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Contos-->Pergaminho -- 30/08/2012 - 14:40 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Começar a contar uma história é fácil; o problema é expor os fatos de uma forma verossímil, até porque os fatos podem ser modificados, a narrativa pode torná-los mais ou menos acreditáveis, se é que alguém pode acreditar em algo num tempo em que não se acredita em nada. Um certo filósofo alemão já dizia nos idos do século dezenove que Deus está morto. Se alguém diz isto de peito aberto numa época em que mal a humanidade sabia dos micróbios, o que pensar de hoje em dia? Se ele tivesse nascido hoje, provavelmente mandaria fuzilar o tal inóspito Deus e o reduziria a frangalhos, uma entidade esfacelada...Bem, tal não é o meu propósito; não desejo reduzir quem quer que seja a frangalhos, não desejo nada senão sobreviver. E pensar que há bem pouco tempo, eu ainda dormia com tranquilidade, tocava minha vida como os demais a tocam. Despertava para trabalhar, sabia de meus desajustes biológicos. Cuidava de meu corpo, lia meus livros e escrevia como se fosse escritor, uma pretensão que nunca abandonei, isto apesar do pouco tempo que tinha para trabalhar as minhas ideias...Posso começar a dizer porque eu digo isto a todos, agora, depois de tantos anos, desde que eu achei o Manuscrito. Sempre fui dado a pesquisar livros antigos. Alguns eu os tenho em casa, ou lá aonde agora deixei minhas coisas e que provavelmente um dia serão descobertas as causas desse meu desterro. Quem primeiro vai notar algo de estranho será meu Locatário, mestre em duvidar de tudo o que eu dissesse a meu favor para postergar o pagamento do mês, sempre regateando o preço para baixo. Não que o lugar não fosse aconchegante, pelo contrário! Haviam pelo menos duas vizinhas que vez em quando me visitavam com uma insaciável voracidade e ele, o Dono da Verdade não me perdoava pelas queixas dos vizinhos incomodados com o ranger de certas molas. Ele que trocasse as molas, oras! Bem, o Manuscrito...Dessa vez eu deveria ter ouvido o nosso simpático reclamão. Ele me advertira uma vez, com um ar circunspecto, sério, professoral (adorava dar lições de moral nas horas mais impróprias):

--Meu caro, há horas em que a procura pode se tornar a maior inimiga do homem...

Sábias palavras. Talvez eu devesse levá-lo mais a sério e agora vejo que ele antevia algo a meu respeito de que eu nem suspeitava, àquela altura. Mas como eu dizia, adorava procurar livros antigos e mais de um deles jaz em minha pequena biblioteca que vai comigo quando eu me mudo--e de uns tempos para cá o lugar em que eu residia à época dos acontecimentos que eu narro aqui seria meu lugar mais estável e simpático. Eu estava numa de minhas pesquisas de livros antigos, seguindo a indicação de um amigo que conhecera um misterioso cidadão que havia dito que ele conhecia um lugar excelente para os colecionadores de antiguidades literárias. Ouso dizer que o tal misterioso deve fazer parte de um bando diabólico que já tramava algo contra mim, porque logo que cheguei ao lugar, notei a atmosfera algo sinistra assim que entrei no estabelecimento, sendo recebido por um sininho estranho e um camarada que me fazia lembrar aqueles personagens de filmes antigos. Ele devia ter seus um metro e setenta, vestia uma roupa larga até porque tinha a compleição de quem lutava para se manter a um peso rebelde; sapatos puídos, calça com suspensórios e um óculos dourado que devia ser uma antiguidade também... Raros cabelos ainda prateavam sua testa. Ele lia algo quando eu apontei à porta.

--Posso ajudar? Temos livros antigos, raridades verdadeiras. Pode olhar à vontade: Todos os que aqui vêm, voltam muitas vezes.

