Ele sempre fora curioso e sua avó, uma senhora de seus sessenta anos à época fazia todas as suas vontades. Bem, quase todas porque havia algumas que ele pedia e ela negava enfática. Como, por exemplo, pegar o Anel Mágico. Ela lhe dizia, sem um pingo de dó, que não. O Anel, dizia ela, é mágico e você só o receberá quando for maior. Ele, do alto de seus cinco anos não podia compreender por quê; ela, porém, tinha suas razões. Fazer gemada bem batida, isso lá ela fazia; batia a gemada tanto que ela ficava cremosa, branca, suave ao paladar. Ela, então, colocava duas gotas de Vinho do Porto, o que dava mais sabor à mistura.
O que ela não sabia era que ele conhecia cantos da casa inexplorados. Conhecia ele o Canto da Escada, que ficava na Entrada da Casa. O canto costumava ser habitado por uma plantinha esquálida, pálida de falta de luz. Puro engodo! Atrás dela, havia a Porta do Abismo. Lá, quando ela saía para comprar pão, ele ia se encontrar com estranhas criaturas fantásticas que começavam seus lentos movimentos assim que o pé dela deixava a sala pela porta da frente. Como se estivessem esperando, as folhas da pálida planta farfalhavam e um vento surgia do nada. Uma luz vinda do Canto da Escada enchia o ambiente de um fino brilho e dali, uma bela moça o olhava. Naquele dia, ele resolveu ousar mais; Ela sempre o encorajara a ser também valente. Achegou-se perto da planta e a bela moça lhe estendeu um livro.
Sua avó, carinhosa e firme ao mesmo tempo, lhe ensinara a nunca aceitar nada de estranhos. A moça, no entanto, já estivera ali tantas vezes que já não era tão estrangeira assim. Sendo assim, ele pegou o livro. A moça lhe deu um sorriso lindo em resposta e desceu as escadas do Canto da Escada sem olhar para trás. (talvez querendo dizer não venha atrás de mim, veja o livro, e ele sabia que era o que tinha de fazer). Os movimentos na casa de dois andares ele os conhecia todos. O vento nas velhas venezianas, o barulho dos sapatos nos tacos soltos do chão, eventualmente algum tropeção de seu primo...Arrastar de chinelos no andar de cima, sua prima que dormia até tarde. O cheiro do café de manhã, o avô que assoviava uma bela canção italiana ao barbear o rosto... O que os outros em seu cotidiano não sabiam eram dos outros ruídos, sutis barulhos que o despertavam, sempre vindos do Canto da Escada.
A sua carinhosa avó o encontrou, adormecido, encostado à plantinha esquálida, dormindo com um livro de capa vermelha nas mãos. Ela o pegou devagar, puxou-o de suas mãos e ele não acordou. Cuidadosa, ela o puxou para si, um menino tão pequeno e frágil, que teve facilidade de colocá-lo na cama, junto de seu livro. De onde havia surgido aquele volume? Ela não se lembrava de tê-lo dado para que ele o lesse ou sequer manuseasse. Ela lhe ensinara a respeitar os livros “porque eles geralmente têm, dentro de si, o registro da alma humana, o registro das emoções”;quem sabe quantos heróis haveria ali que foram verdadeiros e quantos não teriam sido apenas ficção pura e deslavada? Ele dormia tranquilo em sua cama. Acordou então com ruídos dentro do livro. Ruídos? Dentro do livro? Em sua lógica infantil, ele manuseou o sua capa vermelha. No início...
“...havia uma ponte e da ponte se viam as nuvens do Castelo do Fim da Aurora, onde habitavam os celestes senhores. Todos os dias eles se dirigiam à estrela mais próxima e num piscar de olhos, saberiam aonde se escondiam as fontes de toda a vida e de todos os amores do mundo...” Assim começava o texto. O menino, maravilhado, virou a página e nela, flutuava a imagem de um castelo, com nuvens que saíam de cachoeiras próximas. Ele viu que a imagem se movia e passou as pequenas mãos sobre ela, quando desceu a ponte levadiça e saiu um cavalo de longa crina branca montado por um dos celestes. Ele sabia que este era um deles pelo seu porte e pelo brilho de sua armadura e de seus olhos. Tocou em seus olhos que tinham o mesmo brilho que enchia a sala da casa de sua avó quando ele ficava a sós com seus botões e seres fantásticos.
“...Lá vai o Cavaleiro, à busca do Anel Misterioso, o Anel Mágico que traz todas as emoções do mundo numa só pedra, a Pedra de Todas as Outras. Se você olhar com atenção, verá que em cada faceta da jóia se esconde uma parcela da realidade...Olhando mais atento, verá que de cada uma delas sai a imagem de um castelo que tem mil fontes de água exuberantes, cada qual delas com uma ponte levadiça de onde saem outros senhores luminosos, cada qual com sua armadura diferente, cada um à busca de uma coisa diferente: Um busca a Verdade, outro a Justiça, o outro mais adiante o Amor, o mais velho deles a Sabedoria...” e o menino, então, viu-o na mão do cavaleiro e tocou-o. Ele saiu então das mãos do cavaleiro e ele o viu flutuar acima do livro, como se a página o projetasse para diante. Ele quase podia distinguir as ranhuras de brilho dourado e os reflexos da pedra de cor azulada que seria a cor de sua alma, de seu corpo etéreo. Ele o pegou na mão e com todo o cuidado do mundo, segurou-o dentro da concha, observando o brilho que dele emanava. Suas mãos se aqueceram, ele pode ver que elas se tornavam mais e mais brilhantes, enquanto um suave calor tomava conta de suas mãos e punhos, braços e cotovelos, até que a luz tomava todo o seu corpo e ele espantado via que era ele que corria nos campos sobre o cavalo buscando através do vento a melhor direção a seguir em busca dos tesouros mais secretos deste mundo...
Dia seguinte, sua avó veio despertar o menino que dormira toda a noite, sem despertar uma vez sequer. Surpreendeu-se porque, sobre o livro de capa vermelha, repousava um anel de grosso ouro, com uma pedra de fina lapidação, ao lado dele que repousava de sua longa viagem noite adentro...