Voto é a mercadoria que mais quebra no Brasil. Não sei quem engana mais: o político com suas promessas ou o eleitor. Se bem que o político brasileiro sai do meio do povo; não cai do Céu. Muitos eleitores vendem o voto mais de uma vez. Sempre para quem dá mais. E quem chega por último geralmente leva. É assim nosso País. Elege-se que tem mais dinheiro. Poucos são eleitos pelo trabalho desenvolvido e pela competência. É a mais pura ilusão se achar que fulano foi eleito por seu trabalho, por suas virtudes, por seus méritos, ou por projetos apresentados.
Mas antigamente era muito pior. As eleições não tinham tanto controle com se tem hoje, mesmo com suas falhas é um sistema mais desenvolvido do que os votos de cabresto do passado, quando os donos de currais eleitorais promoviam o transporte de eleitores; almoços nas casas dos candidatos, doações de dentaduras e coisa e tal. Isso já passou e melhorou um bocado.
Com relação à dentadura, contam que aqui no Ceará que certo político mandava fabricar no atacado e as guardava dentro de um caçuá. Quando chegava um eleitor pedindo dentadura, o candidato apontava o caçuá e mandava o infeliz escolher.
Mas voltando ao assunto, no sistema arcaico de anos passados, que perdurou até a década de 1980, geralmente o candidato, no dia da eleição, promovia em sua casa uma festança sem igual. Os comes e bebes ia o dia todo e varava à madrugada muitas vezes.
Foi nesse embalo que Zé Américo se viu eleito, em 1982, para assumir a vereança em Fortaleza. Conto. Naquele ano, a eleição ainda era no modelo antigo, embora os candidatos já pudessem aparecer no rádio e na televisão em horários determinados. Proibido, entretanto, qualquer tipo de debate. Embora a propaganda eleitoral seja somente uma forma de proibir o povo de assistir a seus programas favoritos, pois invariavelmente a televisão é desligada no horário da propaganda eleitoral gratuita, dado o número de besteiras ditas pelos candidatos, e mesmo que projetos sejam apresentados, já mais só postos em prática. Entretanto, algumas pessoas consideram um avanço democrático nosso sistema eleitoral. Não vou entrar nesse mérito, mesmo porque a compra de voto hoje é ainda maior, dentro do congresso, nas assembléias, nas câmaras municipais para se votar projetos de interesse de presidente, governadores, prefeitos.
Voltemos, entretanto, à eleição de Zé Américo. Naquele ano, os títulos eleitorais podiam ser emitidos até bem perto da eleição, ao contrário de hoje em dia, quando a data limite é seis meses antes do pleito, se não me engano. Para se conquistar eleitores, a ajuda na obtenção do título, em épocas passadas, era fundamental.
Um bom cabo eleitor, especialista no mister de obter títulos, era uma dádiva; não o passaporte para a eleição, mas um fator de grande impulsão. Desta forma, na casa de Zé Américo, lá por agosto de 1982, apareceu uma certa senhora de nome Dinorá, ou pelo menos assim se apresentara; pois sugira sabe-se lá de onde, na casa de Zé Américo, e em pouco tempo passou a ser o braço direito do candidato, em assunto eleitorais, ou melhor na obtenção de títulos eleitorais.
Dinorá assumiu praticamente o comando da campanha no tocante a emissão de títulos, pagamentos de luz para eleitores, compra de dentaduras, fornecimento de tijolo, barro, cal, cimento, essas coisas que serviam para compra de voto. Hoje, isso não acontece mais. Compra-se no atacado, obras prontas, estradas, cachoeiras, caça-níqueis, parlamentares, essas coisas de mensalão, que existiu somente na cabeça da oposição, conforme um certo ex-presidente, que tem nome de molusco.
Dinorá trabalhou incansavelmente com uma gigante durante mais de três meses, já que a eleição era no dia 15 de novembro, dia da Proclamação da República.
No dia do pleito, Zé Américo mandou matar dois bois para dar comida aos eleitores. Só de baião de dois foram para mais de mil quilos, sem contar a farofa. Refrigerante, cachaça. Cerveja somente para os eleitores mais gabaritados. Uísque não. Não tinha uísque, coisa muito cara e chique naquele tempo e o povo não adquirira ainda o hábito de consumi-lo. Hoje, qualquer pé rapado toma uísque, nem que seja um Drurys, um Nato Nobilis – o popular Natão. O dia foi uma festança só.
Pelas contas de Zé Américo, passaram por sua casa naquele dia de 3.000 a 4.000 pessoas. Contando que ele era candidato a vereador e o consciente eleitoral era de aproximadamente 800 votos. Embora o termo consciente eleitoral ainda não estivesse em moda, ele foi dormir eleito, pelos seus cálculos.
Exausto pelo dia de trabalho, por volta da 21 horas já havia se retirado para seus aposentos. A festa acabara perto das 19 horas. Todos tinham ido embora, inclusive seu braço direito: dona Dinorá.
Pela meia-noite o telefone da casa de Zé Américo toca. Sobressalta e sonolento ele correr para atender ao telefone, derrubando tudo em sua volta, devido ao susto. No outro lado da linha, aflita, dona Dinorá, que aos prantos pede ajuda para Zé Américo, já que o filho dela havia sido preso na Delegacia do Montese, ela queria que o Zé Américo fosse tentar soltá-lo.
Até por volta de 1994, no dia da eleição o eleitor podia ser preso, não importava o motivo, mesmo por uma simples embriaguez, já que o consumo de bebida alcoólica naquele tempo era proibido em dia de eleição. Diferentemente, do que acontece hoje, quando o eleitor não pode ser preso no dia da eleição, mesmo havendo, também a proibição de se consumir álcool, neste dia.
Como dona Dinorá fora fundamental na campanha dele, Zé Américo, de imediato, se prontificou a ajudá-la. Pegou seu Corcel II 1978, azul e branco, luxuosíssimo para os padrões da época, mesmo com quatro anos de uso, e dirigiu-se ao encontro da senhora. Foi apanhá-la em casa lá pelas bandas da Serrinha. Sacrifícios dos grandes para encontrar o endereço à noite, pois nem mesmo onde ela morava, ele sabia. Depois seguiram para a delegacia.
Lá encontrou o delegado de plantão e como candidato a vereador era figura considerada uma figura com poderes, não muito grande mas tinha poder. Sempre um candidato tem apoio de outro político maior; um vereador geralmente tem de um deputado estadual; este de um federal e de um senador; os dois do governador e do presidente, ligados a determinado grupo de poderosos.
No início da década de 1980, os coronéis ainda mandavam no Ceará e Zé América era ligado ao grupo de Virgílio Távora, figura proeminente na política cearense, que dá nome a uma das principais avenidas da capital cearense. Virgílio, inclusive desbancou o Estados Unidos, pois a dita avenida, antes da morte dele, levava o nome daquele país. Assim, dadas às suas ligações políticas e pelo porte do apadrinhamento, Zé Américo foi prontamente recebido pelo delegado, que posto a par do assunto, não opôs qualquer resistência na libertação o filho de dona Dinorá.
Alguns minutos foram suficientes para o rapaz ser posto em liberdade. Solto, dirigiram-se ao carro de Zé Américo, que os levaria para a casa de dona Dinorá.
Ao entrar no carro, entretanto, devido ao porre que tomara durante todo o dia, o filho de dona Dinorá ainda meio zonzo, foi dizendo:
- Está vendo, mamãe! Bem que eu queria votar no seu Zé Américo e a senhora não deixou.