A correria era geral. Todos seguiam a trilha de um ofídio que aparecera próximo à casa da chácara de um amigo de Raoni que fora convidado a passar um final de semana naquele sítio. O amigo encabeçava a tropa de busca e alertava a todos do perigo e recomendava cautela, pois o animal poderia surgir a qualquer momento.
Raoni ajuntou-se aos demais com a intenção de fazer parte daquela caçada mirabolante. Sentia-se particularmente excitado porque jamais se envolvera em aventura similar.
No meio do caminho, após ter se afastado um pouco dos demais integrantes, deparou-se com a serpente parada sobre uma pedra, a cabeça erguida com altivez, dando a entender que o aguardava naquele local. E quando Raoni se preparava para atacá-la, ela assim falou:
– Antes de me exterminar, peço-lhe que escute o que tenho a dizer.
Raoni falou:
– Seu desejo será considerado visto que é de praxe atender à última vontade de um condenado; mas isso não a exime da pena que lhe é imposta. Você representa uma grande ameaça.
– Só passei por aqui em busca de alimento.
– Mas, chegou na hora errada.
– Existe hora certa para saciar a fome?
– Quero dizer que chegou num momento trágico.
– Eu entendo. Vão me matar. É a lei. Mas, a princípio, quero apenas expressar minha posição contrária ao preconceito que os humanos alimentam contra as serpentes. Desde a criação do mundo, somos apontadas como vilãs e inimigas naturais da humanidade. Os seus antepassados desobedeceram ao preceito divino quando estavam no jardim do Éden. Ao ser questionado por Deus, imediatamente o homem denuncia a mulher. A mulher olha para um lado e para outro, vê nossa mãe e acusa: foi ela que me enganou. Por essa razão Deus nos amaldiçoou, despojou-nos de nossas patas, e fomos condenadas a andar de rastros sobre os nossos ventres até o final dos tempos. Assim está escrito no Livro Sagrado. Primeiro, foram as patas dianteiras; com a evolução da nossa linhagem, as patas traseiras igualmente desapareceram.
– Como sabe de tudo isso?
– Também somos criaturas de Deus e conhecemos toda a verdade universal. Escuso-me de questionar a atitude divina, mas questiono os humanos, o motivo que os impulsionou a envolver-nos em seu ato de desobediência. Não somos astuciosas como pretendem vocês. Apenas nos defendemos e só atacamos quando somos molestadas.
– Você tem razão. Concordo plenamente com o que disse, no entanto é preciso que você morra. Há crianças e mulheres nesta área e você os apavora.
– Eu não sou traiçoeira, repito. Agora... estou pronta. Você me venceu. Trate de completar sua tarefa.
E encaracolou-se toda escondendo a cabeça à espera do lance final. Raoni ficou pensativo a observá-la por uns instantes. Um universo de mitos, lendas e superstições envolve essa criatura misteriosa que ali se encontra diante dele e cujo destino está em suas mãos.
– Por que você não tenta fugir?
– Não adianta postergar a fatalidade. Se escapar de você, os outros estarão à espreita.
– Não vou lhe fazer mal.
– Faça o que deve ser feito. Estou pronta.
Inesperadamente, Raoni jogou fora a vara que tinha na mão, deu meia volta e dirigiu-se ao amigo e seus companheiros: