Naquela época, lá pelos idos dos anos 1980, ainda se podia ficar na calçada conversando fiado sem medo dos assaltantes, da violência que impera na nossa cidade, ou no Brasil de uma forma geral. Fortaleza ainda era uma cidade muito pacata, e morávamos na Cidade dos Funcionários, bairro tranquilo, bucólico. Nos arredores na nossa rua havia muito verde e alguns pequenos lagos. É tanto que vez por outra na minha casa apareciam visitantes noturnos. Principalmente gambás que entravam pelas grandes da cozinha em busca de alimento.
A rua de calçamento era das mais tranquilas e tinha apenas cinco casas. Em frente à nossa casa um matagal, com um pequeno lago, onde os meninos costumavam pescar, onde se conseguia pescar alguns peixes razoavelmente grandes, margeando a rua dois campos de futebol. Um pequeno e outro com dimensões mais ou menos oficiais, onde o São Raimundo, um dos muitos times do bairro, fazia seus jogos em casa, nos fins de semana. E de segunda a sábado à tarde era o local preferido da garotada se divertir.
No fim da década de oitenta, tudo isso começou a mudar. As construtoras chegaram e começaram a fazer conjuntos habitacionais, onde antes fora um local de brincadeiras de muitas crianças e adolescentes.
Daquelas crianças e adolescentes de dezessete, dezoito anos, na época, tornei-me amigo. Embora bastante mais velho do que elas, já com meu trinta e poucos anos, aventurava-me a jogar bola no meio da garotada.
Com a chegada das construtoras as duas quadras vizinhas à minha casa transformaram-se num canteiro de obras. Muitos operários vieram para trabalhar na construção civil. Com alguns deles travei amizade e passei a conversar quase que diariamente.
Cheguei, inclusive, a visitar a casa de um deles no interior do Ceará. Uma de suas filhas trabalhou conosco e durante alguns anos como babá de minhas filhas.
Outro, também do interior, ficou mais próximo, por ser da mesma região do interior do Ceará que eu. Na ocasião, chegou a pedir para eu ser padrinho de sua filha, que tivera com a segunda mulher.
Beroaldo, o nome do meu conterrâneo, chegou a Fortaleza para trabalhar como ferreiro na construção das casas. Era responsável por preparar as estruturas de ferro das colunas, vigas e lajes.
Quando eu chegava do trabalho, por volta das seis e meia, sete horas, passava, geralmente, algum tempo conversando com os operários, que moravam na própria obra.
Daí surgiram algumas amizades.
Durante a semana Beroaldo ficava na obra. De segunda a sábado. Sábado à tarde, por volta de meio dia, logo após o encerramento do expediente ele ia para a rodoviária e pegava um ônibus até sua terra, Baturité, para levar dinheiro para a família e passar o fim de semana em casa. Domingo à tarde, lá pelas dezesseis horas estava de volta a Fortaleza para o trabalho do dia seguinte. E assim passou meses a fio.
Domingo à tarde, invariavelmente, Beroaldo voltava para Fortaleza. Depois de algum tempo nessa peleja, de morar em Baturité e trabalhar em Fortaleza, sempre que chegava perto da hora de voltar, Beroaldo passou a observar que sua mulher ficava ansiosa, nervosa, dando a entender que estava louca para ele pegar o ônibus e partir. A princípio achou estranho, nada de anormal. Entretanto, com o passar dos meses ela foi ficando cada vez mais ansiosa, o que despertou a desconfiança de Beroaldo.
Desconfiado, certo dia, Beroaldo pegou o ônibus, mas desceu logo na parada seguinte e voltou escondido para perto de sua residência a fim de vigiar a mulher. Se fosse só a desconfiança dele, pegaria o próximo ônibus para Fortaleza.
De longe ficou só observando. Sua mulher deu um tempo, cerca de meia hora, talvez para ter certeza de que o ônibus já estava longe e saiu.
À espera não fora em vão. Então, Beroaldo passou a segui-la à distância, tomando o máximo cuidado para não ser notado e viu quando ela entrou na casa de uma amiga. Pouco tempo depois saem as duas e seguiram até um posto de táxi próximo, onde entraram num carro que já as esperara e rumaram na direção de Aracoiaba.
Beroaldo logo depois chega no posto e pega outro táxi e vai logo dizendo para o motorista seguir rápido, pois precisa a ver onde as passageiras do outro que saíra do posto há pouco iam. O motorista tranquilo disse: não se avexe eu sei para onde elas vão. Não precisa correr, porque vamos encontra-las num forró que tem em Aracoiaba, na beira da estrada, logo depois do motel.
