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Contos-->O Encantado no meio do Cerrado -- 17/12/1999 - 12:25 (Dioclécio Luz) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
- Abelha é inseto de muito estudo - ele disse . - Antes de fazerem o mundo, com suas labaredas e suas águas, seus remédios e suas dengosidades, ela já estava aqui, caprichosa, inventando o quadrado e depois o pentágono, e até que então, juntando o seno ao cosseno, desvendando o odor do logaritmo de dez na base cinco, pariu do seu buchinho melífero o hexágono. Aperfeiçoado. Sabia de mais. Daí pra frente, ára!, só inventando o círculo.
O nome dele é Trinômino Constantino Lima, mas pode chamar de Seu Teco, assim mesmo, com pirangagem de letras, que ele atende, diz bom dia, boa tarde, como vai, como passou a noite de trasantontem. Tem o couro grosso, marrom, curtido do sol do cerrado. O nariz é grande, nariz de bicho. Os olhos são verdes e pequenininhos, mixurecos, mas brilham, na noite escura é capaz de encandear um homem desprevenido que topar no meio da mata com esses dois vagalumos emparelhados, olhos de onça depois que namora.
- Os insetos são bichos de pouco tino. Inseto não tem ciso. É pouco mais que o fruto do cafeeiro ou de outra rubiácea qualquer. Amiga minha, doutora Wédina, sábia nas biologias, observou certo dia, após muito estudar e pensar, esta conclusão: inseto não sabe que existe. E eu, na falta de melhor concisório, assino consigo. Arremedo, até. Amplio. Sim, se se cria a dúvida: não é verdade também que o homens sapiens da terra, e não falo dos de Marte ou Júpiter, que estes são de outra estirpe de sangue e razão, os daqui, nossos aparentados humanos, estes, estes não sabem que existem? Com todo respeito a mim mesmo, é bom deixar bem clarinho, tenho minhas suspeitas.
É noite. O fulgor da escuridão alumeia o negrume do cerrado. Na sala da fazenda o grupo de visitantes proseia, vultuando lembranças e saberes, tomando café, pitiscando bolinho de fubá, sem vexames, mais como se a noite fosse durar para sempre, como se aquilo fosse isso que era, um paraíso de gente e bicho numa conversa boa e admirável. A casa é feita de cuidados, madeira do cerrado, vinhático, sucupira branca, angico, cega-machado, e terra, tijolos de adobe. Aqui dentro ninguém tem medo de morrer. A besourada entra de rebanho, sagrados coleópteros, inocentes helicópteros, em busca da luz divina do lampião. Prestando atenção se ouve o bichinhos pretos, e também as mariposas de asinhas marrons, companheiras na procissão, repetirem as rezas do encantado. A noite do cerrado é feita de mistério.
Os visitantes são três, eu, minha mulher, Adriana, e mais uma amiga, Ana. Da casa, são três também, seu Teco, sua mulher, dona Divina, e o cachorro, Eustáquio. Eustáquio? Uá?!...

- Gosto de dar nome bonito para meus cachorros. Esse batismo é uma forma de aproxima-los da gente. Assim ficam se sendo animales mais superiores, meio gente e meio bicho, sabendo das coisas de cá, humanóides, e de lá, caninóides. Cada animale tem seu tino, seu jeito, sua personalidade, diferente do ser humano, acho. Porque gente, me parece às vezes que é tudo iguale. Cachorro não. Eustáquio fica aqui dentro, ouvindo a conversa nossa, aprendendo essas coisas toda. Já Filibório, aquele magrelo dos olhos de paca, prefere ficar lá fora, escuitando a noite, aprendendo com os grilos, o sapo, as formigas, os insetos, é entomologista, tinhoso, cientista, curioso na busca de saber todos esses trens. Tive um, chamado Joaquim Pinheiro, que era dado à leitura. Passava o dia inteiro na minha biblioteca lendo Guimarães Rosa e decorando poesia de Manoel de Barros, um assanhudo, perito em tratar bem a gente. Minha querida visitante, você acredita nisso? Tenho cara de mentiroso? Ára, bobageira. Não é a cara que faz a mentira. E também, pra lhe ser sincero, nem sei mesmo se isso é invenção ou se existiu mesmo um cachorro chamado Joaquim Pinheiro. Na dúvida, é mais bonito acreditar nele e suas competências pra ser o que foi ou terá sido, um cachorro de estilo, do que não ter crença nenhuma. Vida mesmo é boa assim. E como estou predestinado a viver até morrer, o jeito é me aguentar assim, crescendo troncho e fariseu feito os paus do cerrado.
