"Fumaça no ar. A luz do abajur verde deixa um reflexo no teto, um fiapo de luz branca em meio a uma névoa cor de abacate. Ele fuma, o cigarro barato já deixa suas marcas em suas baforadas extensas, profundas, longas... Fumaça azul, na névoa verde, um fiapo de luz branca e seus dedos tamborilando na velha máquina de escrever que guardou de seu pai, uma relíquia, Lettera 22; barulhenta porém eficiente. O velho escrevia, e como: Extensos artigos, colunas para jornais, pequenas notas de falecimento, crônicas saborosas. Esse sim, sabia escrever e tudo o que ele queria era tentar expressar um pouco do que sentia para que não passasse em brancas nuvens no mundo. Uma tentativa de eternizar o inexprimível, como dizia sua namorada, ironicamente. O papel rolava da máquina, os parágrafos vinham prontos, dir-se-ia que escrevia de sobreaviso, como se o texto irrompesse em sua consciência. Seria isso psicografia? Ele não acreditava nesses fenômenos, ser mais racional que ele, impossível. Então, lá vinha o texto em grandes assomos, uma náusea de criar e ele, em grandes e abruptos saltos, fazia a textura aparecer, seja triste, seja leve, no mais das vezes espessa, consistente porém cheia de referências e alusões ocultas. Quem o lia achava o texto saboroso, algumas vezes rancoroso, outras vezes de sutil transparência. Batiam os dedos furiosos no teclado da velha máquina que já conhecera outros dedos, outros nós mais antigos e conhecera outros tempos, aonde lustravam as escrivaninhas agora empoeiradas e enfeitavam o escritório agora tornado num canto de inutilidades e de livros velhos. Lógico, raciocinava ele, quem vai querer manter um lugar como este, aonde as lembranças não mais assomam nem o sabor e o cheiro do café se insinua mais?"
--É um bom começo.
Para um livro, um romance, tenho de começar de alguma parte. Assim faço alusão ao talento inequívoco dele e pincelo no texto partes de minha vida, da vida dele, misturo e sai alguma coisa. Um bom começo. Mas o banho me espera, ela virá logo, após ultrapassar duzentos e trinta e seis quilômetros de vias engarrafadas e chegar ao duocentésimo andar de nosso prédio. Queria eu poder recebê-la de braços abertos, porém estou tão cansado,tão exausto...Sou insuportável mesmo, no fundo ela tem razão de me espinafrar como a um rato. Quem disse que não sou?
A garrafa respousa sobre o móvel. Ali se tomavam decisões. Repórteres eram enviados a missões impossíveis, fotos eram mostradas; cabeças rolavam ali, num cadafalso imaginário. Mulheres deitaram lágrimas por ele e olhe que não era nenhum Clark Gable ou coisa que o valha. Tinha era um enorme coração e muitas vezes confundem generosidade com fraqueza...Ledo engano! Ele bebe de um gole só. Desce rasgando o uísque, garrafa original, sem gelo nem soda. Como ele gosta, como seu pai gostava. Ninguém ali, só ele, uma ou outra traça e o barulho do relógio de parede que insistia em funcionar após mais de 40 anos de existência, só ali na parede.
"--Um bom repórter, meu caro, tem de ter isenção. Tem de procurar a notícia, não fabricá-la. Tem de documentar a verdade, tem de estar perto dos fatos, não criar condições de que os fatos surjam. Um bom repórter, meu caro, é o que você não é. Ou melhora isso, ou já viu.
--Sim senhor."
Bom começo!
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