...Que os cabelos dela eram da cor da luz do sol ao nascer. E que, ao se abrir o dia, das janelas se podiam ouvir os suspiros de todos que a amavam. Assim conta a lenda que corria. Ela vivia com a mãe, sábia rainha que era dada às práticas da magia. Um dia, ela sonhou que um homem estava à deriva em um barco, mortalmente ferido. Era tão vívido o sonho que ela podia sentir o gosto salgado de seu suor escorrendo, a dor de sua ferida e a profunda tristeza a que se entregava o pobre homem.

--Ah, suaves gaivotas, levai-me ao reino da cura.

Ela pode ver, em seu agitado sonho, que ele só não fechara os olhos porque uma vontade imensa o movia e ela sabia, bem no íntimo, que ela seria dele e ele, quem sabe dela. Acordou e foi contar seu sonho à mãe, que a olhou pesarosa.

--Lembras-te de meu aviso: Não te deixes levar pelo impulso, que pode ser tua desgraça. O mundo move suas linhas do destino, as altas ondas trazem o aviso de longe. Não te deixes envolver pelo sonho impossível.

Intrigada, lá foi ela iluminar mais uma manhã de sua janela, enquanto os ventos do mar da Irlanda lhe traziam estranhos presságios. Estava ela assim pensativa quando viu algo no mar. Seria um barco? Mais lhe parecia uma jangada. Ouviu um alarido vindo das praias frias e parecia que os pescadores comentavam entre si algo formidável.

Logo chegou ao palácio a notícia de haverem achado um homem em certo barco. Parecia trazer um homem ferido, e este homem era de suave rosto, mas estava muito mal. Vinham pedir os favores da rainha, sua mãe, para tentar salvá-lo de seu destino quase certo. A mãe olhou a filha, desolada, pois que era versada em adivinhar os futuros dias e o que viu, além dos olhos cor de esmeralda dela, era o sofrimento.

--Lembras-te de minhas palavras; sabes que tens um compromisso com Marcos, o rei que te pediu em casamento. Lembras-te de tua dignidade, lembras-te de tua virtude.

A linda donzela foi com sua mãe receber o tal homem em aposentos reservados para as curas. Mãe e filha se enterneceram pelo pobre rapaz ferido, à morte. Foi quando sua mãe iniciou os cuidados para que ele se recuperasse e quando ela, sob o pretexto de ajudar em sua pronta recuperação, ficou mais próxima daquele que parecia ser seu destino. Nada mais havia que a impedisse de olhar o seu rosto e perceber neles os traços de sua própria alma, porque ambas eram uma só. E foi assim que ele se recuperou, não tanto pelos cuidados que a mãe dela lhe dava mas muito mais pela promessa de amor que se afigurava nos olhos luminosos da loura donzela que velava dia e noite por ele.

Quando ele se pôs de pé, a primeira coisa que fizeram foi o de jurar amor um ao outro. Escolheram um quarto do palácio fora das vistas de sua mãe e em noites de grande êxtase se enntregaram ao frenesi.

Acontece que Marcos cobrava a presença dela. E ela contou a seu amante tal desdita, e a pesarosa rainha teve de fazer valer a força da tradiçao. Assim foi que ela, a prometida, foi com ele no mesmo barco junto com sua fiel criada e uma poçao de amor que era destinada a que ela e Marcos tomassem, preparada por sua mãe. Por uma distraçao da criada, ambos tomaram a poçao ainda no barco e foram tomados da mais indizível paixão, tal que mesmo a que sentiam antes era pálida; agora estava unidos pelo espírito e não só pelo corpo.

Acontece que a donzela se mantinha fiel ao compromisso e se casou com Marcos, mas manteve seu amante ajudado por sua criada.

O rei descobriu e os dois fugiram para a floresta sem serem alcançados pelos esquadrões do rei traído. Marcos amava tanto sua linda esposa que sempre atrasava sua chegada , dando-lhes a chance da fuga.Eles encontraram abrigo em uma gruta mágica, com um leito de cristal, onde puderam realizar plenamente sua paixão.

Certo dia, em uma caçada, o rei percebeu que seus cães haviam farejado algo. Chegou então com eles à entrada da gruta mágica, onde divisou o vulto de sua linda esposa deitada ao lado do tal homem que tanto odiava. Estava a ponto de entrar e fazer o casal pagar com a vida; no entanto, viu o sol batendo em cheio no rosto dela. Chorando, o rei se foi, pensando que, se ela o amava tanto, ele não tinha o direito de tirar sua vida.

Que fossem felizes assim.