Está chegando a Primavera de 1966.
Em Lins, pelo rádio "ouvimos" os grandes acontecimentos...
A Copa devolve a Taça Jules Rimet à Inglaterra e o Congresso elege o General Costa e Silva para Presidente.
Mas nosso vizinho está feliz com outro acontecimento.
Acaba de comprar um Ford Cupê “estalando de novo”, apesar de o carro ser ano 1948.
Não comprou porque é vintage, mas por ser um modelo ainda muito procurado pelas classes mais altas. Na verdade, o feliz proprietário é mais do que vizinho. É gente boa, amigão... Viria a ser meu padrinho de carreira e padrinho de batismo do Paulo (meu irmão). Devo a ele o empurrão que, na minha adolescência, conduziu-me aos primeiros empregos. Bem, num sábado à tarde, ele me convida pra um rolé pela cidade, no banco do carona. Depois de elogiar o câmbio de três marchas, o V6 de 90 cv e a velocidade que o possante pode alcançar (125 km/h!), mostra-me um requinte interno: o rádio potente, que ele liga no último (ôba, tem rádio!).
No percurso entre a Rua Rosalino Silva e o Aeroporto, desfilamos com poses pela Nicolau Zarvos, enquanto minha atenção se divide entre os detalhes do carro classudo e o hit no dial, onde Wanderlea esganiça: “Senhor juiz, pare agora, pare o casamento!”.
Seu Nelson, no entanto, segue o casamento e tem na esposa uma aliada daquilo que ele curte: aos domingos, dona Santa prepara o almoço, separa uma pequena vasilha de alumínio pra cada um e lá se vão eles no carrão, pra almoçar à sombra de alguma árvore na beira da estrada, por perto de Guaiçara, Promissão, Sabino ou Getulina. É seu modo feliz de conciliar lembranças do passado duro, movido a marmita fria, com o presente tranquilo movido pelo Cupê. Se em 1966 a vida ia bem para ele, nem tudo era felicidade para outros. Havia mais oportunidades de trabalho do que hoje, é claro. Emprego não era tão difícil. Curiosamente, adquirir uma bicicleta, geladeira, moto ou TV era bem mais difícil do que hoje. Ter um carro era sonho. Um Ford 1948, sonho distante. O ótimo e moderníssimo Fusca era para poucos...
Gabriel, parceiro do meu pai em alguns hobbys, pertencia ao seleto grupo que tinha um Fusca na garagem.
Mas ele era doutor e graduado funcionário público, enquanto nosso vizinho era burocrata ainda batalhando para crescer na carreira.
Era chefe de uma representação federal, onde eu fazia as vezes de menino quebra-galho, enquanto esperava o dia ter acesso ao concorrido cargo de boy. E, durante esse tempo, geralmente rolava algum trocado.
Depois de 18 meses de muita espera e pouca gorjeta, feliz da vida finalmente eu compraria meu primeiro par de sapatos com o próprio dinheiro, quando assumi a função de boy, ganhando meio salário mínimo.
Era com meio salário que a gente ria à toa e não sabia.
Mas como isso é passado e pertence a outro século, Milady aqui ao lado avisa que devo moderar o uso do pretérito perfeito e das lembranças distantes. Ela não sabe que isso é coisa da idade...
Então, pra não dizer que só falo do ontem, pego embalo no carrão 1948 para me lançar mais adiante e projetar uma breve reflexão sobre o futuro.
Passemos para a virada de 2040!
O réveillon é magro, pois dinheiro é escasso, emprego é luxo, repartição pública é coisa em desuso e escriturário é substantivo em extinção.
Seu Nelson, coitado, teria de queimar neurônios para se adaptar aos novos tempos. Eu teria que esquecer a vaga de boy e me reinventar para ganhar aqueles mesmos trocados.
O rádio analógico do Fordão já não existe. Tampouco existe nas concessionárias o Fusca com carburador, quatro marchas e a valente tropa de 46 cavalinhos.
Taxistas tradicionais perderam o emprego para o Uber e similares. Em seguida, motoristas do Uber perderam o emprego para os veículos autônomos.
Nas ruas, táxis sem motorista. Na porta de casa, delivery sem motoboy fazendo a entrega, sem vacilar no endereço, nem esfriar a pizza.
Mão de obra remunerada em visível extinção, trabalho operacional cada vez mais escasso.
Durante os 70 anos que separam o Fusca do carro autônomo, cabe a papais e mamães pensar um pouco sobre o futuro dos filhos e netos.
Pensar antes de lhes apontar caminhos com base em antigos paradigmas, porque as décadas chegam sem se importar com o que nós aprendemos, acreditamos, esperamos ou sabemos. O que vem no futuro pode ser inteiramente diferente do que vimos até aqui.
Ele se impõe sem perguntar o que queremos, nem o que nossos filhos sabem fazer.
O futuro provável será um ritmo que ainda não sabemos dançar. Um hit que hoje não podemos cantar. Um carro que, por enquanto, não sabemos usar nem dirigir...
O jeito é se manter afiado. Voz aquecida para improvisar novos hits e o molejo flexível para dançar, venha o que vier.
Sem esquecer de manter intimidade com os carros de hoje, para facilitar a complexa “ponte” para os modelos de amanhã.
|