Penumbra de amanhecer dentro do quarto. A casa velha, de madeira, tem frestas por onde entra a clara luz da manhã, sorrateira, roubando de mim a escuridão e lançando por sobre os lençóis e o assoalho encerado com capricho, manchas douradas e brilhantes. Com os olhos fixos nestes frágeis raios de sol que vieram dar-me bom-dia, ouço o estardalhaço dos pardais que fazem ninho na beirada do telhado. Invasores bem vindos, estes pardais. Tão antigos seus ninhos como o são as paredes com suas frestas. Dá preguiça só pensar em sair da cama. O travesseiro de penas é amigo de infância, terno e companheiro. O cheiro de café recém coado desafia a preguiça, como que chamando para a mesa posta.
De onde este cheiro? Na casa, só eu e minha filha pequena que dorme no quarto ao lado. Mas o cheiro do café novo persiste, e me chama. A mãe viajou, o pai morto faz anos, habita só minhas lembranças. Fecho os olhos e o cheiro torna-se ainda mais forte, quase palatável. É como se esta manhã dos meus trinta e cinco anos fosse outra, uma qualquer de meus dez ou quinze, e ouço já a voz da mãe chamando para o café, o pai batendo palmas, alto e escancarando a porta do quarto, puxando nossas cobertas e abrindo a janela para o sol, chamando-nos com alegria ao dia e à vida. Que passa...
Pulo da cama, abro de um só golpe a janela e vejo as hortênsias em flor. Cheiro de café... Corro, quase, até à cozinha, ajeito uma mesa de toalha florida e xícaras brancas, pão aquecido no forno e café passado na hora. Manteiga e um sorriso de dentes recém-escovados, Bach com seus Concertos de Brandenburgo, e trato de dar à minha pequena um bom-dia de jamais esquecer, desses que meu pai e minha mãe me davam diariamente e eu nem percebia. Desses de se tornar lembrança palpável, com cheiro de café e gosto de felicidade. Assim, simples e cotidiana como um raio de sol pela fresta da janela.