Comecei a explorar os labirintos da loja; a entrada não dava a exata dimensão do que era a loja toda. Quando notei, eu estava perdido e não havia fio que me guiasse a não ser o sino que volta e meia tocava, cada vez mais longe enquanto que mais e mais livros maravilhosos me encantavam. Livros como a Divina Comédia, com ilustrações feitas a bico de pena. Uma cópia perfeita! Mas haviam livros realmente antigos, alguns com páginas amareladas pelo manuseio de muitas mãos, outros de capas duras e carcomidas nas beiradas. Um exemplar do Paraíso Perdido chamou minha atenção: A ilustração da contracapa ornava perfeitamente a obra de Milton.

--...Gosta de livros antigos?

O autor da pergunta pairava ao lado de uma das estantes onde haviam livros raros, não sei de onde aparecera. Carregava em seu rosto algo trágico, como se estivesse a ponto de chorar, ou muito emocionado. Eu lhe disse que sim, que adorava livros antigos. Eu geralmente comprava um a cada mês, e o fiz saber que era um amante de boa literatura. Também o fiz saber que queria ficar só mas ele não se fez de rogado. Nada tinha a ver com o dono da loja.Antes que eu pudesse fazer algo, ele já chegara perto e me indicava o tal Manuscrito. Ele me disse que o tal Manuscrito era muito antigo.

--Talvez, segundo apuram, ele venha do Antigo Egito, porém há os que defendam a hipótese de ter sido escrito muito antes; o documento teria sido escrito pelos atlantes, antes do continente ter sido submerso pela catástrofe que se repete...

--Como assim?

--São catástrofes cíclicas. Em verdade, talvez sejamos a quinta raça que vive sobre o planeta. Eles(os atlantes) chegaram ao apogeu uns 800.000 anos atrás. Sua evolução era tal que deixou marcas no planeta todo. As pirâmides, a Esfinge. Teotihuacán. Ilha de Páscoa. Desapareceram sem deixar vestígios... a não ser o Manuscrito, que seria uma releitura de um outro antigo, mais ainda, que teria sido escrito pelos antecessores deles.

Da mesma maneira que iluminou o assunto, o gajo sumiu. Ás vezes tenho a impressão que ele simplesmente se dissolveu no ar. Teria estado ali, ou teria sido um fruto de minha ansiedade para achar o tal Manuscrito? Há os que dizem ser a mente um labirinto e que ela nos aprisiona aonde quer chegar, se é que quer chegar a algum lugar. O Minotauro de nossa mente é a nossa própria percepção distorcida. A realidade é aquilo que se apresenta ou é um simulacro de algo maior? Seremos rascunhos de uma experiência cósmica? Enquanto procurava o tal documento, eu pensava num certo autor que conta que um sonho é um esquema proposto por alguém que sonha o sonho, fora dele. Isto é, o sonho é a realidade e a realidade é sonho. Eu estava quase chegando a esta conclusão quando deparei com o tal do manuscrito... Uma capa de um material que se diria resistente, talvez um tipo de couro. Eu não sabia precisar sua cor: Talvez vermelho escuro, talvez marrom com tons de vermelho. No prefácio, alguém advertia que 'nas entradas dos labirintos, costuma-se hesitar e é saudável, porque a contrapartida está no fundo da escuridão. Tomai, pois, o fio de Ariadne e temei o Desconhecido. Não há religião maior que a verdade!' A citação era de algum teosofista, dir-se-ia recente pois, mais do que a origem do documento em si. Além do que se via, existiam pequenas anotações à margem, escritas em língua cifrada. Á guisa de introdução, alguém avisa que o que se lerá a seguir dá o exemplo de como o Homem pode perecer quando imita os deuses: 'O que se lerá bem pode ser uma advertência do que pode acontecer ao Homem quando nega de si a natureza divina ou quando se alça a tais alturas que se lhe derretem as penas e despenca ele ao abismo que o cerca. Este Manuscrito foi traduzido de uma língua antiga por mais antigos egípcios, que o herdaram de uma tradição tão antiga que se diz das origens do mundo. Coube a nós trazê-lo à superfície.' Um estranho sinete abria o documento que era pois a tradução vertida para o inglês de um documento trazido aos antigos egípcios de algo escrito em uma língua mais antiga ainda. Meio incrédulo, iniciei a leitura de tal documento, incerto ainda do que iria encontrar nele.

