A gerente se recuperava das contusões. Muitas e muitas vezes, eu retrocedera ao passado, e refletia: naquele dia, ela me viu no Banheiro Público, observou-me, falou comigo, mostrou-me as toalhas e sabonetes, frisando bem que não era permitido o seu uso. Havia ali a faca e o queijo, mas que me era proibido pegar. Estava posta a armadilha. Está ali, mas é proibido. E eu caí na arapuca. O desejo sexual hiperativo da gerente falou mais alto Interessou-se por mim de tal maneira que planejou o ardil para me fisgar. Lembro-me que, à época, ela me perguntara se eu gostava de mulheres, expôs minha foto na parede do seu escritório, usando como desculpa o não esquecimento de minha fisionomia, pois jamais havia imaginado que estava lidando com um delinquente. Incrível mesmo a sua imaginação.
Numa das visitas que lhe fiz em sua casa, pouco depois que deixara o hospital, tentei puxar conversa sobre a agressão violenta provocada por aquelas mulheres. A pergunta lhe causou tamanho impacto, que, enrubescida, começou a chorar terrivelmente agitada. Desculpei-me e me retirei, depois de um afago em seus cabelos. Naquele momento, ela não tinha condições de responder.
Vitória, a gerente era uma mulher ninfomaníaca. Talvez não saibas nada do que estou falando, mas vou tentar te explicar: a mulher normal mantém sua atividade sexual equilibrada, sem exageros. Já a ninfomaníaca é uma viciada em sexo, nenhum homem lhe satisfaz. Por isso, ela sente-se estimulada a variar de parceiros, o que dificulta um relacionamento duradouro com alguém. A gerente queria um homem que lhe satisfizesse sexualmente a seu bel-prazer. Tal conduta atrapalhou a vida de muita gente, inclusive a minha, gerou a revolta das mães e esposas dos funcionários do Banheiro Público. Mesmo assim, ela me suscitava um sentimento diferente que me impelia a lhe dar assistência, movido por aquele estranho sentimento. Nos encontros seguintes, ela me recebia um pouco taciturna, um pouco sem jeito, atitude talvez motivada pela conversa que tivemos antes sobre a agressão ocorrida. Mas, aos poucos foi se acostumando com minha presença e até esboçava um sorriso quando eu estava com ela falando sobre qualquer coisa. Outra vez, ela olhou-me com o olhar sem brilho e me falou; você já sabe meu nome, mas eu continuo sem saber o seu. A gente nunca chegou a se apresentar, não é mesmo? Respondi: pois é, nunca tivemos essa oportunidade, mas logo vai saber. Meu nome é Ranieri. Ela comentou: Ranieri, bonito nome. Eu estava louco para alongar a conversa, porém notei que se encontrava debilitada e que o seu estado de convalescença requeria mais repouso. Acomodei-a na cama, disse-lhe que precisava de repouso, e retirei-me cônscio de que ela tinha muita coisa para me dizer.
Vitória, viste aquele amigo meu que ontem esteve aqui? Ele achou estranho ao me ver conversando contigo,.chamou-me de idiota. Eu disse: você me chama de idiota só porque converso com uma boneca. Por que não posso conversar com ela? Vitória é muito importante para mim. Ele disse: Importante? Uma boneca? Respondi: sim, uma boneca. Ela preenche meus momentos de solidão, escuta-me com paciência tudo o que lhe falo. Então ele se calou, olhando de um lado para outro, sem saber bem o que dizer. Estás vendo o preconceito das pessoas? Acho até hilário. Com outros semelhantes posso conversar, com uma boneca... Mas não te preocupes. Jamais deixarei de te dar a devida atenção. As pessoas são muito complicadas. Sinto-me bem melhor quando estou contigo. Meu amigo me chamou de idiota. Neste caso, prefiro sê-lo, desde que te tenha para escutar o que falo. Mas isso é só um comentário irrelevante para o nosso caso.
Depois que deixei a casa da gerente, caminhei por entre os pedestres que desfilavam e invadiam as lojas em busca de alguma coisa para comprar. Caminhava e observava o movimento da rua quando, inesperadamente, vislumbrei uma silhueta bastante familiar a uns trinta metros de distância, em meio àquela multidão. Confesso que fiquei completamente atordoado; o que eu via era simplesmente a figura de Leonora vagueando pelo calçadão. Na ânsia de encontrá-la apressei os passos e esbarrei com uma velhinha que vinha em direção contrária, e a coitada quase chegou a cair; lá vou eu socorrê-la pedindo desculpas, e ela a xingar-me porque não olhei por onde andava, e reclamava e eu perdia tempo olhando para o lugar onde vira o vulto de Leonora. Impaciente, deixei a velhinha que não parava de reclamar, e já não vi mais nada de Leonora, perdi-a de vista. Daí em diante, não tive mais sossego. Saía sempre olhando para todo mundo que passava, não parava de observar as mulheres que via, na esperança de vê-la de novo. Certa vez, segui uma delas por mais de meia hora, e quando me aproximei, era outra pessoa.