Minha tia nascera num dia chuvoso; primeiro veio ela e como se não bastasse, veio minha outra tia. Essa segunda pessoinha nascera barriguda, já com sérios problemas de saúde. Parecia um anjo e se foi como se fora um, antes dos dois anos, em outra noite sem luz alguma, no silêncio do quarto das duas, no berço que encostado ao outro as fazia mais que simples gêmeas. O balbucio da que ficara neste nosso mundo era um ruído suave, dramático e foi o que chamou a atenção da pobre mãe, a presença de só uma voz na noite insone que as mães têm, acordadas ao menor sobressalto.
Deu aquele lampejo que toda mãe tem de procurar no desvelo algo que ainda não fez e de coração partido, refém de sua condição de vaso milagroso, acabou-se de tanto chorar pelo pequeno corpo já descolorido que ficara enquanto a outra balbuciava o que seria o nome de sua irmã querida. Foi-se, uma bruma de tristeza envolveu os ares da casa humilde, no bairro modesto, na colina ventosa de um tempo distante. Isso foi há muito tempo. Nesse tempo minha mãe já crescia viçosa e sabedora de suas pequenas irmãs que tanto haviam dado trabalho, ajudando minha avó no que podia, mesmo sendo criança, antevendo que sua história estaria imbricada com as delas, indelevel e inevitávelmente.
Enquanto minha mãe subia nas árvores, chupava jabuticabas, pulava alambrados para roubar mangas e perseguia os gatos que tentavam matar a criação de minha avó, a minha tia vivia em estupor eventual; às vezes ria num som que imitava um balido, vez ou outra corria feito um pássaro sem rumo. Todos entendiam, ela não era uma criança como as outras. Minha mãe estudava e minha tia mal compreendia o que se lhe falava.
A casa em que meus avós viviam era escura, tinha telhado baixo, paredes caiadas e tristes, janelas estreitas. Lembro-me que me contaram que fora meu avô que a construíra, pedra por pedra, dentro de suas posses, naquele terreno que lhes dera o que comer e guarida nos dias difíceis desde a chegada na cidade grande que costuma cuspir aqueles que ousam desafiá-la. Tinha um oratório que até hoje está por lá, meio em ruínas. Como é triste a decadência, como ela se insinua nas pedras junto com o musgo que medra na umidade... Toda uma história se perde e já se vão anos desde que, naquele mesmo quintal, em frente à mesma mangueira que sombreava a varanda da casa de meus avós que meu pai, ainda um bom homem, pedira a mão de minha futura mãe ao meu avô. Ele o olhara severamente, talvez duvidando de sua própria força; um ritual se estabeleceu, ambos ainda fortes, um já no declive dos anos, outro pujante em força e destemido. Pois foi assim que minha mãe foi desposada, não sem antes ver nascer com orgulho a casa que nos abrigaria até hoje, pelas próprias mãos dele! Isto a encheu de orgulho e vontade e amor.
Em breve era eu que berrava no mundo, sempre sem dormir direito (sou assim até hoje, meio corujinha). Meus cabelos castanhos contrastavam com minha pele muito clara e meus olhos sorriem nas fotos que eu tenho e que meu pai colecionou com tanto carinho. No entanto, como sob o céu há o tempo da espera e há o tempo da tormenta, assim se foi o tempo de meus avós que cuidaram com muito esmero de sua filha. Ela vivia na casa antiga, que era seu refúgio. Guardada do mundo, escondida de si mesma, talvez nem ela mesma se lembrasse de que um dia houvera ali dois seres que a alimentavam, duas almas que a fizeram chegar à vida adulta apesar dos pesares... E ela só tinha olhos para as pedras que criavam musgo, os pedregulhos que colecionava nos lençóis da casa... Ela tinha pavor das tempestades que quando se abatiam por lá, faziam sumir a luz por momentos longos e aterrorizantes. Aí procurava seus pais e já não os achava e era minha mãe que cuidava dela nesses momentos, colocando sua cabeça entre seus seios e balançando até que ela pegasse no sono... Eu me lembro disto como se fosse hoje, vendo as árvores fustigadas pela chuva, o cheiro de ranço da velha casa e das roupas de minha tia especial.
--Mamãe, minha tia trabalha?
--Não, minha filha. Ela é como se fosse uma criança.
--Mas eu sou criança, não é?
--Ela nunca deixou de ser...
--E eu, deixarei de ser?
--Sim, corujinha. Hora de dormir. Tem um príncipe te esperando nos sonhos.
Lá ia eu. Engraçado que meu pai sempre foi meio arredio comigo. Não me dizia nada, só um boa noite bem seco, fechado em seu jornal ou ouvindo as notícias no rádio da sala. Ainda não tínhamos televisão. E eu subia ao quarto, em companhia de uma bonequinha que muito depois eu soube, havia sido de minha outra tia que se fora. Aí eu ficava imaginando o príncipe, aquele que chegaria, ouvindo sua voz que pediria minha mão e acariciaria meus cabelos cacheados que a esta altura já se aloiravam, tomando os ares de meu futuro... Entre o sonho e a realidade, ouvia a voz de minha avó que me pedia, deixe a luz do quarto dela acesa, a escuridão não lhe faz bem, é da luz que ela gosta! Aí eu dormia, flutuava entre minhas nuvens, envolta em meus cobertores, satisfeita de jabuticaba e manga, as pernas lanhadas de quedas e corridas... Acordava suada, alarmada com os gritos de meu pai, que às turras com minha mãe, a ameaçava quando se alterava. Eu tinha medo do que poderia haver, tinha receio do que pudesse acontecer e já não mais dormia nem mais sonhava com meu príncipe e sim cuidava de vigiar (como se pudesse) os soluços de minha mãe depois que batia a porta da sala de baixo e ouvia o guinchar de pneus na rua de calçamento em frente de casa.
“Não deixe que a luz se apague, não deixe que se perca na escuridão a alma; que o Rio dos Mortos não a leve ao sono que redime todos os males, ainda não é chegado seu tempo...” e lá acordava de novo, empapada de suor.
--Onde está papai?
--Ele precisou sair. Já volta.
--Por quê você chora?
--Por sua tia, que mora sozinha lá...
E ela apontava a luz baça que servia de consolo àquela pequena mulher que a esta altura haveria de estar acordada, com o rumor dos ventos a agitar os galhos das velhas árvores a lhe lembrar que haveria de faltar a luz. Minha mãe então se metia num roupão escuro e ia ao encontro de sua velha casa, cheia de odores de outro mundo. Fui eu que achei minha tia caída de borco no sofá, olhar esgazeado. Minha mãe gritou, acorreram os vizinhos, ela foi levada ao hospital.
“O Sono final, que a todos premia com seus excessos; O Repouso que é ao mesmo tempo impermanência e corrupção; a Espera que nos traz o repouso da relva, o coaxar dos sapos no lago próximo, não a deixe sem luz, não a destine ao supremo esquecimento...”
Hoje eu me fito ao espelho de minha nova casa. Olho meus olhos escuros e se desenha um sorriso quando lembro que quando ela se foi, acendiam-se as luzes da velha casa, sem que houvesse alguém por lá. A janela permanecia iluminada, como que a lembrar que sua dadivosa alma, em seu pequeno corpo, agora já não cabia de contentamento ao voltar ao seu verdadeiro cosmo, à sua verdadeira casa, cheia de uma luz que era a dela, a de sua irmã e a de meus avós. Precisamos chamar um pastor para que ele visse, com seus velhos olhos experimentados, que o que havia lá era bem mais que uma simples criança.