Iniciava-se uma espécie de narrativa:

'São os anos da colheita. Eu, que aqui escrevo, registro que no céu as estrelas já mudaram de lugar quatro vezes antes de eu mesmo viver e antes de meu povo existir. Nos anos da colheita, o vento é quente, vem do grande Oceano uma brisa que acalenta nossas costas e as florestas que beiram os morros são batidas pela brisa que encontra nossas casas de portas abertas. As altas montanhas se tingem de branco nos cimos e as nuvens as cobrem de manchas brancas. De lá do alto, desde que o frio foi embora, descem as águas que se juntam aos poucos e se tornam em rios que se fundem formando caudalosos cursos d'água e que enchem nossos vales de férteis terras e de esperança. Sou Toolak, filho de Thuurk e Atlan, filhos de Tooriam e Thaark. Nossa casa é ampla e aqui em nossa cidade vivemos em paz; temos de pagar o dízimo de nossa colheita ao governo central, no centro de nosso país cercado ao leste por terras ainda frias, ao oeste por uma grande ilha desconhecida e ao sul por extensas águas e pântanos malcheirosos. Pastam em nossas terras alguns Chhamm, lentos a mascar a erva e rápidos em seu trote; vieram das terras frias e se espalham sozinhos nas pradarias e vales de nossa terra e são formosos e garbosos. Aceitam nossas cercas mas de vez em quando alguns fogem para as longínquas praias quentes de nosso imenso litoral.

'Minha esposa se chama Larya, bela moça filha de Tlanctl e Oximatl, casal descendente das antigas tribos do sul, de pele acobreada e alta estatura. Sempre se disseram de pura raça, descendentes dos guerreiros antigos que conquistaram nossas terras que agora formam imensa nação. Eu não acredito na pureza da raça, eu acredito na beleza de Larya; nossos filhos, Myia e Laacl, um casal de gêmeos, correm rindo nos campos arados de nossa comunidade, acompanhados de Larr, nosso guardião desde há anos. Os guardiães são talhados para a tarefa, são robustos e se alimentam de quaisquer coisa, aceitam nossa companhia e dormem aos pés de nossas camas, ouvidos sempre atentos ao mais ínfimo ruído. Não só uma vez Larr surpreendeu ladrões como os estraçalhou, dada a enorme força de suas mandíbulas e seus dentes afiados. São de tal forma leais a nós que podem ser surrados por uma criança que não reagem, apesar de serem praticamente invulneráveis. Cada família tem o seu guardião, cada terra é delimitada pelo seu poder e força.'

'Larr há alguns dias levantou-se e ficou teso e atento. As crianças vieram nos chamar porque ele assim levanta as orelhas porque ouve algo ao longe. No entanto, por mais que tentássemos, Larr não saiu de seu lugar. Um rumor, um zumbido então, começou como se fosse assim um ninho das enormes Mozcallah, hábeis criaturas voadoras de picada quase mortal e que tanto assusta os povos próximos ao Pântano. No entanto, foi como se as montanhas se movessem ao longe e pudemos ver que de uma delas descia uma coluna de fumaça e a cobertura branca deixara de existir num enorme cogumelo ameaçador. Dias depois soubemos que um rio que passava perto de nossa fazenda se tornara volumoso a ponto de tragar as casas e toda a criação da pobre família que ainda lá residia. As nossas crianças, sabiam de algo que nós, eu e sua mãe, não desconfiávamos'.

'Uma vez a cada sete Laks, eu vou ao centro de nossa cidade, vender o que produzo e assim conseguir os gêneros que preciso para minha família. Os meus amigos estavam lá e comentaram os fatos que eu relatei e alguns disseram que aquele seria um aviso dos deuses das montanhas. Fui ao Grande Estupa, onde residiam nossos maiores líderes e aonde fazíamos as consultas de quando e como deveríamos plantar para melhores colheitas obter. O templo é enorme, de grandes paredes alvas e com um telhado dourado. Ao entrar, sentamos e podemos consultar nossos grandes Estupas, cidadãos que se valem de seu poder sobre os elementos e de grandes artes mágicas que são mistérios para nós que vivemos de nossas colheitas. Entramos em cabines isoladas e então fechamos os olhos e assim se forma a imagem de um Estupa que diz em voz profunda:

--O que deseja falar, humilde campônio?