Dentro da gente e lá fora, o cerrado. Feito de paus tortos, mato que dança a dança da natureza, por isso essa visão, tortos, quando não é mais que o rebolar, o bulir dos quadris, um passo pra lá, um passo pra cá, felizes. Ou então os paus que sobem retos, amazônicos, sem arremedo de conversa, diretinho pras nuvens, com as lianas montadas nos cangotes. Até que vem a noite sem lua e eles somem. A gente olha pra fora e não vê nada: cadê as plantas? Sumiram todas no fundo negro da noite. Mistério divino: Deus existe? As plantas lá fora, impalpáveis, invisíveis, inexistentes. Um homem da cidade, um urbanóide, um cabra sem paladar pras coisas do mato, vai asseverar com as mãos por riba do Livro sagrado: de noite o cerrado não existe.
- No mais, porém, a verdade é outra. Digo, a verdade não é uma, são muitas. Porque se o sujeito for bom de ouvido, vai ouvir os ruídos que vem da mata. Se ouve sim o pragejar da anta, um futruquiar quilomboso, mais parecendo uma menina ruminando namoro em volta da praça da matriz. Delicada em seu volume de ente gigantoso. Deus o livre encarar uma onça, a pintada, por exemplo, que as vezes bota uma roupa preta só pra confundir o maluco que andarilha sua fazenda - esturro de onça no meio da mata é laxante, faz o sujeito macho se cagar nas calças, é bom pra prisão de ventre e pra quebrar machice de velhaco. Se não for o esturro da danada, ou ainda da onça vermelha, na noite tem os miados dos gatos, a jaguatirica, o jaguarandi, os gatos pintado, rajado e amarelo.
À noite o cerrado vira uma feira. Festa. Quase todos saem para caçar, para comer. Tem os sisudos e tem os da folia. O lobo guará, ele, vermelhão, feito de cerrado, de terra e pêlo, não esconde - nas noites de agosto dá um berro que até os grilos e gafanhotos se escondem cada qual em sua toca. Pelo contrário, das locas saem os cachorros-do-mato-vinagre, em matilha, a família unida, pai, mãe, filhotes, um primo renegado, pra caçar. A janta de hoje é veado campeiro. Mas se o tempo for de carências, paciência, o jeito é um comer ralo, feio, à base de tatu peba ou préa magrelo.
A gente se espalha onde está. Cada qual no seu pensar de outro ser, uma gente já que virou aqueles paus que sustentam a casa, a cruviana que assobia por riba das telhas, o birilhar dos bichinhos no mato, o ruído que faz a lua ao se arrastar lesmosa no céu. Dona Divina, mulher de seu Teco, injurêia do calor, é devotante do frio. Beata escaldante:
- Eu, por mim, por mim mesma, eu, morava era no Pólo Norte. Armava casa e fazenda, criava gado ou pinguim, sei lá, deve ter outras criação adequada, plantava arroz e milho lá, isso, ou sei lá, uma agricultura de lá, e vivia feliz. No frio. Frio ajunta a gente. O calor, um calor feito esse, dispersa, esparrama a pessoa pelo mundo, o pensar é meio despedaçado, a gente pensa como se fosse uma tuia de borboleta, cada qual igual mas é tudo diferente. No calor a gente vira muitos, deixa de pensar colimado, mais parece um saquinho cheinho de bactérias averiguando se imaginar um bicho só. Ára! Esse calor me esbage a vida.
O cerrado. Como se fosse um espírito tomando posse de cada um ali. Estávamos, sonsos, puros e inocentes no ventre da fera. Guarda em teu corpo santo, vegetal, animal, sobrenatural, estas pessoas tão fraquinhas mas valentosas. Deixa que vejamos o mundo através de teus olhos - os olhos de uma cascavel, ou de uma jararacuçu - ou do alto de uma sucupira, os olhos de uma jataí. A doçura de arriscar a vida, tão forte e tão frágil. A vida por um criz, um biz, um triz.
