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Contos-->Qui nem jiló -- 17/12/1999 - 12:08 (Dioclécio Luz) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
QUI NEM JILÓ

Seu moço, você é menino, de poucos anos e pouca vida. Num conhece a sina da malasorte, as dificuldades que Deus nos bota na frente pra ver se a gente é disposta e num debanda pros lados do Fute. Tá me vendo assim esmolando e entonce pensa que sempre fui assim. Ou que fui me arrumar com o Tinhoso. Num é não. Ou que sou eu assim por ser desmiolada. E num é assim não, visse. Nem sempre cuspi em pote de hospitá e sanatório. Eu digo que tô boa mas eu tô é ruim de saúde. Miolo fraco e essa saia véia apodrecida é todo os meus teréns. No mais sou toda murumbuda.
Quer saber mais? Tive três fío. Morrero todos, de bala e faca peixeira. Fiquei miunça de alegria desde entônce. Devia ter morrido logo antes, quando veio a desgraça que nos levou a riqueza e a fartura da fazenda. Num acredita ni eu? Pois fique sabedor que meu miolo num é mole sempre não. Agora mermo falo a verdade verdadeira. Tive gado e burrego muito; tive fío e marido rico. Muito mío prantado e feijão e amendoim. Foi feitiço, seu moço. Cá na cidade, nessas modernosidade toda, nesse prédio de mil andar que a chuva todo ano faz crescer mais ainda, parece, num bate essa coisa de catimbó. Mas acredite ni eu que num sou mulé de mentir, nem nunca fui. Nem mesmo quando era moça feita.
"Saudade entonce aí é ruim, eu tiro os outros por mim, meu remédio é cantar". Eu canto também que cantar faz a gente mocozar a tristeza maior. Num posso lembrar disso não. Mas o senhor, que parece gente distinta, e num sei porque fica aí ouvindo essa véia falando besteira, se quiser pode escuitar-me. Se abanque mió. Tem um cigarro? Num é pra mim. É pro meu amigo, um namorado que aparece no finá da noite. Ele é meio enjembrado mas de bom coração.
Dizia. Dizia o quê? Digo que tive um pai de muita riqueza e cerimonha. E uma mãe besta de mole, mas parecendo corgo que corre in vale. Diziam muita crica do véio, que ele era ladrão de terra e gado, tinha amante muié de rua, que toda sua dinheirama veio de roubo e matança de posseiro. O véio meu pai era avaro, posudo e frio feito a cruviana. Nossas terra era mais maior que o correr de um pedaço de nuvem em dia de vento forte. O senhor está aqui me escuitando só pro causa dessa chuva que num passa, né? Bem se vê. Mode que num pensei em tale verdade antes? Menino, devo tá de corredeira na cabeça.
Fico a maginar naquelas épocas... E da tirania que meu pai fez e provocou esse estrambolho que arruinou minha vida. O véio meu pai, brabo, homem de mamá em onça, devia ter feito contrato com o Tinhoso. Devia sim. Proque nem arrespeitou no dia em que a irmã morreu, casando eu e o Joaquim, o Quinca de Lourival. Assucedeu o seguinte, que tia Ervira, irmã de meu pai (exprico pra gente num se amisturar o prosear) pegou molesta ruim que deixou ela estropiada por dentro, magrela por fora, mais mole que pau de canudo.
O moço vá me adescurpando a converseira longa e a falação dos parente que vive. Que Deus do céu que me alumia e a Virgem Santíssima perdoe essa pecadora que mora em porta de igreja, mas num falo sacriléjo. Parente é serpente - num é assim que se diz? É assim?
A chuva tá braba que só a gota serena e o moço num pode sair mermo, né? Entonce tem de ouvir eu. Espia... Aí meu pai foi visitar tia no hospitá. E minha tia Ervira tava morrendo que nem rolinha pedrada de baladeira. Ela tava naquele repuxo de dispidida desse mundo quando abancou meu pai nas beirada de sua cama. O charuto no bico e ele aí oiando pra ela, a rimã, estribuchando debaixo dos lençó de algodão amarelado do hospitá do Inamps. Inté que ela abriu os óio de cascavé e preguntou satanada: "que tu qué pru aqui?". Meu pai disse ligeirinho: "vim lhe pedí um favozinho". Minha tia num acreditava na conversa. E grunhiu debaixo dos pano sujo de sua escarradeira de sangue e catarro: "tu me botou no hospitá público, nessa miséria de lugá, pra num gastá dinheiro teu, maginando zufruir dos meus patrimonho quando eu morrer, e agora, feito um urubu de cidade, inda fala que carece de favô meu?..."