--Nossa casa está assustada; nossos filhos sabem de algo mas não o dizem. Nosso guardião se encontra estranho e vimos a montanha se mover ontem. Há algo que devemos temer?

--Nada deveis temer. Há os ensinamentos que dizem que há muito tempo reclamam as montanhas de suas alturas e muitas delas se revoltam; assim ela o fez, mas nada que não possa ser previsto pelas nossas leis que controlam a força das montanhas e a suavidade das ondas.

--Mas, meu maravilhoso Estupa, e as famílias que pereceram afogadas, e suas criações que se perderam e os filhos que órfãos estão? Que será agora dessa gente?

--Filho amado, vós temeis por algo que já foi sanado. Os filhos sem pais já se encontram resguardados e as terras revoltas já cicatrizam suas feridas expostas. Não há que revolver o pântano da dúvida em seu coração nem que prantear o que não lhe pertence. Volve, pois, à vossa terra que lhe espera cheia de bênçãos! Deixai conosco o que é passível de ser curado. Não tomeis a dor de outrem por vossa.Segue em paz e volta aos vossos.

Chegar em casa, encontrar a família reunida à espera dos relatos da cidade cintilante, com o suave aroma das árvores no caminho, Larya e sua calorosa acolhida e sentar à mesa, abrindo a sacola de presentes a víveres. Não há coisa melhor que esta, a recompensa por dias de trabalho duro. Noto, porém, que minha esposa tem olhar grave e os gêmeos têm um ar de interrogação nos olhos claros. Pergunto a ela, ela desvia os olhos e não nega um beijo que promete delícias. No entanto, algo nela está tenso, talvez seu pescoço, uma certa resistência em seu abraço'.

'--Aconteceu algo que eu não saiba?

--As crianças. Elas me assustam.

--Como assim? O que foi dessa vez?'

--...Posso ajudá-lo? Era o dono da livraria.

--Claro que pode. Que história é esta? O tal Manuscrito não passa de um diário de uma família camponesa?

--Meu caro, este é o Manuscrito , assim está escrito.

--Venho até aqui porque um amigo diz que um estranho lhe indicou um Manuscrito que seria secreto, talvez uma raridade.

--O senhor cochilou. Eu o encontrei ressonando sobre o tal...Manuscrito...

--Quanto custa?

--Senhor! Não posso vender este livro.

--Não?

--Não. Definitivamente.

--E porque o expõe, então?

--Porque o senhor veio. Porque eles me avisaram de sua vinda.

--Eles?

--Tudo se esclarecerá ao seu devido tempo.

--Não pode me vender o Manuscrito?

--O senhor pode lê-lo aqui; terei prazer em ajudá-lo na tarefa.

'Filho amado, vós temeis por algo que já foi sanado. Os filhos sem pais já se encontram resguardados e as terras revoltas já cicatrizam suas feridas expostas. Não há que revolver o pântano da dúvida em seu coração nem que prantear o que não lhe pertence. Volve, pois, à vossa terra que lhe espera cheia de bênçãos! Deixai conosco o que é passível de ser curado. Não tomeis a dor de outrem por vossa.Segue em paz e volta aos vossos'.

--Ouviu algo?

--Senhor, estamos na hora de fechar. Se me permite, eu o acompanho até a saída.

Meus temores se confirmaram, eu realmente extrapolara o meu momento. No entanto, se havia algo lá no Manuscrito, eu o elucidaria. Despedi-me do livreiro e saí pela porta, ouvindo o tilintar do sininho à porta.

--É um belo livro.

Novamente, o mesmo misterioso homem, a mesma entonação de voz anasalada. Um estranho tique nervoso que o fazia coçar a orelha vermelha e a testa gordurenta marcavam seus movimentos...

--Garanto que terá belas leituras. Faça proveito de cada lição delas. Todas são extremamente didáticas. No entanto, há sofrimento. É inerente ao ser humano.