Seu Teco fala por nós. Em nome de todos os espíritos da mata que habitam em nós:
- Houve um tempo em que eu andava por esse cerrado de pés. Era menino jovem e depois um moço. Percurava o aventuroso, a folia, bulindo com os bichos, matando pelo gosto de matar, que isso é muito da doença do bicho homem. Atirar mode ver o sangue jorrar de cascata do buraco aberto na barriga de uma anta, ou derribar uma arara. É o demônio que Deus obrigou cada um a carregar no corpo, aqui, no vão que fica entre o coração e a quinta costela, essa grota funda, morada de morcego hematófogo e cobra coral. A gente é natural mas também sobrenatural. O pequizeiro só floreia porque existe um serzinho responsabilizado por seu florear, e não está ali, nos olhos de quem vê, tá mais no não-ver.
Ele conta o caso. Vai sem pressa. Deixa o cavalo no curral e toma o jipe.
- Naquele tempo um jipe valia 250 vacas gordas. Entonce arreunimos um rebanho de gente caçadora feito eu, ajuntamos uma carreta cheia de cachorros, e partimos no rumo do rio Paranã. Os cachorros já adestrados na lida da caça e para cuidar de nós, mais de uma dezena, ferozes, sem medo de nada, até enfrentar onça eles enfrentavam. Medo tinha eu, tinham os outros, os cachorros não. E obedientes feito soldados. Se mandasse pegar um boi eles pegavam e traziam inteirinho pra cá. Mandava eles se atirar de uma ribanceira eles se atiravam.
- Dançar também dançavam ? - pergunto, mangador.
- Ôxe. Dançavam a catira que era uma maravilha.... Hum... Mas o senhor não me provoque que de mentir e falar a verdade eu faço pouca diferença, muda só o tom da valsa, mas o pisado é o mesmo. Não se arrisque sujeito. Gente do mato sabe a diferença, mas você não sabe se suprir disso. Vai cair de barriga na premera que contar.
Dona Divina interfere:
- Ah, mas eu não vou deixar você fazer isso com as visitas não. Num vou mesmo. Onde já se viu, passar recibo pra bobage como se fosse de fato? Não seja ruim com os menino, Teco.
- Tá bem, tá bem. Mas você viu que eles tão provocando. E se são bestados, quem sou eu, psicólogo ou historiador, pra consertar o sem-tino deles? Ára! Se são avaziados de juizo e siso, feito inseto, vão se estrupiar de qualquer jeito nas conversas de povo do mato ou da cidade onde vivem. Quem nasce pra cupim passa a vida comendo pau. Não é verdade, seu escritor?
- Verdade verdadeira - afianço, rindo com eles.
Ele conta. Fala dos cachorros, uns bichos brabos, insiste, capazes de pegar tatu socado em buraco de pedra. E os amigos que íam com ele, uns primos e outros. Em rumo de caça.
- Não tinha estrada, era o cerrado, o campo limpo, o cerradão. Mas meu primo Olegário, montado no jipe feito quem monta numa nuvem, não carecia de rumo pra achar o norte. E a gente seguindo debaixo de um calor dos infernos, mais parecia que o inferno estava abrindo filial por aquelas bandas. O primo falou: “agora bom é a gente achar um lugar fresco de água e sombra mode se tomar um banho de rio e cachoeira”. Disse isso e embricou numa trilha de paca, científico, desduvidado.
Tava lá o córrego. Água pura, a água que dá cria a cristal de quartzo. Brotando da mãe natureza, maná dos cerrados, doces líquidos dos peitos da mulher amada.
Seu Teco morde uma broa de milho e arremeda:
- Foi o lugar mais bonito de boniteza que já vi na minha vida. O riacho passava na clareira de mato, juntava num redemonho suave, pastoreando as pedras brancas embaixo, desembocando numa piscina cheia de transparências, lugar onde se ajuntava tudo quanto é passarinho do cerrado. Ai, meu Deus, foi daqui que tu expulsou Adão e Eva, num foi? A água escorria suave, iluminando a gente e as coisas, todas as coisas. Fazia os caldeirões no barro e nele brotavam árvores imensas. De diante havia um lajeado liso, um cimentado de pedra feito pela natureza, uma coisa plana, retalínea.
Ajuntaram os trens. Era anoitecendo. Se banharam, comeram peixe trazido de outras águas, deram comida pros cachorros. Em pouco tempo a fogueira estava acesa, atraindo as mariposas, e um café de tropeiro foi servido com pão duro. Uns armaram cama e outros se espicharam, macacados, na rede. A cachorrada deitada, tranquila, em volta de nós. Escuro. Silêncio. Tarde da noite. Aí...
