, teve sorte. Não a beijou, ainda não estava pronto, mas imaginou a trama toda do filme e foi só.
Os anos seguintes castigaram sua pele, cheia de pequenos vulcões e seu coração confuso, prenhe de conflitos em campos escuros, não sabia onde pousar o seu porto seguro. Para se defender, atacava. Não estava sob domínio do mal, nem sob o desejo insolente da adolescência. Errava sem destino pelas ruas entre sua casa e a vadiagem. Lembra-se de passar sob a janela da loirinha do clube que nem o notava. Tudo era secreto, os prazeres ocultos, somente seu quarto definia os limites de seu mundo. Num dia profano, viu seu pai sair de casa, noutro o viu bêbado. Flertou com a morte, não se conformou com a mecânica laranja nem quis o beijo frio e rolou feito um seixo na beira da corredeira, vazio...
Aportou mais forte à frente. Foi numa praia cheia de sol que conheceu mais uma aventura, mais um ramo de sua árvore da vida. Curvilínea, Márcia era toda encanto, tolas palavras, toda sorriso, meras formas vazias. No entanto, ela foi seu beijo mais profundo e toda a fome do mundo se resumiu nas tardes de sol que passava com ela, à beira do mar de uma praia sem gritos nem sussurros, o ar zumbindo de cigarras em meio a livros escolhidos a dedo, Cortazar, Marques, Oviedo, Rulfo e Rosa. Desistiu dela na estrada, era quase médico e ela queria o suicídio em troca da perda. Ela perdeu e ele conheceu Ivete, suave portuguesa de sorriso maroto e olhar provocante, olhos de jambo, cabelos castanhos, sílfide, sereia. Apaixonou-se perdidamente; sua irmã lhe contou que ela era de outro. Deixou-se levar de novo, entre livros, esqueletos, provas espúrias e loucos desejos. Não beijou Ivete, desprezou-a inaudito.
Maldito amor, confessou-se.
Aí entre os livros, em meio ao caos da vida enrodilhou-se nas letras, enamorando-se de Borges, encantando-se com Casares, assistiu sozinho as últimas sessões de cinema, escreveu as poesias mais loucas e em suas veias sentiu a tóxica presença do germe da loucura; como nas paródias argentinas, viu-se nos espelhos sublimes e nas escadas enxergou sua própria sombra, viu relógios ao contrário e conheceu uma linda chinesa. Foi seu quinto beijo, numa noite em que ela lhe confessou que estava apaixonada e mandou às favas o mundo de sua pátria mãe. Com ela, aprendeu os segredos do amor (foi recíproco) e os meandros de sua verdadeira paixão, a de cuidar dos outros e de si mesmo.
Em pouco tempo, o que era aprendizado amornou num fogo brando, o que era terno virou rotina e ele conheceu um vulcão. Numa cena de cinema, Carmen o devorou com o olhar e ele não pode evitar.Foi ao Cine Paradiso, convidou-a para jantar, foi seu sexto beijo, sua libertação do jugo alheio, uma explosão de amor em fúria, ele um touro indomável, ela deitada no veludo azul.Foi a revelação na exata medida e por pouco não deita sementes na terra, ainda não!
Foi então que conheceu o enigma, que conheceu a esfinge que dominou a fera de seu interior riquíssimo. Numa tarde, lembra de suas botas marrons, com fios de couro, a calça jeans justa e os cabelos de ouro puro. Amor iniciado por um amigo, um Eros pós-moderno o encantou e ele percebeu que a vida, nada mais, o conduzia como um motorista fiel; foi seu sétimo beijo, foi o mais sagrado de todos, pois que aí os ramos que esperavam num plano de fundo se solidificaram e ele se viu companheiro de duas pequenas meninas. Encantou-se, trabalhou duro, só para mais adiante, sentindo-se maduro, aprontar mais uma, onde não teve beijo, não teve sonho, não teve medo, nem teve dó; pensou no que fizera, recuou a tempo, pensou na outra esfera, rogou ao pai. Ah, sexo, mentiras, mitos e manias. O Sacro Ofício!
Agora, sorvendo um chá de sua própria vinha, num ponto qualquer do tempo suspenso, entre as letras de seu tema abandonado, ele se vê numa sessão às escuras, vendo sua vida passada a limpo, num instante de sonho lúcido e sereno. Já cumpriu parte do que prometeu, quando, na seca luz de agosto, de posse da Caixa de Pandora, abriu o seu segredo ao mundo e de olhar franco, encarou o seu destino num instante. Não chiava mais, nem nas noites de medo e de chuva.