--Pois não. Saberei saborear cada gomo de sabedoria.

Quando me voltei para dizer alguma obscenidade ou coisa que o valha, ele havia sumido. Mania esquisita, sumir assim.

Ainda ouvindo o tilintar da porta e pensando comigo que tipo de manuscrito era aquele, eu caminhei a passos lentos para minha morada, aonde eu iria ouvir o indefectível discurso do meu locatário. Que assim não poderia manter o prédio, que se todos se eximissem, ele ia à falência, e coisas que tais. Enfim, um fecho de ouro para uma noite produtiva. O caminho para minha casa era escuro, alguns postes mal cuidados escureciam a visão do céu cheio de fuligem, que ardia nos olhos...Espere um pouco, passos atrás de mim? Quem me seguiria àquela hora? Olhei para trás, nada havia de estranho, a não ser o vulto de um gato baldio. Ou de um cachorro latarrão que espreitava o gato. Não sei, eu não vi nada mas, como a prudência anda de passos dados com o cuidado, eu tratei de apressar o andar e meio distraído, quase passei a porta de meu prédio. Estranhei o meu locatário que sempre antes me perguntava do aluguel. Ele, sério, lia um jornal sentado em sua cadeira de couro verde, sob a luz do abajur em sua mesa de escritório, que tinha uma cúpula verde que eu achava parecida com um besouro. A fumaça do cigarro criava o clima noir e ele, levantando as sobrancelhas(ele era dramático...) perguntou:

--Conhece algum Jamal?

--Não. Gamal talvez, mas Jamal nunca.

--...Pois é, esse Jamal se apresentou. Muito distinto, ele se vestia com uma roupa estranha, meio bufante.

--Certo.

--Perguntou por você, se você voltaria logo. Eu não disse nem que não, nem que sim. Vai que é um ladrão! Mas ele falou que não podia lhe esperar e trouxe consigo este canudo. Pediu que você mesmo o abrisse, na hora que achasse apropriada...

--Obrigado!

Subi ao meu andar pelo velho elevador de portas pesadas...Sentei ao sofá e contemplei o canudo de cor vinho, aveludado e com um filete dourado à guisa de acabamento. Abri o canudo, havia algo lá dentro. Um pergaminho...

'Este é o caminho da verdade. Por ele em estreita senda vão os justos e aqueles que eu chamar deverão responder. Se este manuscrito chegou até você, não hesite em lê-lo. A Verdade vale mais que a ilusão que grassa neste mundo. Contemple a Verdade sem a face da ilusão que marca nosso mundo.'

Via-se um selo dourado, que ficava por fora, da mesma forma que o selo no tubo que o continha. Era um selo em forma de Mandala; tinha seis formas que se entrecruzavam e no meio delas um tipo de letra que me lembrava o Sânscrito, a escrita dos deuses e sacerdotes. Era a sétima forma. Quem havia mandado aquele manuscrito? Senti uma enorme vontade de retornar ao livreiro; será que ele tinha algo a ver com aqueles fatos? E quem seria Jamal, Gamal ou quem quer que fosse? No entanto, pelo adiantado da hora, decidi que iria lá no dia seguinte. Já estava irritado, afinal. Em questão de horas, o tal Manuscrito adquirira cores que eu jamais imaginara e sua importância já tomava dimensões que me preocupavam; eu só queria ler um documento raro. Só fora até o livreiro por indicação de meu amigo, não tinha nenhuma intenção outra que ler e me divertir com talvez uma história antiga contada por um povo exótico.Recordei o livreiro, o camarada que comentara sobre o tal documento; os passos na rua escura de meu prédio e este documento estranho trazido por um homem estrangeiro. Não conheço nenhum Jamal; conheço de ouvir falar de um tal Gamal, que meu amigo dizia ser um conhecedor de textos raros e que eventualmente me trouxera livros antigos que ele regateava(muito bem, a propósito) com estranhos donos de sebos escusos. No entanto, o que eu tinha como hábito agora já virara um estranho sonho, mais diria eu um pesadelo.