- Então, o que se ouviu? ... Um grito. Mas se não havia nada ali? Nem fazenda, nem mesmo índio... Ára! Um grito do jeito de como se fosse gente: áaaaaaaaaaaaaaaai! Um berro sofrido, doloroso. E o primo, muito galhofeiro, atrevido, falou, “vamos gurizar”. Então vinha o grito de acolá e ele gritava de cá: áaaaaaaaaaaai! E aquilo foi se repetindo... E aquilo veio encostando... E o primo e essa coisa conversando, nos gritos... E aquilo encostando, encostando... Aí o outro que estava na rede pulou, e falou: “pára, o que voces tem que mexer com essas quiziras no meio do mato? Larga disso, uá!” E o primo nem fez de ouvinte, continuou gritando, pabulando com o estranho. E o trem encostando, encostando... Daí há pouco os cachorros começaram a rosnar... Mas ainda quietos.
No meio do mato a água adormecida. Feita de estranhezas: calada, não ruminava quando passava nas grotinhas, quando tangia as folhas mortas carregadas de formigas na labuta noturna, quando batia numa pedra - não fazia chiiiiiii, nem chuáaaaa, conversa de água, nada... Seu Teco desconfiado.
- Água que não faz barulho não presta pra beber. Um lugar assim, bem se via, é morada de encantado. Mas a gente, eu, ao invés de sangue, carrego é teimosia na barriga e no intermédio dos ossos. Se sumir dali? Despencar pelo mundo no respeito das coisas do além? Nada, nadica de nada. A gente se instala e se cala do assunto, e se preciso garganteia de macho mode espantar o medo. Mas no porém o bicho estava ali, cercando nós. E a gente já cismático, e o primo que não se calava, no grito, na conversa com o trem esquisito. Ali, alizinho. Eu já ouvia ele trepado em riba da árvore onde estava montada minha rede. Gritava o bicho, alto. Tão alto que incomodava. Um urro meio bicho meio gente. Era certamente da parte do cão, mas eu não tinha nem coragem pra pensar nisso. A cachorrada latindo, esbravatada, estribufada, no escuro vendo o que ninguém via. Com o pouco aquilo pulou no meio do terreiro, no exato onde estava o lajeado aplanado. E urrava feio. E os cachorros chegavam perto e ele só coriscava, no berro. Até que daí há um pouco ele começou a bater nos cachorros...
Seu Teco faz suspense, engrovinha os visitantes. Misterioso. Contador de história daqueles malinos, que segura a meada do conto no capítulo certo, pra que o ouvinte tenha uma angina, um enfarte, e morra ali, estribuchado, e na horinha de dar o último suspiro, coitado, carente, arquejando, pergunte só somente: “mas então, compadre, pelo amor de Deus, conte o fim da história, senão eu morro só pela metade”.
Toma um chazinho de hortelã, come um pão-de-queijo, nem parece ter pressa. A gente morrendo de vontade de saber o fim da arenga e ele ali, na tocaia do nosso querer.
Lambe os beiços e continua.
- Eu não sei até hoje como pode uma coisas dessas... Dez cachorros bravos, treinados,... se uma onça não subisse num pau eles pegavam ela... Agora um bicho bater neles daquele jeito. E a gente estrumava e eles avançavam, gritavam, apanhavam. Urrando, dando umas lapadas, que a cachorrada ía e voltava, ía por terra e voltava via aérea. Era pei e bufe! Uma lambezura desgraçada. Na escuridão, que naquele brodogueu não dava tempo de acender o lampião ou outro alumiante qualquer, o breu da noite escondendo as partes em briga, e a gente só vendo o som rumoroso, as latidas dos cachorros, o urrar daquele peste, e depois o estrubufar dos cachorros caindo lá longe, metrosquilométricos, do lugar da briga. Até que aquele mafuá foi se convergindo na minha direção. Os cachorros em riba dele, ele socando os cachorros, e o rolo vindo pra direto onde eu estava deitado na cama improvisada. Eu, que não nasci pra enfrentar o tinhoso, disse pra mim, ligeirinho: melhor um se assubir num pé de pau que levar um pau aqui embaixo. E arribei no primeiro que estava ali. Só? Nada. Cheguei atrasado. Ali já faziam morada mais dois dos companheiros de caça. Deu pra ver naquele escuro, lunáticos, fantasmas perdidos de manada, eles, a pele branca de cada um - o pavor clarifica a casca do homem. A coisa passou bufando no pé de nós, rasgando cama e acampamento. Só depois de um tempo de silêncio, quando dava para ouvir o respirar das galinhas na fazenda do compadre Libório, distante mais de quinhentas léguas dali, foi que o primo lá em cima, cochichou, tremendo, baixinho, ainda medroso de atrair sejá lá o que fosse: “primo, viver faz bem a saúde, nunca mais vou mexer com bicho que num conheço”.
