O sangue lhe escorria pelo rosto em uma cascata furiosa. A mão amiga o amparava, mas tinha a face de um vampiro inocente, atordoado pelo gosto de seu próprio sumo a pintá-lo de vermelho intenso. Junto, as lágrimas abundantes também corriam, o que tornava a mistura mais densa e dolorosa.
Na parede a marca daquele encontro sinistro. Ela, impávida, apenas manchara-se; mas fora o suficiente para marcar nele um símbolo eterno. Para ele, parecia que o muro tinha toda a força do mundo quando lá se chocou. Descuido, descuido... Um tropeção, uma pancada, um nariz quebrado e a alma atingida. Um solitário e imaginário jogo de futebol. No meio do caminho, uma perna adversária em forma de fecho de garagem. As garagens ainda ficavam abertas naquele tempo. Correu em desespero a casa, gritando pela mãe. Gritos vermelhos logo acudidos, tratados, consolados... Todos brancos. Cor de mãe.
A memória sempre o levava a esse dia a cada confronto com seu próprio sangue. Cortara-se com uma faca de cozinha quando tentava abrir uma dessas latas modernas, que são impossíveis de se abrir sem a ajuda de um utensílio qualquer. Pareceu-lhe que algo pontiagudo teria mais serventia. A lata não abriu. Mas a faca cumpriu seu destino e lhe deu um vale imenso na palma da mão esquerda. Não houve gritos; não houve o branco de antigamente. E isso fez o sangue liberto escorrer mais vermelho ainda. Inconscientemente, levou a mão ao rosto. Uma dor mais intensa lhe percorreu as entranhas. Vinda do passado, ultrapassou memórias recentes, afastou momentos felizes, não ligou para a consciência obstrutiva e chegou do fundo como um vulcão enfurecido, jorrando lava... Vermelha lava. Cambaleou novamente como antigamente. A parede reapareceu e o cercou por todos os lados. Um grito lhe saiu ganido. Não disse mãe. Disse amor. Mas não havia mais. Nada branco. Tudo vermelho. Não havia ninguém. Mesmo nos raros momentos de interesse, não havia ninguém. Todos os interesses lhe eram vulgares. Interesses são facas. São vermelhos, ele pensava. E prevenira-se desses encontros ruins pela via da raiva. Não das lembranças, mas dele mesmo. Sempre pensava em vermelho. Odiava o vermelho. Essa cor significava dor por todos os seus matizes: fosse no sangue, na metáfora do coração apaixonado, no rubor da vergonha, na insinuante atração. Somava-lhe as nuances e obtinha o vermelho mais puro: o vermelho da raiva.
O sangue em sua mão pingava agora no tapete. De certa forma, não se importava em vê-lo sair ou senti-lo como um conta-gotas. Ele queria era o branco. E quase não o encontrava. Saía pouco; e, quando saía, só via vermelho por todos os lados. As pessoas? Eram muros. As confissões de amigos e conhecidos? Eram o adversário imaginário daquele dia, com suas pernas em forma de fecho de garagem prontas para lhe derrubar. A memória voltava lentamente para seu lugar. Esbarrou em diversas paredes pelo caminho de volta. Quantos muros! Quantas dores teve de sentir para ver-se espremido entre eles agora? Olhou para a mão rubra. Como um pincel, tratou de pintar-se espalhando carinhosamente sua tinta em sua tela enrugada. Nada de artístico. Apenas pintar-se, vestir-se de obra abstrata. Do vermelho chegaria ao branco, pensou. É o caminho.
Como um diabo moderno, saiu à rua. Pessoas riam; ele só via fechos de garagem. Um grande muro começou a se fechar em sua volta. Tijolos humanos a lhe espremerem. Como antes, quis torná-los reais e os manchava com sua mão de pintor. Conseguia em alguns. Tudo lhe pareceu familiar.
A luz verde do sinal de pedestres o horrorizava. A parede dispersou por um momento em um dinâmico e descontrolado mexer. Cambaleou novamente. E orou pelo vermelho. O vermelho necessário para o branco. E ele veio como num milagre piscante. Foi em sua direção afoito e feliz. Então tudo se normalizou: o tropeção, o descuido, e uma parede deslizante lhe encontraram como antes. Desta vez caiu bem mais forte. Não importava. O branco viria. O único branco de sua vida, onde todos os outros fracassaram. Deitado, mais vermelho do que nunca, viu aproximar-se um imenso e brilhante vermelho. Sorriu-lhe ao ver que de dentro daquela parede que o atingira saíam o branco que tanto procurava. Dentre eles, mais atrás, sorrindo-lhe dentes de pérola, o rosto de antigamente.