Eu me preparei para dormir, não sem antes tomar um chá de ervas. Tudo naquele dia parecia diferente, extraordinário. Tudo vinha com uma bruma, um estranho nevoeiro. Não sem razão, tive dificuldade para adormecer...Quando finalmente adormeci, tive um estranho sonho.

'Não nos abandone', dizia uma linda moça. Como eu poderia abandonar vocês? No mar, ondas imensas, verdes, com enormes cristas elevadas como montanhas. O cheiro do mar eu o podia sentir; a maresia se fazia presente em minha língua e em minha pele.Eu a tinha curtida, queimada pelo sol inclemente. A linda moça dizia isso e eu voltava os olhos à baça luz da casa onde vivia e duas crianças também sorriam para mim. Ao fundo, montanhas altas e com os cimos nevados. Um vento tépido, um calor agradável. Ela me olhava e ainda tenho na minha boca o calor daquele cálido beijo, o perfume de seu hálito e o carinho de seus braços. Não, nos vos abandonarei!!! O chão tremeu; podíamos os quatro sentir os movimentos da terra como se fôssemos joguetes. Tudo na casa tilintava e coisas caíam ao chão. Apavoradas, as crianças nos abraçavam. Súbito, ouvimos um rumor, como se fosse um trem ao longe. Olhamos o horizonte e o mar havia regredido. As rochas brotavam do fundo e as águas refluíram. Eu e ela nos abraçamos e aos nossos filhos e vimos a enorme massa de água se avolumando até que os picos das montanhas ao fundo se apagaram com a enorme vaga que se aproximava. Muitos fugiam, nós quatro ficamos no lugar. Eu lhes disse que os protegeria e eles se aninharam a mim. Quando a onda chegou, nós quatro fomos engolfados e a escuridão nos envolveu. Acordei sufocado ainda, com a sensação de tristeza e de enorme solidão ainda presente...

--Deus do céu, que diabos é isso?

***************

--Você está abatido...

--Você acha?

Depois daquela noite horrorosa, que mais eu podia mostrar ao mundo? Meu colega de trabalho recomendou-me descanso. A secretária do escritório mal acreditou em minha palidez. Disse que eu parecia ter sido consumido por uma voragem. Palavras dela. Voragem, vertigem. Era o que eu sentia, e mais de uma vez eu pensara em desistir de mostrar o tal documento ao livreiro, procurando quem sabe alguma resposta às perguntas que se aninhavam em minha mente. Por exemplo, de onde vinha o Manuscrito, realmente? Qual era a ligação daquele documento escrito numa língua estranha com o tal Manuscrito? O que o livreiro podia saber sobre o tal indivíduo que me fornecera pistas dentro de sua livraria? Mal podia esperar para chegar o final do expediente. Larguei às duas. Dirigi-me de imediato ao meu antro de pesquisas, a livraria com o tal Manuscrito que jamais poderia ser vendido. Entrei, tocou o infalível sininho. O livreiro estava lá, com seu ar enigmático e seu ar pensativo e não foi sem surpresa que ele me recebeu.

--Ora, voltamos ao mesmo ponto.

--Claro. Se o senhor me vendesse o documento, talvez se privasse de mim. No entanto...

--Já lhe disse, não o posso vender. Este documento está com minha família faz tempo. Questão de herança, sabe?

Mostrei-lhe o documento que havia recebido de um tal de Jamal, ou Gamal. Ele ficou vivamente interessado, porque ele pegou o Manuscrito original dele que estava exposto e o comparou.

--Veja, estas letras existem aqui e lá. São selos. Onde conseguiu isto?

--Alguém o deixou em minha casa.

--Tem aqui algo muito valioso. Gostaria de comprar do senhor.

--Se alguém o deu a mim, em meu nome, deve significar algo. Não acha?

--Com certeza. Garanto-lhe, no entanto, que em minhas mãos o documento que o senhor possui estará em segurança.

Neguei ao livreiro, quem sabe eu pudesse valorizar o que tinha em mãos e arrecadar bom dinheiro?

--O senhor não sabe o que tem nas mãos. Não sabe!

--Por quê deveria saber?

A atitude do livreiro denotava desconforto e ambição. O que quer que significasse, ele certamente já o sabia e dava todas as indicações de querer tirar de mim tal descoberta...

