
Teve vontade que Androceu fosse o pai da criança. Mesmo porque, acostumara-se com ele. Com sua simplicidade no modo de cumprimentar as visitas, e não fazer sala. Aquele ir para a cozinha, aquecer comida, encher a barriga e se deitar. Em nada Androceu a perturbava, senão com bafo de bebida e de nicotina. Distraída, nem vira o leiteiro se afastar, deixando uma sacola de pano, pendurada nas grades do portão.Ela guardou a encomenda de Corina na cozinha, e vomitou só de pensar em coalhada...
Estacionou o Corcel vermelho no pátio do colégio Integral. E Passou direto para a secretaria. Largou sobre a mesa as chaves do carro e do colégio e entrou no banheiro. Diante do espelho, alinhou o penteado. Pensava na simplicidade da irmã: ‘Dulcineia não tinha vaidade, nem apego ao dinheiro. A nada se apegava sua irmã postiça. Nem mesmo quis a vaga de professora que lhe oferecera no colégio.’ Não tenho paciência de lidar com essa juventude rebelde.’ — disse ela. Por outro lado, Jeremias era o oposto da mulher: controlava as finanças da casa, dava conta de tudo, até de separar a carne que seria preparada para o almoço, e estocar mantimentos na despensa, mantinha tudo nos devidos lugares, mas não guardava boas lembranças de sua mulher. Dulcineia era uma pedra. Nunca lhe confidenciava nada. E quando intentavam um diálogo, terminava em briga. Ele nunca dera início a uma contenda, não reclamava do bife insosso nem do arroz salgado. Tinha lá seus pecados: sua vontade era soberana, não consultava a família, nem envolvia a mulher nos projetos que idealizava ou naquilo que fazia. Seu casamento foi um fracasso...
— Não se vive a dois desse modo. Ages como se eu não existisse...
— Discordas de tudo meu doce, por isso não te consulto pra nada.
O início da conversa não gerou clima favorável para tratar de assunto tão delicado, e Dulcineia deixou para outra oportunidade? ‘Antes ou depois da intimidade do casal? Qual seria o melhor momento?’
À Noite ela não dormiu. Fingia dormir, e o sono não vinha. Mexia-se na cama: punha a cabeça sobre o travesseiro e depois o retirava, colocando-o sob os pés. Sonolenta, puxava a coberta do marido e lhe tomava também o travesseiro. Agora tinha dois travesseiros, um para repousar a cabeça e outro para refestelar os pés. Logo, o marido pensava: ‘Deve estar querendo dengo’. Mas ela não dava sinal visível de qualquer sentimento despertado em seu coração. — ‘Acho que me casei com uma boneca de pano’ — pensava — e virava para o outro lado, e dormia, e sonhava, e acordava roncando...
Acordava de sobressalto com a cama sacudindo. — ‘Deve ser a mulher aborrecida por causa de meu ronco.’ Fingia nada perceber. Dormia. E outra vez roncava ou tinha pesadelo. Sentia a mão, que não era a dele, sacudir forte sua barriga. Não eram afagos. A mão espalmada não massageava o abdome do marido, ao contrário, soltava raios nervosos na ponta dos dedos e da língua.
— Pesadelo?...deve ser remorso das coisas que apronta! Malditos pesadelos!
Era dia de São Sebastião.
O sol beija a janela, depois se esconde atrás de uma nuvem. Jeremias conta as horas amanhecidas na insônia de uma noite mal dormida. Teve vontade de perguntar o que a mulher tratara no dia anterior com a irmã. E torcia que fosse problema na escola. Talvez a gravidez precoce de alguma aluna, dessas que exibem nas vestes sua condição rebelde de fazer sexo com seus ídolos. Mas sobre essas coisas nem o direcionamento espiritual oferecido pelo padre Davi amenizava o furor da juventude rebelde. Chanana tinha formação em Psicologia. Dava bons conselhos, mas agora era ela que precisava ser aconselhada.
O velho Jeremias tentou passar uma borracha na memória, lidava com números e contava dinheiro dos outros no banco. Vendia as horas... Nos finais de semana, reunia os amigos em torno da churrasqueira e assava lagarto na brasa. Fizera amizade com Adilson Júnior e o mineiro José Lino que não era mineiro, mas sabia jogar truco.
— Jogar truco no Rio de Janeiro é como encontrar pamonha no hipermercado Freeway.
— Pai, essa bandeira não existe mais. Nem supermercado vende pamonha.
— Por isso digo que jogar truco no Rio é tão raro quanto encontrar pamonha em grandes supermercados. Truco é coisa de mineiro! É bom jogar truco mas, as mulheres não gostam que seus maridos se divirtam. Que deem boas gargalhadas: ‘ Truuuuco, rato!’ Toma seis, ladrão de meus tentos!’
— Dois mineiros nos visitaram depois da pesquisa de campo que fizemos em Montes Claros e Juramento.
— É verdade...
— Dilson joga uma partida, logo se levanta xingando a dupla adversária: ‘vocês criam regras conforme a conveniência da jogada... e José Lino truca falso demais!...
— O jogo de truque consiste nisso mesmo: fingir que tem bom jogo sem ter. Às vezes tem mesmo... e engana o outro como Turíbio Soberbo com sua criação peixe-leiteiro.
— Imagino como seria Turíbio jogando truco contra Pururuca!
A ideia de Turíbio de criar peixe-leiteiro botou a perder também Pururuca que apresentou seu projeto de avião poedeiro.
Esses vaqueiros de Campo Grande...
— Como vais fazer para adquirir um avião, abestalhado?
— Se Zepelim passar voando, atiro uma pedra com meu estilingue. Se o avião cair com vida, faço um ninho. E quando ele botar ovo, vendo ninhadas de aviõezinhos e ganho muito dinheiro!
***
Adalberto Lima, fragmento de Estrada sem fim...
Imagem: lInternet
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