Nessa noite os homens dormiram trepados nos paus feito macacos. Quando amanheceu o dia foram examinar a estrepolia feita pelo peste. Rastro no chão de pedra não tinha. E no chão de barro não havia muito o que ver porque até onde acompanharam no pisado do bicho havia o pisado de dez cachorros por arriba.
- Voltamos para o acampamento e fizemos o apanhado especulativo. O primo, fazendo ares de filósofo, decretou: “touro eu garanto como não é”. A gente, todo mundo com cara de sono, ajuntando os trens ligeirinho, mas pensando e falando. Medo tinha. O medo estava ali ainda com a gente. Aquele paraíso, ára!, aquilo era encantado. Se do diabo ou de Deus, a posse dali, daquele terreno, não cabia a nós decifrar. Melhor seria desdobrar-se no mundo, o quanto mais cedo melhor. É verdade, se examinando, você vê que a natureza não pode fazer uma coisa daquelas pra ficar no mundo à toa. Ali era a casa de alguém. Até os peixinhos que nadavam na represa tinha um colorido diferente. Era um aquário, privático, particular. De quem?... Diz que tem o tal do “pai do mato”... Será que existe este bicho? Outros viram. Eu não. Depois de andar tanto nesse mato, com esse meu nariz e esses meus olhos, nunca vi nada. O mais foi esse sucedido. Ouvido e sentido. Cheiro? Não vi cheiro nenhum. Na hora do medo o único querer é escapar. Não tenho espírito para lidar com fastasmagorias, encantamentos. Eles é que me buscam. Ou, melhor, eles estão aí, no meio do mato. Se você for até lá vai topar com eles. Mas, se chamar, se berrar, fica mais fácil de aparecerem. Seja lá que trem que forem...
O vento frio assobia entre os paus do telhado. Alguém veio nos visitar. A gente não vê seu rosto nem conhece seu corpo animal, só imagina uma casca grossa e os dentes que brilham, rasgando a escuridão, refletindo a luz da lua, mesmo que não haja lua. Um bicho lustroso, tem coração mas o sangue que toca é uma seiva lumiosa, perfuma à umburuna-de-cheiro. Posso escutar seu arrastar de lagarto bojudo nas telhas centenárias da casa da fazenda. Seus passos delicados e seu respirar de animal do mato. Cismático, vaticino: ele espia... Duas luas varando os paus, trevessando a cumieira, espantando a friagem. Vagalumeia em volta de nós este olhar de bicho. Não como inimigo, ou como amigo. É só uma presença, uma estranha e irriquieta indagação: a vida é isto?
Seu Teco arremeda, numa voz compactada de silêncio:
- Daqui há pouco vai virar dia. É assim há muito tempo. Os que têm tempo pra mirar o tremular da folha da lobeira sabe dessa verdade que cerca a gente. Eu vivo de coragem pra enfrentar o modo como a vida passa em volta. Umas vez mais rápido, outras, mais fugaz. A vida é um relâmpago. Não cabe na mão miúda e cartesiana do crente. Cada vez que eu escuto o burular dos sapos e o zig-zig das melíferas, ou o zumbar do trovão antes de explodir, eu furo um poço artesiano na minha alma. Eu sou um homem feito de calmas. Mas queria mesmo era ser construido com o algodão das nuvens - pra poder velejar nos céus e garantir que a terra é redonda e a gente não vale mais que a mais pixota das formigas do universo. Ah, mas que fazer se sou isso - um homem que está chegando agora? Pau duro do cerrado, meu cerne é aroeira grande. Um dia eu viro pó e vou ser feliz trazido os pitiscos, pra lá e pra cá, nos ombros dos cupins e das lagartixas.
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Do livro inédito "O ENCANTADO NO MEIO DO CERRADO"
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