--Bem, o senhor que sabe. Mas, o senhor gostaria de reler o...Manuscrito?

Fiz que sim com a cabeça. Ele me guiou até a prateleira, aonde o tal texto me esperava, ávido de me devorar, sedento para me sugar em uma voragem e me deixar em vertiginosa companhia. Pareceu-me ver um vulto que nos observava a ambos. Num relance, compreendi, poderia ser minha imaginação já espicaçada pela noite insone. Sempre que deixava de dormir, minhas fantasias se multiplicavam e eu flutuava em meio às vagas de meu inconsciente.O dono da livraria pareceu notar meu desconforto.

--O senhor está abatido. Tem dormido bem?

Não sei se o sorriso que vi nos cantos de seus lábios foi uma ironia ou um esgar de alguém que se via perto de algo muito desejado, porém impossibilitado de realizar seu desejo. Teria algo a ver com o tal selo que Jamal me trouxera?

--Aqui está a prateleira. Bom divertimento.

Deixou-me a sós com a sombra do texto, enquanto eu pegava o pergaminho e o comparava com o Manuscrito. Havia uma notável identidade entre os sinais, embora o Pergaminho parecesse mais velho, mais atingido pelo tempo. No entanto, ambos mostravam mais do que a idade vetusta: Mostravam autoridade, dignidade. Também mostrava que quem quer que fosse o tradutor, talvez tivesse acesso a segredos mais profundos não expressos ali, no Manuscrito mesmo. Lá estava o sinete; o mesmo sinete que havia no Pergaminho, havia no manuscrito. Os dois, definitivamente, tinham uma correlação!

Procurei o texto aonde havia parado na noite anterior. Tinha tempo, iria mais fundo agora.

''Este é o caminho da verdade. Por ele em estreita senda vão os justos e aqueles que eu chamar deverão responder. Se este manuscrito chegou até você, não hesite em lê-lo. A Verdade vale mais que a ilusão que grassa neste mundo. Contemple a Verdade sem a face da ilusão que marca nosso mundo'

'--Essas crianças me assustam!

--O que foi desta vez?

--Vou lhe contar, meu marido.

Ele sentou-se porque ela tinha um ar alarmado, assustadiço, como o da pequena corça antes do abate, ou do coelho dos campos em sua fuga dos predadores.

--Hoje pela manhã, logo que você saiu para consultar o Oráculo da Estupa Sagrada, eu dormia e achei ter ouvido um ruído. Pensei que era algum roedor, procurando algo na casa das sementes. Mas não era. Pensei que fosse Larr, que ultimamente anda inquieto.

--Compreendo você.

--Mas não era Larr. Não era, mas eu gostaria que fosse.

Nesse instante, sua pele empalideceu, como se uma onda de terror abominável a preenchesse, ao solicitar uma memória desagradável. Notei suas narinas dilatarem e suas mãos que eu peguei se tornaram úmidas, pegajosas de medo.

--O que a aflige, querida?

--Eu lhe conto, meu marido. Fui espiar atrás da casa das sementes. E o que vi, o que ví...'

Quem ouviu um ruído fui eu. Interrompi minha leitura desinteressada e percorri o local com os olhos, em suspeita atitude; dir-se-ia que eu carregava um pacote de entorpecentes, tal minha cautela...novamente o ruído...

'--Querido marido, era como se folhas fossem, batidas ao vento...Mas não! Eu via um remoinho e perto do remoinho, uma voz que saía do alto, assim como se fosse um sussurro. De lá me aproximei.Apurei os ouvidos. Antes não tivesse ouvido o que tal voz dizia.

--O que ela dizia, querida esposa?

--Ela dizia:

'Em breve, as nuvens descerão nas colheitas, haverá novo infortúnio. No entanto, temei por conta do infortúnio maior que virá ao fim do sexto dia. Grande será a aflição e vos aviso, recolhei os seus pertences e foge para o mais alto dos montes, porquanto vos será dada a chance de perpetuar vossa semente deitada à terra. Ser-vos-á dada a chance de renegar o passado de vergonha e de cortejar um futuro que, de tão distante, nem o vulto se lhe vê, aonde voarão os pássaros de ferro e roncarão as terras como um inferno crepuscular. Ouvi e deixeis o orgulho de lado, porquanto se avolumam as evidências de teu pecado'.