E o motorista foi direto para o dito forró. Beroaldo pagou a corrida e foi entrando na casa e já deu de cara com sua mulher dançando arrebentando num forró do Luís Gonzaga. A mulher dele, como estava perto da entrada, também o viu. Deixou o parceiro e foi ao encontro do marido, mas cheia de razão, indagando dele o que fazia ali. Como se ele fosse o errado.
O tempo fechou. Se não fosse a turma do deixa disso, tinha havido morte, tanta a raiva do Beroaldo, que partiu para cima da mulher. Ele era preto, mas diante do fato ficou branco. Pálido, sei lá, mudou de cor e a cor não era mais escura.
Acho até que era branca, pois preto era somente em parte. A outra parte era branca devido ao vitiligo. E o vitiligo somado à raiva deu-lhe uma cor totalmente branca. Não uma cor branca só, mas duas. Uma da raiva e outra do vitiligo. Suponho.
Depois que as coisas se acalmaram, a amiga da mulher de Beroaldo retirou a dançarina e a muito custo conseguiu botá-la novamente no táxi, que ficara na porta à espera do desfecho do caso, e leva-la de volta para Baturité.
Beroaldo, entretanto, ficou ali parado. A princípio sem entender direito a situação. Na hora do acontecido somente via sua mulher o traído. Depois, perplexo, atônito, desorienta. E assim permaneceu por algum tempo. Quando compreendeu o fato decidiu-se por continua a viagem até Fortaleza e pegou primeiro ônibus que passou.
No próximo fim de semana, Beroaldo volta a Baturité para levar dinheiro para sustento do filho, mais diante da situação ficou na casa da mãe dele. E assim permaneceu por muitos meses. Todo fim de semana ia a Baturité, entregava dinheiro para sua mãe e pedia que ela desse a sua mulher que morava próximo. E nada de contato. Mandava o dinheiro, mas ficava na cidade até o dia seguinte à tarde, quando voltava.
Com o passar do tempo foi esquecendo o problema e não mandava mais o dinheiro ele mesmo entregava à mulher. E o inevitável aconteceu diante da situação: reataram, mesmo diante de um novo problema: ela estava grávida de outro.
Mas diante das juras de amor da mulher, dos pedidos de desculpas e do sincero arrependimento dela, ele aceitou. Aceitou e ainda como sinal de amor, quando o menino nasceu, ele registrou como seu filho legítimo.
Ele continuo trabalhando em Fortaleza e a mulher morando em Baturité. Mas como era de se esperar, certo dia ela recaiu. Bastou ele viajar para Fortaleza, ela foi atrás da amiga e foram juntas para o antigo forró. Sem nada desconfiar, pois desta vez a mulher teve mais cuidado, Beroado ia vivendo feliz, com a mulher seu filho e o filho dela.
A mãe de Beroaldo, entretanto, nunca tinha aceitado que ele reatasse com a mulher e passou a vigiá-la. A mulher de Beroaldo tinha muito cuidado e não deixava transparecer que voltara a frequentar o forró, e para que a sogra que morava próximo não desconfiasse, aguardava pacientemente que os filhos dormissem e só assim sai, despreocupada, pois estaria de volta lá pelas 23 horas e como os meninos dormiam a noite toda, estava protegida.
Certo dia, porém, deu zebra. Um dos meninos acordou e como não encontrou a mãe começou a chorar o que chamou a atenção de um vizinho, que imediatamente levou o menino para a casa da sogra.
Esperta, a sogra para não chamar a atenção, levou o neto para casa e o fez dormir novamente.
Aquilo, entretanto, chamou a atenção da mãe de Beroalto, que no fim de semana seguinte contou o caso para o filho. E este, no domingo, procedeu da mesma forma que da primeira vez, seguiu a mulher e flagrou tudo.
E desta vez a separação foi definitiva.
A história me foi contada pelo próprio Beroaldo, numa das muitas noites que ficamos conversando na calçada.
Como ele havia me confiado um fato tão íntimo, achei que podia fazer comentários. E observei:
- compadre, era assim que nos tratávamos, como é que a mulher te bota chifre; tem um filho com outro; tu voltas para ela e ainda registra o menino como teu filho?
- compadre, disse ele, foi porque ela prometeu se ajeiltar!
Compadre Beroaldo casou-se novamente, teve filho com a outra, e ainda criou os dois da primeira mulher. Um dele e outro não.
Como dizem que pai é quem cria. O quê se pode fazer?
Henrique César Pinheiro
Fortaleza, 31 de julho de 2013.