Meu pai contou pra gente asdespois que a rimã tremeu de ódio quando ouviu seu pidido: "tô querendo que tu morra hoje ou asdespois de amanhã, amanhã não, proque amanhã, domingo, é dia de casamento de Engrácia. Tu pode colaborar. Se der passamento segunda-feira num vai ter problema, mas prá amanhã tá marcado o casório da Engrácia. Veio o noivo e os parente de Maceió, e todo mundo já tá festejando. Cunversei com eles. Falei da tua doença, do teu morre-num-morre, e eles disseram que num tem jeito de fazer festejo na segunda proque é gente rica, gastaram na festa, tem cumprimisso... Tu entende, precisam trabaiar na segunda-feira." Tia Ervira, que já se bolia feito uma coral embaixo dos lençó, arrespondeu a ele: "favô do cão tu tá me pedindo. Eu sempre acreditei que tu fedia a enxofre mermo...".
Moço, se fie no que digo, espie que estrupiço: minha tia virando defunta e meu pai pedindo pra ela adiar os acabou-se. Os dois parado ali um tempão feito bicho tocaiando a presa. Mas quem era a presa? Meu pai num despregava os óio; teimoso que nem um jegue, guardava que a rimã mudava de conformes. Mas tia Ervira - passados quilo de tempo - abriu os óio de novo e disse cuspindo sangue e veneno: "me deixe, home. Se tu quer casá tua filha, faz isso sem meu consentimento. Tu sabe que isso de fazê festa em dia de enterro é coisa de quem tem mermo partes com o Cão, e eu acredito que tu tem. Por isso cabra, matula esse aviso: a hora da viagem num é marcada por mim, só sei que viajo, mas se purum acaso eu for de partida amanhã e a noite tiver forró pra festejá casório, enfia isso no teu miolo de gôgo; no meio do caminho faço vorta, só cumpro meu destino no céu ou nas cafunda dos inferno asdespois de lhe atazanar sua vida e a desse povo que for envorvido na festança". Fechou os óio e nada mais falou inté o dia e o instante de sua morte. Vála-me Deus! Falar dessas coisa dói.
Você é moço. É casado? Num parece. Num sei se devia lhe contar essas coisa de feitiço. O senhor num vai acreditar. Pensa que tô véia e desmiolada. E tô mermo. Mas num tô doida toda hora. Minhas loucura tem hora. Num é assim cum todo mundo também? Eu acho que é. Eu acho que é todo mundo doido, amalucado, estropiado do cerebélus. E só num vai tudo pro santório proque num ía ter doutô pra cuidar de tudo.
Ai que essa velharia de muié destampada da cabeça deu um nó nas tripa da história que conto. É a chuvarada. Essas águas deixa a alma da gente mole. Num era mole as vontade de meu pai. De lambuje era peitudo. Proque minha tia morreu no dia de meu casamento e mermo assim foi feito de tudo. As tardinha, quando a ribançã parou de cantar no mato. O moço conhece ribançã, esse passo de canto bonito? Quando se assucedeu o fim de tarde, minha tia foi enterrada em cova rasa regada por choro de um bando de gente, os parente de casa e até os do meu noivo, Quinca. Já lhe falei dele? Galego bonito, moço distinto. Quando foi de noite o padre Créiber cerimonhiou nosso casamento e depois benzeu a festança, um forró arretado. Dancei, adescurpe a expressão, feito uma rapariga. Naquelas época, moça direita, eu num falava essa porqueira. Foi a vida na rua. E as miséria daqui. A gente é pobre e aprende o que num presta. Mas naqueles dias eu era rica, e meu noivo também tinha dinheirama. Festejamo o desgraçado do casamento e comemo e bebemo inté a hora de pegar o carro e viajar só nós dois. Meu pai só contou dos detalhes do catimbó de tia Ervira muito asdespois quando a desgraça já estava feita e arrumada e acantoada na vida da gente. Por essa esquecida o fela-da-puta do meu pai, me fudeu o destino. Adescurpe de novo, moço, eu perco os estribilho, as linhas da conduta, a porra da carma. E choro feito agora. E, Porra! Merda! fico mais doida ainda. Mas num chegou a hora de endoidecer não. Não se aperreie comigo. Eu conto. Meu pai num disse nada e foi se fazendo a desgraceira em nossa família, devagarinho feito doença de pele. Antes veio a farturação: a fazenda cresceu aloprada e nós dois fazendo menino sadio e capeta que é sinal de tino de menino. Minha parição foi só de macho, uns bruguelo bonito, metade minha cara, metade do pai. Joaquinzinho, o premero, tinha o cabelo escorrido, liso, pretão, parecia índio. Joaquinzinho eu gostava... Ih, moço, adescurpe as lágrima. Faz de conta que é a chuva destroçando meus óios. Tire por menos. Num repare a dor de esmolé desmiolada de porta de igreja que fica relembrando o passado. Merda! Porra! Nossa senhora!