--E então?

--Então, meu marido e amo, tive um vislumbre. Pude ver ao longe, terras que não conheço e que temo que jamais conhecerei. Lá estavam os pássaros de ferro, cidades inauditas, pessoas apressadas e Oceanos cobertos de águas luminosas. Pude ver também em meu vislumbre que os nossos destinos estão selados e que é tempo de nos prepararmos para uma vida mais plena que esta nossa. Uma vida em que a alegria iluminará nossos semblantes, o meu e o seu e os de nossos filhos, na perene eternidade. Pude ver um anjo celestial que abria as portas da Vida para nós. Neste lugar, corria um rio de cristal onde pedras preciosas ornavam os peixes que nadavam plácidos, onde as árvores exalavam perfume das flores e frutos; nossos filhos corriam livres no campo semeado de grãos deliciosos e Larr, liberto de sua escravidão, corria ao lado de Chamms de crina alta, de olhos astutos e felizes. Pude ver, meu querido, que a vida que levamos, apesar de feliz, pode ser e será mais venturosa ainda quando estivermos juntos, os quatro, caminhando na doce planície da ventura eterna. Neste meu vislumbre, eu sentia que isso seria em breve. Também senti que outro seria informado de nossa partida e viria, de um mundo distante, participar de nosso caminho dourado.'

Meu coração, ao ler aquelas palavras, disparou. As tênues palavras de Larya, confessando ao esposo seu temor e ao mesmo tempo sua tranquilidade frente ao destino inexorável--Afinal, todos temos este inexorável fim, que pode ser um recomeço--me comoveram às lágrimas. Quem seria o estranho que viria, que participaria do caminho dourado? Com os olhos turvos, ainda de coração opresso, voltei à leitura.

'As crianças brincavam e Larya, sempre previdente, as havia chamado pois a noite era fria; pediu que eles pusesses as blusas de pele que eu havia trazido da cidade quando fora consultar o Estupa Sagrado. Elas vieram.

--Papai, papai, o bosque está cheio de estrelas voadoras.

--Viu? Eu lhe disse, não as pegue!

--Por quê?

--Porque se as pegar, elas entram em sua pele; levam você ao céu e você terá de caminhar entre as estrelas. Daí, ficaremos com muita saudade...

Miya sorriu zombeteiro e abriu a pequenina mão, ao que um vagalume enorme se desprendeu, aparentemente sem nenhum dano, porque seus lampejos iluminavam a sala e ao sair pela janela chamaram a atenção de Larr, que o perseguiu.

--Larr! Deixe a estrela voar.

--Estrelas não voam. Elas estão lá, apontou Lacl para o céu. Elas só mudam quando a Mudança vier, e em breve mudarão de novo de lugar. Mas elas não descerão para nós; nós é que subiremos a elas.

Nós três ouvimos suas palavras com assombro e Larya, com um movimento de cabeça, como que confirmou o que dissera há pouco, que as crianças talvez soubessem de algo que nem eu nem ela sequer desconfiávamos. Lacl sorriu, com suas mechas loiras caindo sobre seus olhos amendoados e voltou aos folguedos com seu irmão gêmeo.

--Você viu? Lacl sabe, Myia sabe, até Larr sabe. O que será, meu querido? O que será que fizemos, nosso povo, nossa cidade, para merecer o desconhecido?

--Mas, como assim, querida?

--Tenho tido sonhos, querido. Sonhos terríveis. Sonhos sobre o mar, sobre as ondas, sobre destroços de barcos que chegam a terras que não são nossas. Sonhos sobre meu fim, nosso fim. somos tão jovens! Mal saímos de nossos lares paternos para juntar nossos destinos e aqui fazer nossa criação crescer. Cuido tão bem de nosso cantinho, Larr vigia tão bem nossas terras, nossos filhos são tão lindos! O que temos de sofrer? '

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