Campo Grande jamais se esquecerá do coronel — dissera o padre, durante as exéquias — nem o tempo apagará sua memória. Sua humana alma sempre apartada da corrupção, seja na glória eterna coroada. Ele fez jus ao nome recebido: Justino, justo e generoso. Apinajé chorou. E muita gente fungava, até homem chorava e tossia escorrendo água nos buracos das ventas. Sinhá Corina mandou servir chá de jasmim e cravo-de-defunto, e logo, correu o boato que o finado era santo. Mas... Na missa de corpo presente, o padre não comentou o milagre. O povo é que dizia, que doente ficou curado de mal respiratório, resfriado, bronquite, reumatismo, e depressão, depois de tomar o chá no velório de Batista Generoso.
Mesmo quando acaba o perfume, o zeloso frasco ainda guarda por muito tempo o cheiro.
A viúva vestiu luto de sete dias e bebeu chá-de-jasmim, para controlar o baticum do coração, doído de paixão pelo marido. Orava pela salvação da alma dele, visitando todo mês o corpo santificado de Justino, dado aos vermes no cemitério de Sete Passagens. Apinajé lastimava: ‘Coronel Generoso era bom demais da conta.’ Chorava mais que a viúva, e com isso lançou por terra o mito: “Índio não chora.” Apinajé chorou. Em sua mente revivia a cena de quando atrasava o almoço dos cafuçus... A boia chegava fria... E os homens do tijupá reparavam nela o cabelo assanhado, adornado de folha seca e sementes de mulungu. — Repare o cabelo dela! — Bota maldade não, sor. Deve ser assim que índio se enfeita. — É não! Mulher de índio tem muitos maridos. Qualquer índia, mesmo casada, se acoita com o pajé. Tem sangue de peru naquela pintainhada de perdiz. — Mulo não gera filho. Onofre não é pai daqueles caburés — dizia outro. — Deixa Onofre sonhar... — Sonhar o quê, cabeça de vento? — Malquerença! Botando intimidade da mulher do vaqueiro com o patrão. Ninguém nunca viu nada. — Essas ‘coisa’ num é feita pra ninguém ver... Repare as crias. A índia tem filho branco, quase sarará. A mais nova é ruiva de beiço grosso. Vermelha que nem o patrão da mãe. Nariz curto... achatado. Branquela. — Onofre é uma égua, cuidando de cria alheia... — Nem que não seja sangue de seu sangue. Criou. Toma feição. João Velho pensou: “Toma afeição. Feição é outra coisa parecida. Quem nunca ouviu dizer: Entre troncos e brenhas, ninguém sabe onde a lenha queima. A menina tem jeito e sabedoria demais para ser filha de vaqueiro.” Calou. Apagou todo pensamento que faz juízo daquilo que o olho não viu. — Respeite o sentimento da família. O homem já morreu! — Tô falando quando era vivo. — Ela tem filho caburé de cabelo corrido. Que é próprio da mistura de negro com índio — interfere Xandão — Isso sinaliza que Onofre é o pai. E se não for, não nos cabe julgar. Dizer que a índia é trabalhadeira, ninguém diz. Mas ficar de olho no caminho para ver se ela já vem trazendo a boia, todo mundo faz. Apressou-se Pai Luís que não perdia a oportunidade de cobrar mais rendimento dos enxadeiros. — Todo mundo é muita gente... Eu nunca reparei os modo dela com o patrão. Só tenho olho pra minha enxada e a leira. — Tá na hora de pegar no pesado. — Nem amolei minha ferramenta, ainda. — A gente a mola enxada e machado é na hora do descanso. — Pai Luís tá certo. Temos que mostrar serviço — Acentuou Antônio Cardoso, enquanto se dirigia à queimada nova. Já em pé, Gaudêncio bateu com o olho da enxada numa pedra. Raivoso. — Apinajé! Nome besta sor. Nunca vi este nome... — Acaso tinha visto índio antes, nessa sua vida besta de enxadeiro? — Nem nunca! — Ontonce.
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Adalberto Lima, fragmento de "Estrela que o vento soprou."
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