Quinzinho morreu quando tinha 10 ano, de facada no bucho. O moço já ouviu falá nisso de menino morrer de facada? Eu não. Foi numa briga besta de rua cum os outros menino. Conta que um seu amigo arengou por bola de gude e tinha uma faca no chão e ele pegou e largou no bucho de Quinca. Foi aí que começou meu desmiolamento. Dois dia depois Gélson, meu outro menino mais novo, pegou um tiro de bala no dia em que os cangaceiro de Lampião quiseram entrar na cidade. Ele tava passando descuidado pra comprar pão e farinha quando a primeira bala - era do Cão, moço - acertou ele no peito, e Gélson morreu na rua. Morreu ali. Ai, meu Deus! Ai, seu moço. A gente que é mãe se dói por dentro quando isso acontece ou é alembrado. Dói aqui dentro, viu, dentro da barriga, no peito também, uma dor de saudade, de farta de arguma coisa. O senhor já sentiu isso? Tô ficando mais doida mas num carece ter medo de eu. Eu posso ainda contar de como morreu Luís, meu outro menino. O mais novo. Bem nos conformes da ordem de matança arrumada pela condenada da minha tia, instalada nos cafundó dos inferno, em parceria com o diabo. Ela pegou Luís enforcando ele num pé de juazeiro. Moço, que morte horrível. Luís metido a vaqueiro marrou a corda de um boi brabo no pé de juazeiro, e nisso que vai tomar distância o guzerá dá uma botada, faz uma remoada, inté que a corda coisou nas guela dele. E morreu. Ai minha Santa Perpétua. Puta que pariu! Levaram tudo que tinha. Num carece mais viver. Eu pido esmola mas devia era pedir meu fim, meu passamento. Deus que me perdoe. Ai Cão danado me leva desse mundo onde só faço penar feito uma condenada.
"Se a gente vive só por lembrar... O amor... que um dia cresceu... Saudade entonce aí é ruim, eu tiro os outro pro mim, meu negócio é sofrer".
Ai moço, num sei proque conto isso pro senhor. Essa sangreira toda, esses causos de morte e livusia. Talvez proque o senhor destampou os ouvido pra mim. Ninguém olha pra eu em porta de igraja, uma desmiolada fedorenta, esmolenta. O senhor táqui proque é de bom coração. Que a chuva num tá tão bojuda assim.
Quinca, meu esposo, morreu de morte morrida. Foi ficando lerdo, ele que era moço e troncoso, inté que num conseguiu apalacar o calor de um dia e faleceu botando sangue pela boca. Apois é verdade, nem liguei mais pra esse estrupício. Já tava doida varrida, vendo Nossa Senhora vestida de encarnado nos cantos da casa e o Fute velejando por riba dos milhará. Que má prigunte, o senhor me acha doida? Num pareço, né? Mas doido só se parece doido quando deixa de labutar; né assim? Doido é gente manioso proque só assim escapa das grade de um sanatório. Doido, o senhor arreparou, tem tino também, um tino adiferente, habilidoso, capaz de mantê-lo nas lua e entre as gente de bem. Isso é pabulage besta. Amanhã o moço esqueça o foguetório de palavras que lhe mando e essa véia maluca que vive amarga qui nem jiló.
Minha família era eu, meu pai, minha mãe e dois irmãos. Os irmãos foram embora no lombo dos tempos, se escafederam nas cruvas dos meses e dos anos e inté que até hoje num deram notícia de boa ou de ruim. O véio meu pai, falido nos negócios, vive hoje numa tapera de beira de rio, às custa do povo e da mão de minha mãe. Os dois num morrem. Mais parece que Deus tirou férias e deixou aqueles dois padecerem até o dia do juízo. Pai e mãe deve de ter cada um mais de cem ano. Tô mentindo, que num sei se isso é verdade. É verdade, devo tá mentindo. Agora, além de fazer marmuração contra os outro dei pra mintir, cuma quem tá encorajada pelo malino. Porra! Valei-me Nossa Senhora do Perpétuo. Nossa Senhora da Ajuda! Puta que pariu!
São muita minhas amargura moço. A chuva acabou faz tempo e o moço escuitou elas. Eu agradeço. Isso é mió que ismola. Ismola serve pra comprar pão ou cachaça; coisa assim serve pra lavar as alma da gente. E mermo num sabendo mais rir essa véia mulambenta fica sartisfeita. Deus lhe pague a caridade que fez. Se um dia eu morrer, assim que botar as precata lá em riba conto pra todo mundo o homem bão que é o senhor, modo que seu passamemto pode doer mas o paraíso fica assegurado. É, o senhor tá rindo de minhas besteira. Coisa mais besta, né. Deixa eu cantar pro senhor mais uma vez:
"Se a gente lembra só por lembrar, o amor que um dia a gente perdeu. Saudade entonce aí é ruim. Eu tiro isso por mim, que vivo doida a sofrer..."

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Do livro "GENTE SOBRENATURAL", publicação do autor, 1997, Brasília/DF
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