Por qual razão a lembrança de minha avó assoma à superfície, agora, nesta altura da vida? Não sei porque, as lembranças são por sí só comandadas e se muito evocadas passam a ter vida própria. Conheço a história de uma moça que perdeu o marido e vivia só em seu apartamento.
"...Ele morreu e me deixou sozinha assim no mundo. Eu de início me acabei em tristeza, não havia um só lugar em que eu pusesse os olhos e não o achasse. Era tudo muito triste. Meus pais vieram de Goiânia e queriam que eu fosse para lá, pediam na verdade porque eu estava muito magra, muito abatida. Eu, decidida, não fui. Estava eu um dia, numa tarde chuvosa, folheando minhas anotações para minha tese--decidi também voltar a estudar--quando deparei com aquele caderno..."
Ela a princípio escrevia frases desconexas no caderno, fatos sem encadeamento lógico porém que lhe reavivavam lembranças do marido finado. Ela começou assim (no princípio, a palavra...) e um dia comprou rosas e encheu o quarto do caderno de pétalas que espalharam seu perfume no ar da tarde quieta da casa sem ele. Ele a tinha abandonado assim, sem mais nem menos, fulminado, sem lhe dirigir uma palavra! Ao simples fato de se insinuar raiva nela dele, ela se desculpava.
"...as frases se prolongavam, em frouxos laços no começo, depois encadeadas entre si formando longas divagações e devaneios. Notei um certo padrão de pensamentos,uma certa finura no falar e dizer das coisas...Em certo momento, eu escrevia frases lindas que nos diziam respeito. As lufadas de vento agitavam as pétalas secas que farfalhavam dentro da sala sobre o tapete exausto de tanto receber minha visita...nossa visita. Eu escrevia sempre de tarde, às quatro e meia, horário preferido dele..."
O que tem minha avó a ver com isto? As rosas, seu jardim perfeito e que me escondia das visitas e dela mesma. O roseiral que abrigava insetos, sumia com os vasos de pequenas plantas e enchia de luz multicolorida as janelas da frente da casa. Da sala mesmo se viam as rosas e seus caules e espinhos. Toda roseira os tem não é?
"...Um dia e não me lembro se foi de noite, ou se modorrei à tarde, já com a dor amainada e de ânimos mais tranquilos; lembro-me de ter aberto o caderno e estava lá uma frase em que não reconhecia minha letra. Pensei comigo, que brincadeira mais de mau gosto, a empregada abusou desta vez...Ela não falou de nada. Pelo contrário, indignada, falou que era melhor eu parar com tal brincadeira..."
Minha avó escondia os ovos de páscoa na lanugem do gramado. Também passeava comigo no parque da Aclimação; me deixava dormir em seu quarto... Eu ouvia sua prece entre seus lábios e observava-a dormir entre preces e panos...E foi numa prece destas que eu a encontrei em sonhos.
"...e foi numa tarde destas que eu o ví sorrindo, as pétalas de rosas brancas, vermelhas, lilás, amarelas, azuis revoltas na sala como um bando de abelhas furiosas; eu o vi sorrindo e escrevendo, como se fosse assim normal, num estado em que eu, de minha parte queria beijá-lo e ele de outra vista não conseguia ultrapassar os limites do tapete que delimitava a mesinha de cristal, de modo que ficou suspenso no ar um prenúncio de um beijo que só findou quando acordei sobressaltada, sentada no sofá, em frente à televisão..."
Eu não me impressionei quando uma pétala de rosa surgiu marcando a página de um livro que ala adorava e que havia me dado há muitos anos.